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Degelo no Ártico ameaça os cães de trenó da Groenlândia

06/09/2019 11h10

Kulusuk, Dinamarca, 6 Set 2019 (AFP) - Entre as casas de madeira e as colinas de Kulusuk, uma localidade insular da Groenlândia, os cães de Moses Bajare esperam que o gelo se forme para poder voltar a caçar ursos e focas.

O cão da Groenlândia, robusto e resistente, bem parecido com o huskie, é há séculos o melhor companheiro do caçador inuíte, arrastando seu trenó no meio do deserto de gelo durante os meses de inverno, quando a temperatura pode cair a -35°C.

Mas o aquecimento global acelera o derretimento das geleiras, duas vezes mais rápido no Ártico, e atrasa sua formação no final do verão.

Segundo Moses, trata-se de um modo de vida, mais do que uma atividade econômica, que está ameaçada na Groenlândia, cuja superfície é coberta de gelo em 85%.

"Quando tenho um problema, com minha família ou em minha vida, refugio-me na natureza com meus cães. Depois de um ou dois dias, volto e tudo está resolvido", explica esse homem de 59 anos, o único policial da localidade, onde vivem 250 pessoas.

Climatologistas guiados por caçadores publicaram este verão imagens preocupantes de cães avançando com grandes dificuldades em meio a um fiorde no qual o gelo havia derretido.

No leste da Groenlândia, a caça de focas, baleias ou narval, um pequeno cetáceo que parece um unicórnio marinho, é feita de barco, não a bordo de motoneves.

E durante o inverno, Moses leva sua matilha de 12 cães até a beira do oceano para colocar seu caiaque na água e acompanhar as colônias de focas, carabina na mão.

- Gelo muda -E o faz mesmo que o gelo, a partir de fevereiro, não seja mais espesso como antes e derreta no início de maio, em vez de junho ou julho.

"O gelo está mudando", lamenta Moses, que como a maioria dos 250 habitantes de Kulusuk é inuíte, um povo indígena que representa 90% da população da Groenlândia.

Em Kulusuk, 79% dos habitantes acreditam que o gelo se tornou mais perigoso nos últimos anos e 67% acreditam que a mudança climática ameaça os trenós puxados por cães, de acordo com um estudo das universidades de Copenhague e Groenlândia, um território autônomo dinamarquês.

"Antes, no inverno, podíamos andar de trenó por quatro ou cinco meses", lembra Kunuk Abelsen, um jovem caçador, mas "agora são apenas três meses".

Kunuk tem 22 cães e filhotes. Uma parte do bando mora em uma ilha rochosa do outro lado do fiorde durante o verão.

Quando seu barco chega em agosto, os cães ficam excitados e latem. O líder da matilha, Han Solo, mantém-se longe do grupo e de seu rival, um jovem macho agressivo que responde ao nome de Cristiano.

Para Kunuk, seus cães fazem parte de sua identidade. "Não temos campo de futebol, nem piscina, mas podemos viver na natureza", diz ele.

"Se parássemos de usar os cães, perderíamos uma parte importante de nossa cultura", acrescentou.

E também a renda que os proprietários de trenó obtêm da atividade de guia com turistas estrangeiros.

Uma excursão de trenó com cães pode custar até 1.000 coroas dinamarquesas (135 euros, 148 dólares).

- "No sangue" -Outros criadores reduziram suas matilhas ou se livraram delas. E Kunuk começa a se perguntar se vale a pena manter seus cães. "As mudanças climáticas não são boas para os cães de trenó", diz o jovem.

Em 2016 estimou-se que na Groenlândia havia 15.000 cães, contra 25.000 em 2002, de acordo com as estatísticas do território.

Mas o degelo libera água, o que "nos permite pescar e caçar de barco o ano todo. Mais e mais pessoas o fazem", observa Kunuk, destacando a capacidade de adaptação dos inuítes.

Uma ideia compartilhada por Andrea Fiocca, pesquisador e guia italiano, autor de um mestrado em mudança climática e cães de trenó, que passou quatro meses em Kulusuk.

"Adaptação e resiliência são típicas do povo inuíte", diz ele.

Mas "tenho certeza que os condutores de trenó continuarão a usá-los até que o gelo desapareça completamente da região", aponta.

No porto, o pai de Kunuk lembra dos tempos em que percorria seu território para colocar redes para focas ou seguir a trilha dos ursos polares.

"Eu carrego isso no meu sangue e meu filho Kunuk também. Então, se não houver gelo, o que vamos fazer?", questiona, em tom de lamento.

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