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Mata queimada cresce; museu, não: cientistas indígenas avaliam perdas

Réplica de manto que é do Museu Nacional e está na exposição em Brasília - Martha Lange
Réplica de manto que é do Museu Nacional e está na exposição em Brasília Imagem: Martha Lange

Daniela Fernandes Alarcon

Do UOL, do Rio

11/09/2018 04h00Atualizada em 11/09/2018 17h33

"Tem um período aqui na aldeia em que acontecem incêndios. A mata queima, o fogo devasta tudo. Só que a mata, deixando lá, renasce. É diferente de um museu: um museu é muito frágil." A professora Glicéria Jesus da Silva, 36, indígena tupinambá da aldeia Serra do Padeiro, sul da Bahia, diz que ainda tem dificuldade para absorver o incêndio que devastou o Museu Nacional, cujas obras para estabilizar o edifício começaram nesta semana. O resgate do acervo danificado ainda não começou, mas dois artefatos confeccionados contemporaneamente pelos Tupinambá figuram entre as únicas peças do acervo indígena que se salvaram do incêndio.

Elas foram feitas para a exposição "Os Primeiros Brasileiros", e hoje estão em exposição no Memorial dos Povos Indígenas, em Brasília. Trata-se de um jequi, armadilha de pesca feita com cipós, e de uma réplica dos valiosos mantos de penas de guará usados por pajés e levados por viajantes europeus, no início da colonização, como presente para monarcas e nobres.

Além de participar da confecção desses objetos –exemplo das iniciativas de colaboração entre indígenas e o Museu Nacional que vinham sendo desenvolvidas antes do incêndio–, Glicéria visitou a instituição duas vezes, em 2015 e 2016. Convidada a participar de eventos acadêmicos, aproveitou para percorrer as exposições, conheceu a reserva técnica do museu e levou na mala uma caixa de livros, destinados à biblioteca da escola que funciona em sua aldeia. “O que aconteceu é um crime contra a humanidade, contra os pesquisadores, os professores, os estudantes, um crime contra a própria terra e seus primeiros habitantes.”

Desde 2010, pesquiso com os Tupinambá. Sou doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional; antes do desastre, estava em vias de concluir minha tese. Enquanto os bombeiros se ocupavam do rescaldo, contatei Glicéria e outros membros de sua aldeia para escutar o que tinham a dizer e, talvez em busca de alento, rememorar as ocasiões em que estivemos juntos no palacete da Quinta da Boa Vista. 

Os impactos do incêndio para os povos indígenas, alguns dos quais representados entre meus colegas mestrandos e doutorandos, são incomensuráveis. Só o setor de etnologia indígena guardava mais de 40 mil itens. “Aquele lugar era como a memória de um computador, que, a qualquer momento, qualquer etnia, qualquer povo poderia acessar, para ter informação, para saber onde estava, para não estar perdido: ‘você veio daqui, sua origem é essa’.”

Na aldeia, Glicéria vem orientando um grupo de jovens que se encontram semanalmente “para discutir a revitalização da cultura e da língua”. Os objetos relacionados aos Tupi guardados no acervo do Museu Nacional já foram tema de discussão em reuniões. “Contei para eles de quando fui lá, das coisas que vi e como queria que eles também vissem. Fico pensando no conhecimento que se foi e nas pessoas que ainda poderiam beber daquela fonte.” Além de lecionar no Colégio Estadual Indígena Tupinambá Serra do Padeiro, ela é estudante da Licenciatura Intercultural Indígena do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia. “A sede que eu tenho de aprender é para ensinar, e esse é também o papel dos museus. O Museu Nacional era um espaço onde as pessoas bebiam da fonte – cada um que passasse por lá saía transformado.”

Jéssica Silva de Quadros - Daniela Alarcon/UOL - Daniela Alarcon/UOL
Jéssica Silva de Quadros
Imagem: Daniela Alarcon/UOL
Entre os jovens da aldeia, apenas Jéssica Silva de Quadros, 27, teve oportunidade de visitar o Museu Nacional, em 2016. “Quando fui ao Rio de Janeiro, conheci lugares lindos, os pontos mais turísticos, o Pão de Açúcar, o Cristo Redentor, mas nada foi tão marcante quanto a ida ao museu. Dói saber que hoje não temos mais aquilo. Artefatos indígenas do nosso povo e de outros povos, a biblioteca de antropologia, os dados históricos, os cadernos dos antropólogos: tudo isso virou cinza.” Para Jéssica, o museu foi vítima de descaso. “Tudo que está relacionado à história e à cultura dos povos indígenas está sendo destruído por negligência dos governantes.”

Antes de visitar o Museu Nacional, a convite do antropólogo João Pacheco de Oliveira, professor titular e curador do Setor de Etnologia e Etnografia da instituição, Rosivaldo Ferreira da Silva, 43, mais conhecido como Babau, cacique dos Tupinambá da Serra do Padeiro, nunca havia entrado em um museu. Mas já escutava dos mais velhos menções à importância do lugar. Para ele, o incêndio foi “uma verdadeira catástrofe”, levando consigo “uma parte bastante significativa da história tupinambá”. 

