O restaurante sumiu

Como as chamadas "dark kitchens" mudaram o jeito de vender comidas por apps durante a pandemia

Marcella Duarte Colaboração para Tilt Carine Wallauer/UOL

Um restaurante sem mesas, sem balcão, sem garçom, sem sequer nome na fachada, onde o cliente não pode entrar. Parece estranho? Assim são as "dark kitchens" (ou cozinhas escuras, na tradução livre), que funcionam apenas para o preparo de alimentos para entregas —normalmente, com a ajuda da galera que trabalha para aplicativos como iFood, Rappi e Uber Eats.

O conceito de porta a porta já existia antes, mas foi a pandemia da covid-19 que acelerou o processo. Uma pesquisa da Mobills, startup de gestão de finanças pessoais, mostrou que as vendas por entrega quase que dobraram entre janeiro e maio do ano passado em comparação o mesmo período em 2019. Os gastos com os principais aplicativos de entregas de alimentos (Rappi, iFood e Uber Eats) cresceram 94,67%, no período. Outro dado vem da ABF (Associação Brasileira de Franchising): a fatia do delivery no faturamento das franquias de alimentação dobrou, passando de 18% para 36% de março a agosto.

Quando muitos passaram a trabalhar de casa (e não tinham tempo ou habilidade de cozinhar) ou deixaram de sair para jantar, os restaurantes viram nas cozinhas "fantasmas" uma saída para superar o rombo que a falta de clientes "in loco" causou.

Imóveis menores e/ou pior localizados, sem espaço para mesas e funcionários que atendam o público, ajudam a equilibrar as contas.

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Terceirizando a comida

Desde sua criação em 2018, a IT Burger, na Cidade do México, ficou famosa por vender hambúrgueres gourmet por entrega. Até pouco tempo, seus clientes sequer sabiam o endereço —nem uma busca no Google era capaz de responder. Ele só existia nos aplicativos. Hoje já possui um estabelecimento físico com mesas, cadeiras e serviço, mas o sucesso do negócio só foi possível por causa das "dark kitchens" e dos apps.

Nos tomamos tan en serio la pasión por una deliciosa hamburguesa que nuestros pedidos llegarán a ti con la dedicación y amor que mereces. Encuéntranos en Rappi. #FASTFOODMADEWELL #OrderIT

Publicado por IT Burgers em Quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Em São Paulo, alguns restaurantes de peso existem apenas no mundo virtual, como o Sush1, o Savage (do chef Olivier da Costa, que tem sua primeira unidade "fantasma" em Portugal) e o Papila Deli. Outros tantos existem fisicamente, mas têm sua operação de entrega em uma cozinha totalmente separada do restaurante "normal", como a pizzaria Di Bari e a hamburgueria Patties.

O negócio já chegou ao ponto de empresas terceirizadas oferecerem suas cozinhas de maneira individual ou compartilhada para um restaurante começar ou ampliar seus serviços. Até os próprios aplicativos de entrega e empresas alimentícias estão montando suas "dark kitchens".

Em junho, o grupo francês Sodexo, conhecido por seu vale-refeição, viu seus clientes "de escritório" diminuírem e tratou de acelerar parcerias de marketplace (isto é, com "dark kitchens" terceirizadas) para entregar comida direto ao consumidor em São Paulo (SP), Barueri (SP), Porto Alegre (RS) e Manaus (AM). A reportagem de Tilt, por exemplo, pediu um PF do restaurante Deli pelo aplicativo Rappi e só descobriu que ele pertencia à Sodexo quando olhou a nota fiscal.

A "dark kitchen" já ganhou até um derivado. É o modelo "cloud kitchen", ou cozinha na nuvem, que funciona como um "coworking/hub de cozinhas". Sim, bem na pegada "startupeira". Na prática, trata-se de um espaço administrado por uma empresa que aluga "baias" para diferentes restaurantes —gastos como investimentos em equipamentos, água, luz e aluguel são divididos e diluídos. Surgiu na Índia, um dos maiores mercados de delivery do mundo, se espalhou para a China e tem ganhado força no Brasil.

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Praça de alimentação oculta

Antes da pandemia, a startup Mimic tinha duas "cloud kitchens" em funcionamento. Agora, já são cinco. Seu principal cliente é o Patties, em São Paulo, que bombou com hambúrgueres estilo "ultra smashed" (ultraprensado). Com as lojas físicas fechadas no início da quarentena, o delivery se tornou a única opção para seus clientes.

As cozinhas da Mimic funcionam como uma espécie de franquia do restaurante, ou seja, vão além do aluguel do espaço. "Entregamos a solução de delivery e preparamos a comida da marca. A gente contrata cozinheiros, aprende as receitas, adaptamos a preparação para que o produto chegue mais fresquinho, controla as normas da vigilância sanitária... É tudo 100% nossa responsabilidade", explica Jean Paul Maroun, sócio da startup.

Juntas, suas cinco cozinhas atendem cerca de 80% do território da capital paulista, com comida do Patties e do BotaniKafé, que compartilham as unidades e entregam via Rappi.

