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As polêmicas sobre o acordo entre Brasil e EUA para uso do centro espacial de Alcântara

João Fellet - @joaofellet

Da BBC News Brasil em São Paulo

20/03/2019 17h25

Um dos principais resultados da visita do presidente Jair Bolsonaro aos Estados Unidos nesta semana, o acordo que prevê o uso pelos EUA do Centro de Lançamento de Alcântara, no Maranhão, divide especialistas e gera temores em comunidades da região.

O governo Bolsonaro afirma que o acordo - cujo conteúdo ainda não foi divulgado - estimulará o desenvolvimento do Programa Espacial Brasileiro e poderá gerar investimentos de até R$ 1,5 bilhão na economia nacional.

Críticos do pacto apontam, porém, possíveis entraves à transferência de tecnologias para o Brasil, riscos à soberania nacional e efeitos nocivos para moradores de Alcântara, entre os quais remoções de comunidades quilombolas.

Município com 22 mil habitantes a cerca de 100 km de São Luís, Alcântara fica numa península com localização privilegiada para o lançamento de foguetes e satélites. Próximo à linha do Equador, o centro - inaugurado pela Força Aérea Brasileira (FAB) em 1983 - possibilita uma economia de até 30% no combustível usado nos lançamentos.

No entanto, como o setor é pouco desenvolvido no Brasil e tentativas anteriores de parcerias não prosperaram, a instalação jamais foi utilizada para lançamentos de satélites.

Proteção de patentes

Em nota, o Ministério de Ciência e Tecnologia afirma que o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas firmado por Bolsonaro e pelo presidente americano, Donald Trump, permitirá aos EUA e outras nações lançarem satélites a partir de Alcântara.

Segundo o órgão, acordos semelhantes são adotados por países como China, Rússia e Índia, e buscam "a proteção de patentes e tecnologias".

O ministério diz que o acordo também prevê o desenvolvimento de satélites com participação do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e do Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA), entre outras entidades ligadas ao órgão. Não foram divulgados detalhes de como será essa participação e se os órgãos brasileiros terão acesso a tecnologias americanas.

Para vigorar, o acordo terá de ser aprovado pelo Congresso brasileiro.

Acordo Brasil-EUA nos anos FHC

Em 2000, o governo Fernando Henrique Cardoso negociou uma parceria sobre Alcântara com os EUA, mas o pacto foi rejeitado por parlamentares brasileiros. Na época, políticos contrários à parceria argumentaram que o documento feria a soberania nacional.

Um dos pontos polêmicos do acordo tratava da entrada dos componentes americanos no Brasil. O texto definia que os itens poderiam ingressar em contêineres lacrados, sem qualquer inspeção. Outro ponto proibia o uso de recursos gerados pelo centro de Alcântara no desenvolvimento de foguetes lançadores brasileiros.

Segundo o embaixador brasileiro nos EUA, Sérgio Amaral, as críticas que levaram à rejeição do acordo em 2000 foram solucinadas no novo pacto. Mas as mudanças também não foram detalhadas.

A negociação entre os dois países foi retomada no governo de Michel Temer. Em 2017, o Brasil enviou uma sugestão de texto para os EUA, que responderam em 2018.

Salvaguardas tecnológicas

Para Erica Resende, professora adjunta de Relações Internacionais da Escola Superior de Guerra, Alcântara tem o potencial de rivalizar com o Centro Espacial de Kourou, na Guiana Francesa, principal base de lançamentos da Agência Espacial Europeia.

Ela diz, no entanto, que o acordo com os EUA apresenta pontos problemáticos. Um deles é a adoção de salvaguardas (proteções) tecnológicas - o que, segundo ela, impedirá a transferência de tecnologias para o Brasil.

