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Homem sem memória era viciado em palavras cruzadas

Por Benedict Carey

The New York Times

08/12/2010 16h06

Ele fazia duas palavras cruzadas por dia, às vezes mais, analisando a lista de dicas numa ordem estrita, como se fosse para lembrar-se de onde estava. E, talvez, do que estava fazendo.

Henry Gustav Molaison – conhecido na maior parte de sua vida apenas como H.M., para proteger sua privacidade – tornou-se o paciente mais estudado na história da ciência cerebral desde 1953, quando uma operação experimental em seu cérebro o deixou, aos 27 anos, incapaz de formar novas memórias.

Até sua morte num asilo em 2008, Molaison cooperou em centenas de estudos, ajudando cientistas a identificar e descrever as estruturas do cérebro essenciais para adquirir novas informações. Ele fez testes de memória; preencheu questionários; submeteu-se a varreduras cerebrais e realizou inúmeros procedimentos de pesquisa, cada vez como se fosse a primeira.

Em meio a isso tudo ele fazia palavras cruzadas, livros e mais livros delas, um hábito que havia desenvolvido ainda adolescente. Perto do fim de sua vida, ele mantinha um livro de palavras-cruzadas e uma caneta sempre com ele, numa cesta presa a seu andador. Essa atividade abriu uma janela no cérebro e demonstrou o poder dos quebra-cabeças, e suas limitações, em expandir uma mente danificada.

“Para alguém com essa profunda amnésia, a questão era: por que, dentre todos os passatempos existentes, ele consideraria as palavras-cruzadas tão reconfortantes?” disse o Dr. Brian Skotko, colega clínico em genética no Hospital Infantil de Boston. “Bem, num mundo que passava zunindo e nem sempre era fácil de compreender, imagino que encontrar soluções lhe trazia grande satisfação. Ele tinha aqueles livros de palavras cruzadas por perto dia e noite, e se voltava a eles quando não havia nada acontecendo. Era sua atividade de escape”.

Numa série de experimentos, Skotko liderou uma equipe da Universidade Duke e do MIT e usou palavras cruzadas para testar a aptidão de linguagem de Molaison, além de sua capacidade de aprender novos fatos.

Como se esperava, as perguntas o desconcertavam muito caso tratassem de eventos ocorridos depois de 1953, o ano em que um cirurgião removeu duas fatias de tecido de seu cérebro para aliviar ataques crônicos e graves. Essas fatias incluíam uma estrutura chamada hipocampo, que hoje os cientistas sabem ser essencial para adquirir as chamadas memórias declarativas – aquelas relativas a pessoas, lugares e fatos. O mandato de Nixon, a guerra do Golfo, o nascimento da Starbucks, a bolha da internet e seu estouro – tudo isso chegou e passou sem deixar qualquer traço acessível em sua memória.

Mesmo assim, os pesquisadores descobriram que Molaison era um competente solucionador de quebra-cabeças, em comparação a pessoas saudáveis de sua idade e quando dependia do que havia aprendido nos anos antes da operação. Ele sabia da quebra da bolsa de 1929, da Grande Depressão e de Pearl Harbor. Suas habilidades de linguagem, uma vez adquiridas e trazidas de suas então intactas áreas superiores do hipocampo, no córtex, eram totalmente independentes, protegidas contra danos cirúrgicos.

“Nós descobrimos que a linguagem aprendida é uma forte dinâmica”, afirmou Skotko. “Ele frequentemente descobria respostas às dicas que outras pessoas não conseguiam”.

Molaison impressionou pesquisadores ao longo dos anos ao aprender alguns fatos novos, segundo Suzanne Corkin, professora do departamento de ciências cerebrais e cognitivas do MIT que trabalhou com ele nas últimas décadas de sua vida. Ele sabia que Archie Bunker chamava seu enteado de “Meathead” no programa da década de 70 chamado “All in the Family”, um de seus favoritos. Ele sabia que Raymond Burr interpretara um detetive na TV. Ele sabia a respeito do homem na lua, disse ela, talvez por seu interesse vitalício em foguetes.

Em particular, segundo Corkin, ele parecia ser capaz de atualizar memórias anteriores a 1953. Para ver se o seu amor pelas palavras cruzadas poderia ajudar nesse processo, Skotko, Corkin e outros conduziram outro estudo, desta vez testando a habilidade de Molaison em responder dicas pós-1953 que tivessem perguntas pré-1953. Por exemplo: “Doença infantil tratada com sucesso pela vacina de Salk” (anunciada em 1955); e “Pacto, aliança militar entre 7 nações comunistas da Europa criada em oposição à Otan” (também 1955).

Após repetidos testes nas mesmas charadas, o homem que perdeu a memória aprendeu a escolher as respostas certas.

“Descobrimos que ele conseguia aprender novas informações semânticas e factuais, desde que tivesse algo em sua memória onde se apoiar”, explicou Skotko.

Molaison, que cresceu em Hartford, Connecticut, certamente saberia a respeito da paralisia infantil; a cidade enfrentou forte epidemia durante sua infância, disse Corkin, também nativa de Hartford – e que, embora mais jovem, se lembra claramente.

“Isso teria sido uma memória emocional; ele seguramente conhecera pessoas que tiveram a doença, talvez até alguém que morreu dela”, disse a pesquisadora.

Essa emoção, segundo ela, parecia aprimorar sua habilidade cerebral de atualizar memórias anteriores.

Pelo menos dois processos podiam estar agindo quando H.M. aprendia fatos novos, segundo Corkin. Um é um fraco sinal do tecido ao redor de seu hipocampo que sobreviveu à cirurgia; pesquisas recentes mostram que essas áreas do entorno são ativas na percepção de fatos novos.

Mas pesquisas também sugerem que, ao recuperar uma memória armazenada, o cérebro sempre a atualiza e remodela. Esse processo, chamado de reconsolidação, ocorre em regiões corticais mais altas – que ficaram intactas no cérebro de Molaison. Porém, a retenção das atualizações depende aparentemente do hipocampo. Depois que parou de praticar as palavras cruzadas do estudo, H.M. logo esqueceu as respostas pós-1953 que havia aprendido.

Não que ele se importasse. Numa entrevista em 1992, ele admitiu a Corkin que realmente tinha problemas em se lembrar das coisas.

“Algo que descobri é que passo muito tempo com palavras-cruzadas”, disse ele. “E, bem, isso me ajuda, de certa forma”.

Isso o ajuda a se lembrar? Perguntou Corkin.

Sim, respondeu ele. E acrescentou: “E também dá para se divertir enquanto as resolve”.