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Múmia que 'conversava' com D. Pedro 2º estava em ala destruída em incêndio

Caixão lacrado com a cantora-sacerdotisa Sha-amun-em-su, conhecida por entoar cânticos sagrados no templo dedicado ao deus Amon - Divulgação/Museu Nacional
Caixão lacrado com a cantora-sacerdotisa Sha-amun-em-su, conhecida por entoar cânticos sagrados no templo dedicado ao deus Amon Imagem: Divulgação/Museu Nacional

Alex Tajra

Do UOL, em São Paulo

05/09/2018 04h01

Destruído por um incêndio no último domingo (2), o Museu Nacional abrigava uma vasta coleção do Egito Antigo. As principais peças eram provenientes das viagens do imperador Pedro 2º ao Oriente Médio e ao Norte da África entre os anos de 1871 e 1876 --o imperador era um estudioso dos povos árabes e do Oriente Médio. 

O monarca passou por lugares como Síria, Líbano e Palestina, mas foi no Egito que recebeu o presente que mais marcou sua passagem pela região. D. Pedro 2º ganhou do quediva (espécie de imperador do Egito Antigo) Ismail um caixão lacrado com a cantora-sacerdotisa Sha-amun-em-su, conhecida por entoar cânticos sagrados no templo dedicado ao deus Amon. Era com ela que o imperador conversava no Paço de São Cristóvão, o prédio onde hoje é o Museu Nacional.

O sarcófago, feito de madeira estucada e policromada, era parte do acervo egípcio do museu, que contava com mais de 700 peças e era considerado o principal da cultura egípcia na América Latina.

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Sha-amun-em-su morreu com cerca de 50 anos durante a 12ª dinastia do Egito, por volta de 750 a.C. Um exame tomográfico realizado no caixão mostrou que a cantora fora mumificada com vários amuletos, entre eles um escaravelho-coração, artefato utilizado pelos egípcios para “substituir” o coração dos mortos. Os egípcios acreditavam que a morte era um rito de passagem para outro mundo e, portanto, preparavam os mortos, retirando-lhes os órgãos e guardando-os em vasos canopos.

Xodó do imperador

O caixão de Sha-amun-em-su permaneceu por mais de dez anos no gabinete de Pedro 2º, no palácio imperial da Quinta da Boa Vista, no Rio de Janeiro, até a proclamação da República em 1889. Segundo artigo de Marcos Pivetta, publicado na revista "Pesquisa Fapesp" em 2014, a múmia era o "xodó" do imperador, que até trocava algumas palavras com o sarcófago.

"Toda a coleção de múmias do Museu Nacional foi adquirida pelo imperador Pedro 2º, a única que foi dada de presente para Pedro II foi a Sha-amun-em-su”, disse Jorge Lopes, do Núcleo de Experimentação Tridimensional da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), ao UOL. Lopes é um dos responsáveis pelas tomografias e faz parte da equipe de Brancaglion. "Esse caixão em particular nunca tinha sido aberto, isso era muito raro de se encontrar".

Um estudo realizado em 2006 pela equipe do egiptólogo Antonio Brancaglion Júnior, do Museu Nacional, constatou que os egípcios colocaram enchimentos na garganta da sacerdotisa, algo incomum. Os pesquisadores acreditam que ela recebera uma proteção especial para que pudesse cantar no "mundo dos mortos".

"Não temos como afirmar com certeza que toda cantora recebia essa proteção. Mas as provas indicam que sim", disse Antonio Brancaglion Junior ao site "Globo Universidade" em 2014.

Segundo Lopes, não há qualquer informação sobre o estado das múmias do Museu Nacional, que estavam localizadas no segundo andar da instituição, um dos locais mais afetados pelo incêndio e que desabou. "De vez em quando os bombeiros deixam as pessoas do museu entrarem para verificar o que restou, mas o acervo egípcio era um material de fácil combustão".

Para o pesquisador, há uma remota possibilidade das estelas funerárias – espécies de lápides de pedra, onde estão grafados escritos hieróglifos – possam ter resistido ao fogo por conta da resistência do material. “Essa coleção é insubstituível, não tem similar. Foi uma perda realmente absurda”, lamentou Lopes.