Falando no app de entregas, ele sozinho já tem 110 "dark kitchens" pelo Brasil, divididas em dez espaços pelo Sudeste, Sul e Nordeste. Diferente do modelo da Mimic, esses "hubs" são operados pelos próprios restaurantes.

"Construímos uma espécie de shopping de cozinhas ocultas. Um espaço com entre cinco e 15 cozinhas de diferentes marcas, operadas por eles próprios, como uma praça de alimentação", diz Walter Rodrigues, gestor do setor de dark kitchens da Rappi.

Segundo ele, o objetivo chegar a lugares onde os modelos tradicionais de negócio não chegariam. Ele dá como exemplo o bairro da Mooca (zona leste), que tem muita pizza e pouco sushi, que é mais forte na região do Itaim (zona sul). Então, um restaurante japonês "fantasma", com custo muito menor, consegue entrar num mercado novo do outro lado da cidade.

Acredito piamente neste modelo de negócio. É uma tendência, praticidade para o dia a dia com a mesma qualidade. Há estudos que dizem até que, daqui alguns anos, os apartamentos não terão cozinha por padrão, porque pedir será mais barato. 

Walter Rodrigues, gestor do setor de 'dark kitchens' da Rappi

Para Rodrigues, embora o delivery não substitua a experiência de frequentar um restaurante, esse pode ser um empurrão importante para quem quer empreender. "Em vez de montar uma loja de R$ 500 mil, que nem sabe se terá aceitação do público, melhor começar pela dark kitchen. Pode até ser um teste para escolher o melhor local para um futuro restaurante aberto", defende.

De acordo com a pesquisa da Mobills, a Rappi foi o aplicativo que teve maior aumento no valor médio dos pedidos este ano. Em maio, este valor era R$ 97,20, contra R$ 50,51 em janeiro.

Procurado, o iFood declarou que "segue analisando o cenário em busca de oportunidades que estejam alinhadas com sua estratégia de negócios", mas disse que não investe diretamente no formato de "dark kitchen", mas que há restaurantes cadastrados que antes atuavam apenas com salão e criaram versão "somente delivery" após entrarem na plataforma.

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Empurrãozinho na novata

O Patties é um negócio novo. A primeira "portinha", no Brooklin, foi inaugurada no dia 1º de abril de 2019. "No primeiro dia, vendemos 250 lanches. Não estávamos preparados para um sucesso tão grande. Chegamos a ter filas com 300 pessoas na frente da loja", lembra o sócio Henrique Azeredo.

Uma segunda loja foi aberta no Itaim e logo o delivery se tornou uma necessidade. "Muita gente mandava motoboy pegar a fila e retirar os lanches, mas não tínhamos nem embalagens apropriadas para isso", disse.

Inicialmente, os aplicativos fizeram propostas de bonificação por exclusividade de entrega e até compra da marca, mas a empresa não aceitou, com a justificativa de buscar a melhor experiência possível para todo mundo. Por isso, a solução encontrada foi firmar uma parceria com a Mimic. Com ela, mais de dois terços de todos os lanches Patties vendidos diariamente passaram a ser via delivery. A lanchonete se tornou líder de venda em todas as plataformas de entrega —hoje, há exclusividade com a Rappi.

"Tinha gente que não morava dentro da área de cobertura dos aplicativos, pedia para o endereço de algum posto de gasolina ou outro restaurante, pegava o carro e ia lá receber. Hoje, com as novas dark kitchens, boa parte da cidade está contemplada, inclusive a zona leste, que era um grande desejo nosso", diz Azeredo.

O Patties já ultrapassou os limites da capital paulista: agora, há delivery na região do ABC e em Campinas, também por meio das dark kitchens da Mimic.

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Quem chegar primeiro leva

Foi por causa da rápida expansão do Patties que a Mimic investiu na criação de seu próprio sistema de gestão de pedidos. Em abril, o Bee Line foi implantado só para atender os clientes da startup, devido a reclamações sobre demoras nos pedidos via Rappi.

Um dos pilares do Bee Line é funcionar no molde "first in, first out" (primeiro a chegar, primeiro a sair), que garante agilidade e evita aglomerações. Ou seja, o motoboy chega na dark kitchen e o pedido que ele vai levar será o próximo a ficar pronto. "Com isso, reduzimos pela metade o tempo de entrega, passando de cerca de 40 para 20 minutos", diz Azeredo.

"Eu e você fazemos um pedido no mesmo restaurante. Eu faço 15 minutos antes que você, então o restaurante vai preparar meu pedido antes. Mas talvez o seu entregador estivesse mais perto e chegue antes do meu. Aí meu lanche fica lá esfriando e, ao mesmo tempo, seu motoboy fica lá esperando seu lanche que ainda não está pronto. Com nosso sistema, temos visibilidade sobre essa logística e podemos priorizar os pedidos eficientemente e evitar erros", exemplifica Jean Paul Maroun, sócio da Mimic.

