A Wikipédia é "a melhor coisa de todas, qualquer pessoa no mundo pode escrever o que quiser sobre qualquer assunto, assim você sabe que está recebendo a melhor informação possível". A frase não é minha, mas do icônico Michael Scott, o protagonista da série "The Office" vivido por Steve Carell. O ano era 2007 e ela descreve, no 19º episódio da terceira temporada, uma época em que usar a Wikipédia como fonte de informação era motivo de piada.

Hoje, a descrição de Michael é motivo de orgulho para a enciclopédia virtual colaborativa que, assim como "The Office", ganhou um revival na cultura popular dos anos 2020. Na pandemia das notícias falsas, a Wikipédia ressurgiu como um oásis no deserto de fake news —ainda que ela mesma não se apresente como uma boa bibliografia para trabalhos de escola, o modelo colaborativo de verificação de fatos virou um exemplo a ser seguido na web.

Por trás de tudo está Jimmy Wales, o empreendedor norte-americano de 54 anos que fundou a "Wiki". Em 2021, ele comemora duas décadas da criação de seu maior sucesso, e topou bater um papo com Tilt para falar sobre os segredos por trás da enciclopédia livre e o futuro da internet, que ele conhece desde o nascimento.

Tilt: A Wikipédia completa 20 anos em 2021. Como ela se transformou, de motivo de piada a uma fonte confiável de informação, ao longo dessas duas décadas?

Jimmy Wales: Bem, o que costumo dizer sobre isso é que nunca fomos tão ruins quanto diziam que nós éramos e não somos tão bons agora quanto pensam que somos. Grande parte disso foi apenas as pessoas começando a entender a Wikipédia e percebendo que, sim, qualquer pessoa pode participar de uma edição, mas para que suas edições realmente sobrevivam, você precisa seguir muitas regras. Há uma comunidade muito séria por trás disso, que trabalha muito para melhorar a qualidade ao longo do tempo. A Wikipédia melhorou ao longo dos anos, porque esse é o único objetivo: melhorá-la a cada dia.

Tilt: Para muita gente, uma enciclopédia que qualquer um pode editar é mais confiável que Google ou Facebook. O que isso diz sobre a internet?

JW: Claramente essas plataformas que se sustentam no compartilhamento social tornaram-se vetores de transmissão de desinformação. Elas têm algumas coisas a aprender com a Wikipédia. Tem a ver com: elas estão empoderando as melhores pessoas da comunidade? Ou elas estão acelerando a disseminação da desinformação por algoritmos que buscam apenas maximizar o tempo que as pessoas passam lá e o engajamento? É esse é o problema.

Por trás da Wikipédia existe a Fundação Wikimedia, uma organização sem fins lucrativos que administra a parte burocrática do site. O grupo também cuida do banco de imagens sem direitos autorais Wikimedia Commons e o dicionário Wikitionary. Os recursos vêm exclusivamente de doações, que no ano passado somaram US$ 124 milhões. Em 2020, foram 7 milhões de pessoas doando, em média, 15 dólares cada um.

Tilt: A Wikipédia sempre foi livre de anúncios. Alguma vez você considerou mudar de ideia?

JW: Desde que provamos que o modelo de doação funciona para a Wikipédia, tornou-se desnecessário considerar a publicidade. Nós só dependemos do apoio do público e pequenas doações. É isso que ajuda a Wikipédia a se manter livre da influência da publicidade, algo a que sempre me oponho. Tenho certeza que recebemos muitos emails [com propostas], as pessoas perguntam, mas nunca houve nenhuma consideração séria sobre isso.

Tilt: E esse modelo de doações é suficiente para manter uma organização desse tamanho funcionando no mundo todo?

JW: Sim. Temos tido muito sucesso na arrecadação de fundos e tentamos administrar a Fundação Wikimedia de uma maneira muito cautelosa. A cada ano, gastamos um pouco menos do que arrecadamos para que possamos construir nossas reservas. Agora temos um fundo de doação separado, onde arrecadamos dinheiro de doadores maiores para manter a Wikipédia segura no longo prazo. Damos todos os passos que podemos para proteger a Wikipédia para o futuro.

