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Trauma na infância altera funcionamento do DNA favorecendo a agressividade

Imagem mostra alterações na expressão do DNA em indivíduos que tinham status socioeconômico baixo e normal quando eram crianças. É possível ver como os padrões se alteram, onde em um indivíduo com poder socioeconômico os marcadores ficam verdes, nos mais pobres ficam vermelhos e vice-versa  - Lilian Ferreira/UOL
Imagem mostra alterações na expressão do DNA em indivíduos que tinham status socioeconômico baixo e normal quando eram crianças. É possível ver como os padrões se alteram, onde em um indivíduo com poder socioeconômico os marcadores ficam verdes, nos mais pobres ficam vermelhos e vice-versa Imagem: Lilian Ferreira/UOL

Lilian Ferreira*

Do UOL, em Montreal

07/04/2014 16h19

A epigenética estuda há mais de 50 anos as alterações que o ambiente produz na expressão do DNA. Nas últimas pesquisas desta linha, cientistas têm relacionado abuso na infância a estas alterações que levam à agressividade na vida adulta. Para quebrar este ciclo, novos fármacos podem ser desenvolvidos para atuar diretamente no código genético. Esta discussão abriu o Congresso Cérebro, Comportamento e Emoções, que ocorre em Montreal, no Canadá, de 7 a 9 de abril.

O professor de farmacologia e genética da Universidade McGill, no Canadá, com pós-doutorado na Escola de Medicina de Harvard, nos EUA, Moshe Szyf, explica que estas alterações aparecem influenciadas pelo ambiente quando a seleção natural é ineficaz ou seria muito demorada.

Estudos

Para estudar o princípio, neurônios do hipocampo de ratos de 6 dias foram tratados com ácido por duas horas. Quando foi feita a análise de genoma, viu-se que 71,7% do DNA não mudou, mas alguns tiveram suas funções alteradas.

“É como se cada escritório mudasse sua atividade, uns mais e outros menos, para se adaptar ao ambiente. E, se isso é verdade, temos que pensar como os genes podem ser alterados durante a gestação, já que temos um padrão constante, mas que é influenciado pela experiência”, afirma.

As alterações podem ocorrer ao longo da vida e também ser transmitidas por gerações. “Eventos na infância e ocorridos com gerações anteriores definem a epigenética, mas cada nova interação age em cada interação prévia e vai formando uma expressão um pouco diferente”.

Partindo deste conhecimento, pesquisas avançaram para relacionar o cuidado materno na infância com alterações na expressão do DNA em diversos sistemas. A conclusão foi que pessoas abusadas quando criança têm uma mudança neste padrão do genoma em todo o corpo.

Stephen Suomi, que faz pesquisas com macacos rhesus para o Instituto Nacional de Saúde da Criança e Desenvolvimento Humano (NICHD) dos EUA, constatou que o abuso e separação da mãe no início de vida dos macacos traz alterações profundas para os filhotes, que se tornam mais agressivos.

As fêmeas que sofreram abuso na infância ficam mais agressivas, mas não são separadas do grupo, e quando adultas têm filhotes que também são mais agressivos. Mas então, a agressividade vem do genoma passado pela mãe abusada ou pelo abuso cometido por ela?

“A agressividade vem tanto do genoma da mãe, que já foi abusada na infância, quanto da separação do filho/a na existência de uma figura materna”, explica Suomi ao UOL.

O pesquisador explica que para estes macacos o contato com a mãe é muito intenso nos primeiros anos de vida. É a mãe que vai servir de base para ele explorar o ambiente e se relacionar com outros membros do grupo.

Os machos excluídos pelas mães também são excluídos pelo grupo, não aprendem a socializar e se tornam muito agressivos e solitários, representando de 5 a 10% do total de macacos.

“Em um experimento, pegamos filhotes de mães normais e colocamos com mães que foram abusadas e que os afastaram do grupo: 60% deles se tornaram agressivos. Do lado contrário, pegamos macacos de mães agressivas e colocamos com avós postiças, macacas que já tiveram sua prole, e 100% não se tornaram agressivos. Então, sabemos que ambos influenciam, mas a separação no início da vida tem um fator dominante”.

Já os macacos excluídos, quando criados junto com colegas tornam-se mais tímidos e não sabem a diferença clara entre brincar e brigar, por exemplo.

Baixa serotonina, mais agressividade

Ao analisar o DNA dos macacos, o pesquisador pôde ver alterações na expressão de alguns genes e em regiões do cérebro relacionados à serotonina, neurotransmissor ligado ao prazer, e sua falta, à agressividade.

As mesmas alterações foram vistas em indivíduos que reportaram ser solitários e que provavelmente também sofreram abusos na infância, em estudo realizado em 2007, por John Cacioppo.

Linda Booij, da equipe de Szyf na Universidade McGill, detalha um estudo que está em revisão para ser publicado neste ano, que seguiu crianças dos 6 aos 26 anos, e percebeu alterações nos genes ligados ao transporte de serotonina naquelas que passaram por estresse na infância. “As enzimas [que alteram como o DNA se manifesta] são produzidas e alteradas até a vida adulta”, diz.

“Fizemos um estudo com gêmeos, que possuem o mesmo genoma, mas comportamento diferente, quando tinham 5 meses até os 16 anos. Vimos variações na expressão do DNA em 37 pares de genes, sendo que 96% deles continuavam iguais em ambos”, explica a cientista.