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Uma cozinha só não dá conta

A pizzaria paulistana Di Bari, queridinha dos paulistanos nas redes sociais (e que ilustra as fotos desta reportagem), também recorreu às "dark kitchens" para agilizar os pedidos, mas fez isso por conta própria. A empresa começou há três anos no bairro do Ipiranga e, desde o início, oferecia um delivery dentro do restaurante. Mas, com o aumento da demanda, cresceram os problemas nas entregas.

A solução foi encontrar um imóvel no mesmo bairro para fazer uma cozinha só para pedidos. Com a implantação, as vendas do delivery passaram a representar cerca de 50% do total. Aí, veio o isolamento social e novas necessidades de expansão surgiram. "Muitas pessoas de outras regiões, que já eram clientes do restaurante, pediam para entregar lá. Mas pizza não fica legal após longo transporte", ressalta a coproprietária Mayra Lattarulo Schmidt.

Então em maio, a Di Bari abriu sua segunda cozinha de portas fechadas, no Itaim. Agora, as três cozinhas —a da loja e as duas dark kitchens— trabalham de segunda a quinta para atender ao crescente número de pedidos. "Desde o fechamento na quarentena, aumentamos 90% o número de pizzas via delivery. Estamos vendendo praticamente o mesmo número de pizzas, e agora com a nova área de entrega devemos crescer ainda mais. Então o delivery supre a falta que o salão faz", explica Schmidt.

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Nem tudo são flores

Apesar de parecer um modelo de negócios onde todos ganham, a "dark kitchen" também tem seus espinhos. O principal deles é a grande dependência dos apps de entrega, que abocanham boa parte do dinheiro.

Por exemplo: apesar do crescimento no volume de vendas por delivery, o faturamento da Di Bari até agora não aumentou. A dona da pizzaria conta que vender no salão ainda é "bem mais vantajoso", por causa dos custos do aluguel dos imóveis e das taxas cobradas pelos aplicativos. A pizzaria não tem exclusividade com nenhum deles, atuando no Rappi, Uber Eats e iFood. Os restaurantes que negociam exclusividade conseguem melhores condições.

A indefinição da pandemia ainda mantém os restaurantes em alerta, e o Patties não é exceção: amargou prejuízo nas duas lojas físicas, fechadas em março e reabertas em maio num esquema de drive-thru, em que se pega o lanche sem sair do carro, como no McDonald's. Juntas, as unidades acumularam um prejuízo de mais de R$ 500 mil. Só em agosto voltaram a funcionar normalmente, o que permitiu inaugurar uma terceira unidade, em Pinheiros.

Quase fechamos de vez as lojas para manter apenas delivery, porque são operações diferentes. Mas decidimos pegar um empréstimo e encontrar uma maneira de voltar.

Henrique Azeredo, sócio do Patties

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A saúde nas cozinhas "fantasmas"

As "dark kitchens" vem desempenhando um papel importante na diminuição do contato com o cliente e a redução de aglomerações, mas não escapam de cumprir rigorosamente as normas e recomendações dos órgãos sanitários internamente.

"Todos os serviços de alimentação, independentemente do segmento e maneira de atuação, devem seguir as leis de boas práticas na manipulação de alimentos, para garantir a qualidade e a segurança dos produtos servidos aos consumidores", diz Aline Lana, sócia-fundadora da ACN Nutrição, empresa especializada em segurança alimentar.

A lei descrita por ela é a resolução 216 da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), que foi reforçada com as normas técnicas 48 e 49, ambas deste ano, com outras recomendações por causa do coronavírus.

Segundo ela, é necessário implantar controles de qualidade em todas as etapas de produção de alimentos, desde o recebimento dos ingredientes até a distribuição ao cliente. Alguns dos itens a serem vistos são higiene e conduta pessoal dos manipuladores, controle de temperatura dos alimentos no preparo e distribuição, higiene do ambiente e ações preventivas para pragas.

Não há evidências de que o coronavírus possa ser transmitido por via alimentar —isso é muito difícil de ser comprovado. Ele é sensível às altas temperaturas normalmente usadas para cozimento, mas pode persistir em um objeto por horas ou dias, dependendo da superfície, da temperatura e da umidade do ambiente. Por isso embalagens podem ser veículos de transmissão.

Para Fábio Portella, coordenador da pós-graduação em vigilância sanitária da faculdade IDE (Instituto de Desenvolvimento Educacional), do Recife, os empregadores das "dark kitchens" podem se sentir mais livres para agir de má-fé e desrespeitar as boas práticas por estarem longe dos olhos do consumidor. "Não são a maioria, felizmente", diz.

"Também há falta de informação. O uso de luvas, por exemplo, não é recomendado pela Anvisa, pois pode se tornar um foco de contaminação, passando a ideia de falsa segurança para o manipulador de alimento", conta.

Os restaurantes ouvidos nesta reportagem afirmam ter intensificado os cuidados. A Di Bari adotou sabonetes bactericidas para higienização constante, uso obrigatório de máscaras, limpeza das embalagens e envio de lenços umedecidos com álcool para o cliente limpar a caixa da entrega. Nas dark kitchens da Mimic, foram montadas estações de higienização, inclusive para as motos, pelas quais todos os entregadores devem passar.

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