Resende diz que, na prática, o Brasil alugará o centro para os Estados Unidos, que decidirão quais países poderão usá-lo e quem terá acesso às tecnologias. É improvável, segundo ela, que os EUA autorizem o uso do centro para lançamentos da China, país que tem investido muito no setor aeroespacial e poderia se interessar em utilizar Alcântara.

"A base tem um custo de manutenção muito alto, e o ônus será do Brasil. Não está claro qual será o ganho econômico do acordo com os EUA", diz Resende.

Parceria com Ucrânia

Em 2004, após a rejeição do acordo fechado por FHC, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva negociou uma parceria com a Ucrânia para explorar o centro. O país da Europa Oriental herdou tecnologias espaciais dos tempos em que integrava a União Soviética. A parceria foi anulada em 2015 em meio a críticas aos altos custos e poucos resultados da iniciativa.

Antes da parceria com a Ucrânia, o Brasil passou anos tentando desenvolver um foguete Veículo de Lançamento de Satélites (VLS). Houve três tentativas frustradas de lançá-lo de Alcântara - na última delas, em 2003, o foguete explodiu em solo, causando 21 mortes.

Desde então, o governo decidiu focar o desenvolvimento do Veículo Lançador de Microsatélite (VLM). Mais baratos, os satélites menores têm ganhado mercado na produção de imagens de vigilância, navegação por GPS e comunicação por internet.

Segundo Resende, diferentemente do acordo firmado com os EUA, a parceria com a Ucrânia previa a transferência de tecnologias para o Brasil.

Documentos diplomáticos divulgados pelo WikiLeaks revelam que os EUA viam com preocupação a parceria entre Brasil e Ucrânia.

Em 2009, o Departamento de Estado americano expressou à Embaixada dos EUA em Brasília a posição do órgão diante do pedido da Ucrânia para que os americanos reconsiderassem sua recusa em apoiar a parceria de Alcântara.

"Queremos lembrar às autoridades ucranianas que os EUA não se opõem ao estabelecimento de uma plataforma de lançamentos em Alcântara, contanto que tal atividade não resulte na transferência de tecnologias de foguetes ao Brasil", dizia a mensagem do Departamento de Estado.

Para Resende, o documento levanta dúvidas sobre a disposição dos EUA em colaborar com o Brasil no desenvolvimento do setor. "É estranho que, passados dez anos, os americanos tenham mudado tanto que agora venham com uma retórica de cooperação", ela diz.

Extraterritorialidade

Outro ponto questionável do acordo, segundo a professora, é a restrição de acesso a partes da base, que estaria prevista numa cláusula de extraterritorialidade. Segundo Resende, os americanos argumentam que a medida busca minimizar os riscos de espionagem tecnológica.

Mas ela diz que a cláusula criaria um espaço no qual o Estado brasileiro não teria soberania, cenário que sempre foi rejeitado por autoridades nacionais.

Resende afirma que após o 11 de Setembro, por exemplo, o Brasil não cedeu às pressões dos EUA para criar espaços extraterritoriais em portos brasileiros onde americanos pudessem vistoriar as cargas que seriam exportadas para o país.

O Brasil também sempre se opôs à instalação de bases americanas em países vizinhos, diz ela.

Segundo Resende, as bases costumam provocar impactos indesejáveis onde são instaladas, como aumento no consumo de álcool, violência e prostituição.

Ela afirma que em países que abrigam bases dos EUA, como as Filipinas e o Japão, muitos militares americanos que praticam atos ilícitos escapam de punições por causa da cláusula de extraterritorialidade - o que gera revolta entre moradores locais.

No caso de Alcântara, diz Resende, o centro agregará mais civis do que militares, mas ainda assim a presença estrangeira deve provocar impactos.

Elogios ao acordo

Em entrevista à BBC News Brasil na terça-feira, o embaixador aposentado Roberto Abdenur - que chefiou a Embaixada do Brasil nos EUA entre 2004 e 2006 - elogiou o acordo com os EUA e criticou a parceria com a Ucrânia.

