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Unicamp diz ao MP que não teve prejuízo com conferência que "desapareceu"

Página do Congresso feito na Unicamp - Reprodução
Página do Congresso feito na Unicamp Imagem: Reprodução

Maurício Tuffani*

Colaboração para o UOL, em São Paulo

01/11/2016 06h00

Uma investigação da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) concluiu que não houve nenhum prejuízo em sua parceria com uma editora chinesa que desde 2010 é acusada de organizar “falsas conferências”. Realizada em 2014, a 3ª ICCEA (Conferência Internacional de Engenharia Civil e Arquitetura) teve seu site removido da internet e os trabalhos de seus participantes foram publicados sem nenhuma referência à universidade e também ao próprio evento.

Antes de sediar em seu próprio campus a 3ª ICCEA, a Unicamp foi alertada por um de seus professores sobre a IACSIT (Academia Internacional de Ciência da Computação e Tecnologia da Informação), conhecida como organizadora de conferências acadêmicas de má reputação, e também por ser considerada uma editora "predatória", aquelas que cobram taxas de autores de artigos, o que é comum, mas que não seguem critérios científicos rigorosos na análise e seleção de trabalhos. 

A conclusão de que a 3ª ICCEA não teria gerado prejuízo para a Unicamp foi o resultado de uma sindicância instaurada pela universidade em fevereiro deste ano, sete meses após ser questionada pelo Ministério Público do Estado de São Paulo.

Trabalhos ‘turbinados’

Os 31 trabalhos apresentados à 3ª ICCEA foram publicados pela IACSIT no IJET (International Journal of Engineering and Technology). Além de não mencionar a conferência nem a Unicamp, os estudos não foram reunidos em uma única publicação, como é o padrão acadêmico. Já em agosto de 2014, logo após o evento, eles foram inseridos em edições online “pré-datadas” de junho a dezembro de 2015 do periódico predatório da editora chinesa.

Além disso, por terem sido publicados sem referência à conferência e não terem sido reunidos em uma edição específica para o evento, os estudos adquiriram o formato de artigos normais de periódicos. Nas avaliações de currículos para concursos, promoções, bolsas e auxílios a projetos de pesquisa, os estudos aceitos por revistas científicas contam mais que os apresentados em congressos.

Em março de 2015, a Folha publicou reportagem informando o registro, em currículos de 30 autores, de trabalhos apresentados na conferência como artigos publicados em periódicos científicos. Dois autores cadastraram seus trabalhos como apresentados a eventos.

Na época, a Unicamp afirmou à Folha que 14 professores da FEC fizeram parte da comissão científica do evento, formada por 41 pesquisadores. No entanto, os estudos não passaram por processo de “peer-review” (revisão por pares) nos padrões de análise e avaliação com apoio de comitê editorial. 

Sumiços

No início deste ano, antes da apuração feita pela sindicância, o site permanente da série anual ICCEA já tinha deixado de funcionar. A série anual de conferências desapareceu da relação de eventos da IACSIT. E a sigla “ICCEA” já estava sendo usada desde o ano anterior para uma “conferência caça-níqueis” pela WASET, outra editora predatória, que afirma ter sede nos Estados Unidos, mas tem revistas registradas na Turquia e celular para contato nos Emirados Árabes Unidos.

Também em janeiro deste ano, a revista IJET não estava mais na relação de periódicos da IACSIT. Reorganizada recentemente, a IACSIT passou a ser apenas organizadora de eventos. E a IJET foi incluída no seu braço editorial IACSIT Press com outras publicações.

A IJET ficou ainda sem direção no período de março a dezembro do ano passado. O editor-chefe da revista se apresentava falsamente como professor da Universidade de Bridgeport, nos Estados Unidos, onde era, na verdade, aluno de doutorado. Ele foi demitido pela IACSIT após a editora ser questionada sobre a falsa qualificação.

"Erosão da confiança"

A avaliação da sindicância de que a 3ª ICCEA não trouxe prejuízos para a Unicamp contraria alertas cada vez mais frequentes na comunidade científica internacional contra a participação em conferências promovidas por revistas predatórias e a publicação de trabalhos nos periódicos dessas editoras.