“22 pessoas apresentaram correlação entre alterações na expressão do DNA e na quantidade de serotonina, sendo que quanto maior a alteração, menor a serotonina”, conta. Booij afirma que quatro novos estudos estão sendo feitos e que já puderam perceber que o abuso na infância está diretamente ligado às alterações na ativação do DNA e no transporte da serotonina, além de influenciar no tamanho do hipocampo no cérebro e na reação a emoções.

Richard Tremblay, professor de pediatria e psiquiatria na Universidade de Montreal, no Canadá, cita uma pesquisa com 600 pares de gêmeos e 2.223 crianças feita em 1997 e 1998 para analisar a agressividade de crianças. “A conclusão é que não é a pobreza ou a falta de educação que leva a agressividade em crianças de até 3,5 anos. Já a agressão em adolescentes tem causas relacionadas a gravidez na adolescência, desnutrição, pobreza, entre outros. E essas mães têm filhos e filhas agressivos, o que só propaga o ciclo”.

Szyf afirma que o abuso infantil e a adversidade social fazem com que alguns genes respondam de forma organizada. “As pessoas abusadas têm genes abusados”. Ele destaca que como não é possível fazer um estudo randomizado de pessoas abusadas, outro estudo com sofrimento da mãe na época da gravidez, feita em Quebec, mostra que o estresse sofrido, tanto por mulheres com melhor ou pior situação social, provoca diferença na expressão do DNA e também na formação de células T, de defesa do organismo contra doenças.

Abusados também têm menos resistência a doenças

Quando os jovens agressores da pesquisa citada por Tremblay foram estudados, viu-se que eles tinham a expressão do DNA alterada e que isto impactava em um menor nível de plasma e níveis deficientes de células imunológicas T e monócitos.

Na pesquisa com macacos rhesus excluídos, alguns genes subexpressos estão ligados a imunoglobina e outros com padrões de inflamação.

Em 1958, foi feito um estudo com 40 pessoas que passaram por adversidade econômicas no começo da vida e que mudaram seus status social com o tempo. Elas foram divididas em quatro grupos, os que sofreram grande adversidade no início da vida e os que não sofreram, e os que enfrentavam dificuldades ou não após 45 anos.

“O que puderam perceber é que a assinatura de adversidade no início da vida tem consequências tanto para a saúde física quanto mental”, explica Szyf, indicando que mesmo os que melhoraram de vida mantém a assinatura.

Remédio epigenético

Para ele, é aí que a epigenética pode ser útil, pois seria possível usar remédios para alterar a expressão do DNA e “corrigir” expressões que não são úteis.

“Não podemos mudar mutações que causam Alzheimer, por exemplo, mas vemos que há alterações na expressão de genes no hipocampo e no córtex cerebral. Vemos os mesmos sinais em pacientes com câncer e outras doenças. Podemos, então, tratar com epigenética para alterar uma parte da patologia genética”, diz o farmacologista.

Um teste foi feito com ratos, tratados por 3 meses antes de apresentar sintomas, com suplementos e conseguiu-se melhorar sua habilidade cognitiva. “Esse é só o princípio. Temos que entender não só o que acontece no cérebro, mas como tratar e pré-tratar doenças”.

Booij concorda: as alterações no DNA podem ser usadas para identificar riscos de problemas emocionais, por exemplo, e proporcionar tratamento adequado.

“O ambiente modifica a programação genética com mais eficiência do que intervir diretamente no genoma”, conclui Tremblay, o que permite uma intervenção preventiva para evitar o desenvolvimento de doenças.

O que é a epignética?

A epigenética busca explicar como o ambiente altera a expressão do DNA partindo do fato de que um mesmo genoma produzir fenótipos diferentes, para expressar tanto a célula de fígado quando a cor do olho, por exemplo. 

“A ideia é que tudo está determinado no genoma, mas ele tem capacidade de mudar. Temos o processo de diferenciação do genoma em diferentes células. Assim, alguns genes podem estar ativos ou não e expressar esta ou aquela característica”, explica Szyf, que lembra que isto não é uma mutação genética, quando o gene em si muda.

A bioquímica mostra claramente quais genes estão ativados e como eles são alterados por interferências externas, sejam químicas, biológicas ou sociais. “Sinais externos da mãe para o filho, seja de ambiente de pobreza ou riqueza, frio ou calor, dias ou noites mais longas, tudo isso é disparado para as crianças. Sabemos que esses sinais externos não são determinados no genoma, mas o influenciam”, conclui ao afirmar que as diferentes experiências que passamos na vida determinam o genoma.

O nome científico para isso são genes metilados, que são os que apresentam mudanças químicas, ligações diferentes de compostos, que irão fazer aquele DNA se expressar ou não. E ao analisar o genoma de uma pessoa é possível saber, por estas alterações, se a mãe morou no Equador ou na Suécia, por exemplo.

O pesquisador diz que não é possível separar corpo e mente, que o ser humano tem interação com o ambiente, com outros seres e com a sociedade, que ativam mudanças na expressão do DNA para uma função adaptada. “Entendemos tanto o bem-estar quanto a enfermidade como fatores para adaptação”. 

*A jornalista viajou a convite da organização do Congresso Cérebro, Comportamento e Emoções