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O difícil caminho para descobrir como a vida na Terra surgiu

Imagem de satélite da Nasa (agência espacial americana) mostra uma visão ocidental da Terra vista do espaço - Nasa/AFP
Imagem de satélite da Nasa (agência espacial americana) mostra uma visão ocidental da Terra vista do espaço Imagem: Nasa/AFP

Nicholas Wade

12/05/2015 06h00

Foram as ações de Júpiter e Saturno que, muito por acaso, criaram a vida na Terra.

Não os deuses do panteão romano, mas os planetas gigantes, que antigamente orbitavam muito mais perto do sol. Empurrados para fora, soltaram uma cascata de asteroides, em um evento conhecido como Bombardeamento Pesado Tardio, que explodiram na superfície da jovem Terra e criaram as crateras ainda visíveis da Lua.

No calor intenso desses impactos, o carbono dos meteoritos reagiu com o nitrogênio da atmosfera terrestre formando o cianeto de hidrogênio. Apesar de ser um veneno, o cianeto é, no entanto, o antigo caminho pelo qual os átomos inertes de carbono entraram na química da vida.

Quando o impacto do Bombardeamento Pesado Tardio diminuiu, cerca de 3,8 bilhões de anos atrás, o cianeto havia chovido e formado poças, reagido com metais, evaporado, sido assado e irradiado com luzes ultravioletas e dissolvido em canais que corriam para lagos de água fresca. Os elementos químicos formados da interação do cianeto se combinaram ali de várias maneiras para gerar o precursor dos lipídios, dos nucleotídeos e dos aminoácidos. Esses são os três componentes significantes de uma célula viva – os lipídios compõem as paredes dos vários compartimentos da célula; os nucleotídeos guardam suas informações; e os aminoácidos formam proteínas que controlam seu metabolismo.

Toda essa descrição é uma hipótese proposta por John Sutherland, químico da Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Ele testou todas as reações químicas exigidas em um laboratório e desenvolveu evidências de que esses acontecimentos são plausíveis sob as condições prováveis da Terra primitiva.

Depois de descobrir a possível química necessária para produzir os materiais do início da vida, Sutherland desenvolveu o cenário geológico acima, que tem as condições obrigatórias para desencadear esses acontecimentos.

Já a própria química veio da descoberta, feita por Sutherland seis anos atrás, da chave para um mundo de RNA.

Há tempos os biólogos acreditam na ideia de que a primeira molécula que carregava informações da vida não foi o DNA, mas seu primo químico próximo, o RNA. O RNA pode guardar informações genéticas e agir como uma enzima para produzir mais RNA. Como o DNA, o RNA é composto de uma fita de unidades químicas conhecidas como nucleotídeos. Cada nucleotídeo consiste de um açúcar, a ribose no caso do RNA, unido a uma base de um lado e a um grupo fosfato do outro.

Os pesquisadores que tentam reconstruir a química que levou à vida mostraram caminhos plausíveis para o surgimento da ribose e das bases. Mas, na química prebiótica, o que se pressupõe da química natural da Terra antes do começo da vida, eles não puderam achar uma maneira provável de unir a ribose à base. Esse obstáculo era tão assustador que alguns começaram a duvidar da ideia de um mundo de RNA e a procurar, em vez disso, um sistema pré-RNA.

Depois de dez anos testando todas as possíveis combinações de químicas prebióticas, Sutherland descobriu que a solução não era montar as unidades de ribose e açúcar separadamente, como consta dos livros de biologia, mas construir uma substância que fosse parte açúcar e parte base. A soma de outra substância química simples converteu esse híbrido em um ribonucleotídeo. A porta para o mundo de RNA havia finalmente sido aberta.