“No Brasil, infelizmente, os governantes não gostam do futuro, não respeitam o passado e fazem de tudo para apagá-lo. Assim como ocorreu com o Museu Nacional, nossos museus naturais, a céu aberto, nossos sítios arqueológicos também estão sendo destruídos no país todo. Precisamos reagir.”

O cacique destaca ainda as conexões entre o acervo perdido e a garantia de direitos indígenas, inclusive territoriais. “Com a destruição, o Brasil perdeu, o mundo perdeu, mas nós, povos indígenas, perdemos muito mais. O Museu Nacional ainda era um refúgio de pesquisa, de referência. Ele continha o acervo histórico indígena mais importante do país; ali estavam registros que serviram de base para a demarcação de diversas terras indígenas. Sem contar as gravações de povos considerados extintos. Se eles são dados como extintos e as gravações se queimam, eles podem desaparecer definitivamente da história.”

"Era um livro sendo escrito em mim"

“Esses dias, fui até Salvador ver o material arqueológico encontrado no nosso território quando estavam fazendo os estudos para a demarcação, os cacos de pote que eles analisaram e viram que eram tupi”, conta Glicéria. A demarcação da Terra Indígena Tupinambá de Olivença, onde vivem cerca de 5.000 indígenas, começou em 2004 e ainda não foi concluída. Durante os estudos oficiais de identificação e delimitação da área, foram descobertos os fragmentos de cerâmica referidos por Glicéria. “Fui conhecer o Laboratório de Arqueologia da Universidade Federal da Bahia e me voltaram à lembrança os momentos no Museu Nacional.”

Escutá-la descrevendo seu deslocamento pelos espaços expositivos do museu e as marcas que os objetos lhe imprimiram é fazer uma visita guiada a um acervo que já não existe. “Como eram bonitas as peças do ritual de antropofagia tupinambá! No momento em que eu entrava em cada sala, era um livro sendo escrito em mim. Foi como eu me senti ao conhecer os fósseis, ao ver as múmias que poderiam ser do povo Maxakali. Foi muito forte.” Descobertas em uma caverna de Minas Gerais e doadas a Dom Pedro II, as três múmias – uma mulher e dois bebês – foram preservadas naturalmente, fenômeno raro no Brasil.

“Fiquei impressionada de saber que as pessoas tinham o maior cuidado para aquilo ali ser preservado e para que a história pudesse ser contada para os outros. Vi as pessoas passando, as excursões escolares e os professores mostrando aquelas relíquias, várias e várias peças que são inestimáveis, são únicas.”

Entre outros itens das coleções arqueológicas e etnológicas, ela enumera alguns dos que mais lhe causaram impressão: “as canoas enormes, as urnas funerárias, o tapa-sexo de cerâmica para as mulheres moças, para as já mais velhas, as peças dos índios Tikuna do Amazonas, o vídeo da Festa da Moça Nova, as máscaras, as bordunas, os tacapes – aquele arsenal de armas que existiam, mostrando como os indígenas eram aguerridos, como combatiam e estavam sempre lutando para preservar sua cultura”.

Seus interesses transbordaram também para outras coleções em exibição. “O trono africano, quanta riqueza! Quanta riqueza na exposição sobre a África: os orixás, as trocas de conhecimento entre os reis de países africanos, os objetos enviados para o rei de Portugal.” O trono de um rei do Daomé, presenteado a Dom João no começo do século 19, compunha, junto a outros objetos, a exposição “Kumbukumbu – África, Memória e Patrimônio”. “Eu também vi a fauna, a flora, cada pássaro, as borboletas. Naquele momento, vi alguns pássaros que faziam parte da minha infância e que já não existem. Fiquei maravilhada.”

Reconstruir o museu e dar continuidade às atividades de ensino, pesquisa e extensão é crucial, concordam Glicéria, Jéssica e o Cacique Babau. “É preciso que os pesquisadores do museu tenham apoio, não fiquem desamparados e possam seguir com seus trabalhos”, defende Jéssica. “Espero que, daqui para a frente, o governo dê suporte aos professores, estudantes e funcionários.” 

Para o Cacique Babau, "preservar a cultura deve ser uma prioridade”. Glicéria completa: “Ver indígenas estudando naquele espaço, para se tornar mestres e doutores, foi um grande impacto, ver que eles estavam lá para propagar sua história e sua autonomia, mostrando a importância da cultura. Os pesquisadores do Museu Nacional são detentores de saberes, são guardiões de conhecimentos. Desejo que eles sejam cada dia mais aguerridos, que tenham mais força e condições adequadas para trabalhar.”

Refletindo sobre o que acontecerá depois que os escombros esfriarem, Glicéria invoca os “encantados”, entidades não humanas que, conforme os Tupinambá, habitam seu território e são centrais à cosmologia do povo. “Estou esperando que os encantados falem conosco, para dizer o que vem de tudo isso. Espero que essas chamas, que o fogo e a fumaça que se espalharam sobre esses objetos se elevem ao nosso grande pai, ao nosso deus maior, e tragam justiça e sabedoria. Que ele seja justo e traga muito mais do que aquilo que a gente perdeu. Que a terra mostre, revele do seu seio a mais pura, a mais forte, a mais bela cultura que nós povos indígenas temos. E que isso nos mantenha mais fortes."