Para os cientistas e universidades que fazem esses alertas, trabalhos acadêmicos divulgados por meio de conferências de editoras predatórias ou suas revistas correm o risco de ser desprestigiados e até mesmo ignorados pela comunidade científica internacional.

Em outubro do ano passado, 28 instituições de ensino superior dos EUA, integrantes da Associação de Faculdades e Universidades Jesuítas, divulgaram sua “Resolução sobre periódicos predatórios” na qual afirmaram: “Incentivamos todos os estudiosos a evitar a publicação de suas pesquisas em periódicos predatórios e a citar artigos veiculados por eles”.

Em agosto deste ano, por exemplo, essas editoras e suas revistas foram associadas à "erosão da confiança na publicação científica” em estudo publicado no periódico Medicine, Health Care & Philosophy.

‘Antipedagógico’

O geógrafo Marcos Pedlowski, professor da Uenf (Universidade Estadual do Norte Fluminense), tem sido um dos raros pesquisadores brasileiros a se manifestar com frequência contra as publicações predatórias e suas revistas, que ele chama de “trash science” (ciência lixo, em inglês).

Ao tomar conhecimento do relatório da sindicância sobre a conferência 3ª ICCEA por meio da reportagem, Pedlowski afirmou que a investigação da Unicamp desconsiderou o “efeito antipedagógico” da realização desse evento e da publicação de seus trabalhos em parceria da universidade com uma editora predatória.

É um péssimo exemplo de treinamento de pesquisadores mais jovens, pois traz o risco de inocular neles os germes da baixa qualidade. Além disso, é uma forma inaceitável de prestigiar revistas envolvidas com a falta de rigor e o baixo nível” Geógrafo Marcos Pedlowski, professor da Uenf 

“Não podemos nos dar ao luxo de desperdiçar dinheiro público aplicado na pesquisa por meio do envolvimento com editoras predatórias e suas revistas ‘trash’. Isso é completamente inaceitável, ainda mais com a restrição de recursos cada vez maior para a ciência no Brasil”, disse o professor da Uenf.

Respostas evasivas

Print do Google sobre empresa IACSIT - Reprodução - Reprodução
Print do Google sobre empresa IACSIT
Imagem: Reprodução
Não foi difícil para Vinicius Arcaro, professor da FEC (Faculdade de Engenharia Civil da Unicamp), descobrir que a IACSIT tinha má reputação na internet desde 2010. Ainda hoje, uma simples busca no Google sobre a editora já exibia entre as sugestões a expressão “fake conference” (falsa conferência, em inglês).

Em julho de 2014, três semanas antes da realização da 3ª ICCEA, Arcaro fez seu primeiro alerta sobre a IACSIT para a faculdade, que não atendeu seu pedido para cancelar a conferência, baseado nas informações desabonadoras sobre a editora.

Em setembro, ele pediu à reitoria uma sindicância para apurar o caso. Dois meses depois, a reitoria negou o pedido. Um parecer da procuradoria jurídica alegou que faltava na denúncia “documentação robusta que possa indicar a prática de irregularidades”. No mesmo mês o denunciante encaminhou representação à Promotoria do Patrimônio Público de Campinas.

Em julho de 2015, a promotora de Justiça Cristiane Hillal deu à Unicamp prazo de 30 dias para esclarecer os fatos apontados por Arcaro. Após pedir duas prorrogações de prazo, em outubro, a universidade mandou ao Ministério Público uma resposta elaborada pela FEC com muitas evasivas sobre os questionamentos de Arcaro.

Insatisfeita com a resposta da Unicamp, a promotora pediu esclarecimentos novamente.

Apuração restrita

Em fevereiro um parecer da Procuradoria-Geral da Unicamp, alegando novas informações da imprensa e da internet, recomendou à reitoria "a abertura de uma sindicância administrativa para apuração de todos os fatos relacionados ao evento ICCEA 2014” para “apresentar informações consistentes ao Ministério Público”.

Apesar da recomendação jurídica desse objetivo, o reitor José Tadeu Jorge definiu outro, mais restrito. Na portaria que instaurou a comissão encarregada, ele determinou a tarefa de apurar a publicação de trabalhos do evento “em periódico de questionável qualidade”. A comissão reproduziu esses mesmos termos ao explicar, em seu relatório final, qual foi o objetivo da sindicância.

