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Clique Ciência: por que cruzar animais de espécies diferentes?

Tatiana Pronin

Do UOL, em São Paulo

19/08/2014 06h00

Você já ouviu falar no "ligre", uma mistura de leoa e tigre? E que tal ir ao zoológico para ver um "zebralo", mistura de zebra com cavalo? Animais híbridos como esses vez ou outra são encontrados na natureza, ou surgem naturalmente em grupos de animais mantidos em cativeiro.

Em alguns casos, porém, são fruto de experimentos com o objetivo de estudar características genéticas ou gerar animais com algum tipo de vantagem para o ser humano. É o caso da mula (cruzamento de égua e jumento), o híbrido mais conhecido no Brasil: ela é mais resistente que as espécies que lhe deram origem, portanto tem sido útil como animal de carga.

Até que ponto cruzar espécies diferentes pode ter implicação ética? Em primeiro lugar, é importante ressaltar que os híbridos "acontecem" na natureza. A bióloga Vera Solferini, professora do departamento de Genética e Evolução da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), explica que isso ficou ainda mais claro com o uso de métodos moleculares em pesquisa.

"Sabemos que houve muitos cruzamentos na natureza, por exemplo, entre lobos e coiotes", afirma. “Em alguns casos, a zona híbrida se mantém. Em outros, os animais deixam de ser híbridos para se transformar em uma nova linhagem.”

Ela relata que é comum cientistas cruzarem drosófilas, as moscas-da-fruta, para obter conhecimentos sobre genética, o que não gera consequências para o meio ambiente.
Já entre criadores de gado, é frequente o cruzamento de espécies para a geração de animais mais robustos, ou que oferecem mais leite, assim como há o melhoramento genético para obtenção de frutas e outros vegetais de melhor qualidade.  Isso pode ser feito simplesmente com a união em cativeiro de espécies que vivem em áreas diferentes, como o gado europeu e o indiano. Ou também pode ser realizado via inseminação artificial.

Nem todos são inférteis

Muitos animais híbridos são inférteis, como é o caso, famoso, da mula. Mas nem todos. E essa característica nem depende da proximidade entre as espécies. "O que determina é o número de cromossomos", explica o veterinário Carlos Alberto Muller, pesquisador do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz). O número varia entre as espécies e é preciso que haja um par resultante.

Recentemente, um zoológico particular em Oklahoma, nos Estados Unidos, colocou um leão em contato com uma "ligre" (mistura de tigre e leão), que já vivia no local. Houve um cruzamento e a fêmea gerou os primeiros "liligres" de que se tem notícia, provando que nem todo híbrido é estéril. 

A fim de evitar equívocos, Carlos Alberto Muller lembra que o cruzamento entre raças diferentes, como cães, não configura hibridismo. Os cachorros resultantes são mestiços, mas são da mesma espécie. Mesmo o husky siberiano, que muita gente acredita ser um híbrido, é uma raça canina, apesar de estudos apontarem o lobo como seu antepassado.

Híbridos humanos?

Se há tantos exemplos de animais híbridos na natureza, por que não vemos misturas envolvendo humanos? Simplesmente porque não convivemos com espécies diferentes de hominídeos. Lembre-se que macacos, bonobos e gorilas são de gêneros e famílias diferentes, embora esses animais e os homens façam parte da ordem dos primatas.

Estudos genéticos têm mostrado, no entanto, que um grupo de Homo sapiens primitivo chegou a conviver com os Homo neanderthalensis. E, bem, parece que eles se entenderam e geraram descendentes férteis. Dois estudos científicos recentes mostram, inclusive, que é possível encontrar até 20% de genoma neandertal em humanos modernos. E o cruzamento pode ter sido vantajoso para a espécie atual, tanto que só ela sobreviveu.

Quimeras

Há alguns anos, circularam alguns textos na internet criticando a facilidade com que os cientistas podem criar híbridos de humanos e animais em laboratório. Um deles até acompanhava a imagem de uma escultura da artista plástica Patricia Piccinini, uma mulher-cadela amamentando seus filhotes.

Existem experiências envolvendo quimeras em laboratório, mas nenhuma delas resultou em um ser vivo híbrido até hoje. Em 2003, cientistas da Shanghai Second University, na China, fundiram células humanas a óvulos de coelhos. Os embriões se desenvolveram por alguns dias, mas foram destruídos para a retirada de células-tronco. O mais provável é que acabassem morrendo mesmo.

Outro exemplo conhecido é de cientistas da Mayo Clinic, em Minnesota, nos EUA, que chegaram a criar porcos com sangue humano para estudos (e eles não ganharam nenhum atributo de gente por causa disso). Vale lembrar que indivíduos receberam válvulas cardíacas de porcos e, tecnicamente, também são uma mistura entre espécies.

Estudos em biotecnologia são caros e envolvem financiamento, o que, por sua vez, depende da aprovação de rigorosos comitês de ética. Uma coisa é criar uma quimera em laboratório. Outra, bem diferente, é um embrião formado a partir de células derivadas de seres geneticamente diferentes sobreviver. Pelo menos por enquanto, estamos livres de encontrar um minotauro ou uma criatura parecida andando na rua.