Tilt: O algoritmo do Facebook e as correntes do WhatsApp ativamente colaboram para que as fakes news cheguem às pessoas, enquanto a Wikipédia é uma força passiva nessa luta à desinformação. Depende que as pessoas venham até ela para checar algo. Isso te preocupa?

JW: Na verdade, não. Nós realmente não pensamos nesses termos e certamente não queremos mudar a Wikipédia para torná-la mais viral, com manchetes caça-cliques e coisas assim. Não é o nosso estilo. Nós esperamos que as pessoas instruam seus amigos e familiares a checar informações.

Recentemente, em um grupo do WhatsApp da escola dos meus filhos, eu recebi um link dizendo que cebolas ajudam a prevenir o coronavírus. Eu fiquei muito chateado e comecei a enviar links para artigos da Wikipédia que mostravam que, não, cebolas não curam o coronavírus. "Não sejam estúpidos!" [risos].

Tilt: Basicamente, você confia nas pessoas? Não acha que viralizar pode ser uma forma de combater a epidemia de fake news?

JW: Não, acho que essa é uma batalha perdida. Não é para nós.

Tilt: Então, como a Wikipédia se encaixa nessa batalha?

JW: A Wikipédia é um dos sites mais populares do mundo. Apenas sobre o coronavírus, temos centenas de milhões de visualizações. Portanto, somos uma grande parte dessa infraestrutura. Acho que é por isso que a maioria das pessoas não acredita nessas bobagens. Quer dizer, uma minoria vai acreditar que o 5G causa o coronavírus, mas a maioria das pessoas não acredita, porque a informação de qualidade está disponível.

Tilt: As redes sociais arruinaram a internet?

JW: Sou otimista. A reação do público, a aversão pelo que está acontecendo com as redes sociais, significa que veremos mudanças. Seja essas empresas mudando, porque seus clientes estão insatisfeitos. Seja por novas formas de comunicação surgindo. Acho que nada é permanente. É inteiramente possível que os líderes que existem hoje na internet não sejam mais líderes em cinco ou 10 anos. Lembro-me de quando as pessoas pensavam que o MySpace era dominante e logo depois ele morreu. O Facebook pode morrer se as pessoas encontrarem uma alternativa melhor.

Vemos que o número de pessoas que estão mudando do WhatsApp para o Signal é inacreditável. Eu estou em ambos, é claro, e esta manhã recebi oito notificações de amigos que acabaram de se inscrever no Signal. As pessoas podem mudar, elas podem dizer "eu não aprovo isso, vou parar de fazer isso". E essas plataformas podem entrar em colapso muito rapidamente.

Tilt: E como vai ser a internet daqui 20 anos?

JW: Eu sempre digo que se soubesse qual seria a próxima grande novidade na internet, começaria a trabalhar nisso agora. Mas eu não sei. Eu me considero um empreendedor e estou sempre tentando pensar em novas ideias e brincar com as tecnologias mais recentes. É difícil prever. Mas a Wikipédia estará aqui, ainda será neutra, não vamos nos transformar em algo completamente diferente. Não seremos o TikTok.

Tilt: E quais são os desafios para a internet do futuro?

JW: Me preocupo muito com censura e os governos que estão se tornando mais ousados em suas tentativas de suprimir a oposição. Devemos estar muito atentos a isso. Me preocupo quando vejo governos usando notícias falsas como desculpa para reprimir opiniões com as quais simplesmente não concordam —como Donald Trump, chamando a CNN de fake news. Se ele tivesse a habilidade de fazer isso, tenho certeza que teria tentado fechar a CNN.

É claro que, nos EUA, isso é impossível por causa da Constituição e de um sistema legal robusto. Em outros países, pode não ser o caso. Temos que defender apaixonadamente os direitos dos jornalistas de falar a verdade. Isso é de praxe, mas estamos em um momento em que precisamos estar mais vigilantes do que nunca.

Tilt: E como será a Wikipédia daqui a 20 anos?

JW: Bem, eu lutarei com cada fibra do meu corpo para mantê-la confiável. Não sei se teremos sucesso, mas não estou preocupado com isso. A Wikipédia vai ficar bem. E estarei aqui torcendo com a comunidade e ajudando da melhor maneira que puder.