Após ouvir três depoimentos e realizar outros trabalhos, a comissão de sindicância concluiu que a 3ª ICCEA não trouxe “malefícios” para a Unicamp e cumpriu seus objetivos, entre eles o principal, de “possibilitar a troca de experiências entre professores e pesquisadores de diversas universidades do Brasil e de outros países”. A publicação de trabalhos não foi a intenção prioritária, segundo o relatório final.

Ao se concentrar no tema da publicação dos artigos da 3ª ICCEA, conforme o objetivo definido pelo reitor, o relatório final minimizou e até desconsiderou vários dos fatos denunciados sobre a conferência.

O relatório se alongou com assuntos que nada têm a ver com as denúncias sobre a 3ª ICEEA. Por exemplo, com a publicação de trabalhos em periódicos que não seriam os que "gozam de maior prestígio em determinadas áreas em função de seu impacto, relevância ou antiguidade", mas os que estão "ainda sem intenso reconhecimento acadêmico, sobretudo internacional".

Em outras palavras, em vez de considerar o caráter predatório do IJET, a sindicância tratou o periódico da famigerada IACSIT como uma revista que apenas não tem “grande prestígio”.

Sem ter sido informada sobre a conclusão do relatório da sindicância que solicitara em março, a promotoria, em julho deste ano, deu 30 dias para a universidade enviar o documento. Em agosto, o Procurador-Geral da Unicamp, Octacilio Machado Ribeiro, alegou dificuldades com a greve prolongada e pediu ao MP prorrogação por 20 dias, sem informar que a apuração fora concluída em maio.

Em setembro, a Unicamp enviou à promotoria cópias do relatório final da sindicância e demais documentos produzidos pela comissão, entre eles os três depoimentos tomados, além de novo parecer jurídico que afirmou a legalidade dos procedimentos adotados e concordou com a proposta de arquivamento do processo.

Depoimento contestado

Afastado da Unicamp desde o início do ano para um período na Universidade Estadual de Ohio, nos Estados Unidos, o professor Vinicius Arcaro, autor da denúncia sobre a conferência, prestou depoimento à sindicância em março pelo Skype. A reportagem encaminhou a ele por e-mail cópias do relatório e de outros documentos a que teve acesso no processo do Ministério Público.

Arcaro não respondeu à maior parte das perguntas da reportagem. Mas disse que foi “constrangedor e ao mesmo tempo lamentável ter sido surpreendido” por informações sobre a conclusão da sindicância por meio da imprensa, e não pela Unicamp. E afirmou também que, diferentemente dos termos de depoimento das outras duas pessoas ouvidas pela comissão, que defenderam a 3ª ICCEA, “[o termo de depoimento a mim atribuído pela comissão] não contém minha assinatura nem qualquer evidência da minha concordância com o seu conteúdo, que, acrescento, omite fatos importantes colocados à disposição da comissão de sindicância. Infelizmente, serei obrigado a contestar esses documentos nas instâncias competentes".

A promotora de Justiça Cristiane Hillal, encarregada do inquérito civil sobre a conferência 3ª ICCEA 2014, não comentou o assunto.

Outros lados

O reitor da Unicamp, José Tadeu Jorge, o procurador chefe da universidade, Octacilio Machado Ribeiro, e o presidente da comissão de sindicância, Antonio Carlos Bannwart, que é diretor da Faculdade de Engenharia Mecânica, não responderam a todas as perguntas enviadas pela reportagem, entre elas a questão sobre a contestação do professor Vinicius Arcaro ao termo de depoimento atribuído a ele.

A procuradoria geral da universidade afirmou em nota que seus pareceres sobre os processos em geral analisam os aspectos formais, sem participar dos trabalhos das comissões encarregadas da apurações. E acrescentou que os documentos juntados na sindicância não indicam qualquer nulidade do processo e que o procurador chefe não integrou os trabalhos da sindicância.

A nota da procuradoria da Unicamp afirmou também que “não há discrepância entre o sugerido” no parecer que recomendou a apuração e o objetivo indicado na portaria de instauração da sindicância, “haja vista, inclusive, o relatório elaborado, que apreciou todas as questões".

A editora chinesa IACSIT, a IACSIT Press e o periódico IJET não responderam às perguntas enviadas pela reportagem.

* Maurício Tuffani é editor do blog Direto da Ciência.