"O entendimento com a Ucrânia era precário, a Ucrânia não teria condições plenas de cumprir com tudo que seria necessário. Perdeu-se tempo, perdeu-se dinheiro e não se conseguiu nada."

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Segundo ele, como os EUA detêm 80% do mercado global de componentes de satélites, é difícil explorar o setor sem o aval do país.

"Eu realmente acho muito positivo esse acordo porque vai se viabilizar pela primeira vez, ainda que com muito atraso, a base de Alcântara. Como disse o ministro de Ciência e Tecnologia (Marcos Pontes), com esse entendimento com os EUA será fácil seguirmos com entendimento com outros países. Não queremos que apenas os Estados Unidos usem a base", disse Abdenur.

O embaixador afirmou ainda que, segundo pessoas que conduziram as negociações, foram resolvidos "os problemas de prejuízo à nossa soberania que existiam na primeira versão do acordo, do ano 2000".

Quilombolas de Alcântara

O acordo com os EUA também gera críticas e temores entre moradores de Alcântara.

Lideranças locais dizem que no município há mais de 200 comunidades quilombolas, agrupadas em três territórios. As áreas ainda não tiveram os processos de titulação finalizados.

O centro de lançamentos fica dentro de um dos territórios pleiteados, que ocupa uma área equivalente a 78 mil campos de futebol - e abriga 108 comunidades.

Dessas, mais de 40 teriam de ser despejadas caso a ampliação do centro estudada desde os anos 2000 seja levada a cabo, diz à BBC News Brasil Servulo Borges, militante do movimento quilombola de Alcântara. Ele diz acreditar que o acordo com os EUA acelerará os planos de ampliação.

Convenção 169 da OIT

Borges afirma ainda que os moradores não foram consultados sobre o acordo com os EUA - o que, segundo ele, fere a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais.

Ratificada pelo Brasil em 2002, a convenção determina que esses grupos devem ser consultados sobre medidas governamentais que tenham impacto sobre eles.

O documento também postula que "os povos interessados deverão ter o direito de escolher suas próprias prioridades no que diz respeito ao processo de desenvolvimento na medida em que ele afete as suas vidas, crenças, instituições e bem-estar espiritual, bem como as terras que ocupam ou utilizam de alguma forma".

Em 2007, ao analisar uma disputa envolvendo o próprio centro de Alcântara, a Justiça Federal reconheceu a aplicação da Convenção 169 para comunidades quilombolas.

Na ocasião, o juiz José Carlos do Vale Madeira, da 5ª Vara Federal do Maranhão, determinou que a direção do centro não poderia impedir que 47 quilombolas fizessem roças em áreas de onde foram expulsos para a instação do centro.

A BBC News Brasil questionou a Presidência da República, o Ministério da Ciência e Tecnologia e a Força Aérea Brasileira sobre possíveis impactos do acordo para quilombolas de Alcântara, mas não recebeu respostas até a publicação desta reportagem.

Expulsão de famílias

O conflito na região remonta à década de 1980, quando uma área onde viviam 312 famílias foi desapropriada para a construção da base. As famílias foram realojadas para sete "agrovilas" concebidas por militares.

Segundo Borges, a transferência "descaracterizou o modo de organização social" das comunidades, impondo-lhes condições "completamente diferentes da vida no quilombo" e semelhantes às de assentamentos de reforma agrária.

O quilombola Nonato Masson, advogado do Centro de Cultura Negra do Maranhão, diz que os quilombos de Alcântara viveram sem interferências externas de 1700 até o fim da década de 1970, quando o governo se moveu para construir o centro de lançamentos.

Ele diz que, além da consulta sobre o uso do centro e a conclusão da titulação dos terriórios, as comunidades exigem ser indenizadas pelos impactos do desalojamento nos anos 1980 - que, segundo ele, representou "a destruição de uma experiência positiva da diáspora africana num processo extremamente violento".