Se esse foi um passo importante, deduziu Sutherland, então o resto da química prebiótica precisaria de alguma maneira estar relacionada a ele. Sutherland e seus colegas passaram os últimos seis anos fazendo experiências para ver de que maneira o caminho da química do ribonucleotídeo pode ter o cianeto de hidrogênio como ponto de partida e como outras substâncias químicas prebióticas importantes poderiam ter surgido no caminho do cianeto até o nucleotídeo.

Até agora eles demonstraram maneiras de gerar 12 dos 20 aminoácidos usados nas proteínas, dois dos quatro ribonucleotídeos do RNA e o glicerol 1-fosfato, o componente universal dos lipídios dos quais são feitas as membranas das células. Suas descobertas foram relatadas em março na "Nature Chemistry".

Apesar de outros pesquisadores terem mostrado como várias dessas substâncias podem ter se formado na Terra primitiva, eles precisavam de uma série de condições, algumas delas incompatíveis. Essa é a primeira vez que foi demonstrado que tantas substâncias químicas importantes para a vida surgiram da mesma química.

O relatório de Sutherland “demonstra pela primeira vez um cenário para gerar potencialmente todas as unidades de vida em um local geológico”, afirma Jack W. Szostak, geneticista do Hospital Geral de Massachusetts, que estuda a origem da vida. “Os detalhes do cenário serão debatidos por algum tempo, mas no geral acho que é um grande avanço.” Szostak dividiu um Prêmio Nobel de Medicina em 2009 pela descoberta do mecanismo que protege o final dos cromossomos.

As substâncias químicas de Sutherland não podem ser misturadas de uma vez. Seu esquema da reação exige que sejam colocadas em sequência em um reservatório central. Então, em seu cenário, canais separados correm sobre depósitos minerais e chegam um a um a esse reservatório. Aí mora um possível problema, afirmou Paul J. Bracher, químico da Universidade Saint Louis, no Missouri, em um comentário na "Nature Chemistry". “Esse novo relatório representa uma abordagem muito interessante, mas os químicos que estudam a origem da vida ainda têm muito trabalho para fazer na cozinha”, escreveu ele.

Outros têm reservas mais profundas. Steven Benner, diretor da Fundação para Evolução Molecular Aplicada, de Gainesville, na Flórida, disse que muitas das reações do esquema de Sutherland “não são reais”, o que significa que substâncias químicas puras podem reagir como foi proposto no laboratório, mas não se pode esperar que o processo ocorra da mesma maneira em uma mistura natural dessas substâncias químicas.

Benner também reparou que a ideia popular de um mundo de RNA está repleta de vários paradoxos não resolvidos. Um deles é que, se você tem um reservatório de substâncias químicas e coloca energia nele, “você não consegue a vida, consegue asfalto”, diz ele, sugerindo que as substâncias vão reagir para formar um alcatrão pegajoso. Outro é que a água é fundamental para a vida, como são os nucleotídeos, mas a água destrói os nucleotídeos. Um terceiro problema é que o RNA deve agir como uma enzima e guardar informações genéticas, mas os dois papéis possuem propriedades contraditórias: uma enzima precisa se dobrar e ser reativa, enquanto uma molécula genética não deve fazer nenhum dos dois.

O campo tradicional da química prebiótica fez alguns progressos, na visão de Benner, mas não o suficiente para sugerir respostas reais. “Ter esses problemas básicos ainda sem solução quer dizer que talvez não estejamos respondendo à questão certa.”

Sutherland ainda está tentando encontrar rotas plausíveis para os outros dois nucleotídeos de RNA. Ele também espera entender como as moléculas da vida podem ter sido construídas a partir de suas unidades individuais, um processo conhecido como polimerização. “Em biologia, o RNA faz a proteína e a proteína faz o RNA, então a biologia está nos dizendo que eles trabalham em conluio”, explica. Ele diz que ainda não sabe se a polimerização aconteceria em uma superfície de metal, normalmente tida como uma boa catalisadora, ou dentro de uma membrana celular.

A vida ainda pode ser improvável, mas pelo menos está começando a parecer quase possível.