Código de barras

O drone deu asas ao menino da quebrada, e então ele descobriu o cemitério São Luiz: "é a banalização da morte"

Matheus Pichonelli Colaboração para Tilt

"Proteja sua vida, cuide dos seus, evite ao máximo, não saia de casa", dizia a mensagem do rapper Cocão Avoz, que acompanhava as imagens aéreas feitas pelo cineasta João Wainer no Cemitério São Luiz. Eram trinta segundos, marcados por um sinal cardíaco, das primeiras covas sendo abertas para receber as vítimas da Covid-19 no extremo sul de São Paulo.

O fotógrafo, educador e artista visual Marcelino Melo, de 25 anos, o Nene, viu aquilo e custou a crer que as notícias vindas de Wuhan, a 18 mil quilômetros dali, na China, batiam tão rapidamente à sua porta. Da casa dele, ali do lado do cemitério, não era possível ouvir o ronco dos tratores e das retroescavadeiras que reviravam a terra e abriam valas alinhadas. Milhares delas, como numa esteira industrial.

Impactado pelo vídeo, ele pegou seu drone, pedalou cerca de dois quilômetros até o estacionamento de uma escola vizinha e, numa curva do muro do cemitério, fez o primeiro sobrevoo. "Só para ver como estava a situação."

Naquele 19 de abril, o menino do drone, como é conhecido desde que comprou um Mavic Pro, em 2015, deu início à série "Código de Barras" e passou a fotografar periodicamente o avanço das valas. A 120 metros do chão, clicou o morticínio que marca na terra sua geometria única.

"Eu fiquei chocado, não esperava encontrar tantas covas sendo abertas", conta. "É a banalização da experiência da morte. Enquanto a gente ficar tratando como números e não como nomes, vai continuar sendo frio. E a consequência é a favela saindo para a rua."

A terra que não era azul

Cinco anos atrás, o que intrigava Nene era saber como os pássaros veem as coisas do alto. "Era uma coisa que eu sempre me perguntava", lembra. O Mavic Pro, que comprou com o dinheiro de um seguro de vida pela morte do pai, permitiu que o jovem alcance o céu da região do Campo Limpo e fosse muito além dos 400 metros de distância de um voo.

O menino do drone, que nasceu no interior de Alagoas e chegou à periferia de São Paulo em 2008, descobriu que a terra da sua vizinhança não era azul. Era laranja: o tijolo, o barro do chão, as paredes, o campo de futebol e as ruas sem asfalto. Era cinza, nas lajes e nas telhas de Brasilit. "Então é assim que os passarinhos veem as coisas, mano?"

Os detalhes aéreos viraram a marca registrada do seu trabalho —além das fotos, ele faz miniaturas artísticas de casas da quebrada, no projeto Quebradinha.

Até então, explica ele, o drone o levava para um "lugar de paz". "Ele me traz isso: o céu não é mais o limite. Lá de cima, ele me proporciona um outro lugar de visão e de sentimento, coisa que a gente não consegue ter pisando no chão."

Mas aí, veio a pandemia.

Lotes e lotes de morte

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Foram cinco idas aos muros do cemitério. Na primeira, ele conta que chegou em casa, editou as fotos e postou. Para acalmar, meditou e foi ouvir música —"cale tudo que o mundo fale e pense e, o quanto vida vale, seja luz neste dia cinzento", cantou Emicida nas "Pequenas alegrias da vida adulta". Duas horas depois, deu sua aula online, "como se nada tivesse acontecido, como se não estivesse atordoado." Na manhã seguinte, as imagens já tinham viralizado.

Dois dias depois, no segundo sobrevoo, o que o drone mostrou foi que muitas daquelas covas fotografadas 48 horas antes já haviam sido fechadas, e muitas outras começavam a ser abertas. Dezenas? Centenas? Mais de mil? Ele prefere não contar. "Aquilo já mostrava a gravidade da situação do bairro, da zona sul, da quebrada."

Na quarta incursão, o território já estava completamente desfigurado e o drone não dava conta de captar a extensão das valas. A terra laranja crescia para os lados, derrubava vegetação, subia e descia pelo relevo. Sempre havia um ou dois enterros rolando, coveiros de EPIs, caixões sendo cobertos e mortos velados à distância.

E quanto mais o cenário mudava, mais difícil ficava pegar no sono, diz. "Ver aquelas pessoas distantes do caixão quando está descendo, sem ter velório, é extremamente chocante. Uma família perde um parente e não pode chegar próximo do corpo. Nunca imaginei uma situação dessa na minha vida."

  • Até meados de junho, 50 mil pessoas morreram por Covid no Brasil.
  • Pelos dados de 27 de maio da prefeitura, 939 pessoas morreram nos bairros do extremo sul: Campo Limpo, Jd. São Luis, Capão Redondo, Cidade Dutra, Jd. Angela, Grajaú, Parelheiros e Marsilac
  • Das 13 mil novas valas previstas para os cemitérios da capital paulista, 3.000 são no São Luiz.


Mas é exatamente essa série de números que deixa Nene abalado e "tenso, triste e com raiva", nas palavras dele:

"Fala mil mortes, choca. Quando a gente fala 20 mil mortes, choca. Só que quando a gente fica falando de mil em mil, todos os dias por três meses, o ouvido está calejado e aí vira normal. Parece que essa é a nossa nova condição da vida e assim seguimos. A quebrada sempre fez isso: tem mancada, tem fome, faltam coisas. Só que não é um dia, dois dias. Falta a vida toda e banalizou. A gente anda em esgoto a céu aberto e não acha tão trágico hoje, porque é banal, porque a gente convive com isso há muito tempo e virou normal. Com as mortes está sendo a mesma coisa. A população não respeita, porque a gente está tratando de números, não de mortes, pais, mães, irmãs. E aí vira código de barras, mano. Vira uma coisa industrial, uma esteira de morte, aquela coisa da fábrica que passa, cola o código e saem lotes e lotes e lotes e lotes de morte." (Ouça acima)

Junho chegou e, no auge da pandemia, Nene assiste ao bairro retomar o movimento. Ele não sabe se os vizinhos viram as imagens que fez nem se elas conseguiram conscientizá-los da gravidade da situação. Como se confirmasse a passagem bíblica que diz que um profeta não é reconhecido em sua terra, ele conta que nunca mostrou as fotos sequer para pessoas próximas a ele.

O fotógrafo tem uma relação dolorosa com aquelas imagens. Não quer ficar olhando muito, nem as admira. "São boas, mas não são bonitas. Posto as que tenho que postar, solto como informação para as pessoas, mas não tenho carinho por elas nem pela situação."

Ele acha que as publicações servem para "conscientizar na hora" e ele não precisa "afirmar coisa alguma, porque as imagens falam por si só", mas já ouviu relatos de pessoas, até de quem ele conhece, que acharam que eram falsas.

"Não consigo entender quem não leva a sério. Me dá uma vontade de pegar essas pessoas, colocar num carro, levar até o muro do cemitério e falar: 'olha agora, sente a agonia que eu senti, o transtorno que eu passo e fica na minha cabeça quando volto para casa com esse material'. As famílias saem dali destroçadas", desabafa. "Estamos falando de gente que de uma hora para outra não encontramos mais nas ruas para dar bom dia nem boa noite."

O fotógrafo, artista e educador na Fábrica de Cultura do Jardim São Luís trabalha diariamente para transformar seu território positivamente, ensinando jovens e crianças a produzir clipes com celular, registrando cotidiano dos moradores do alto ou nos detalhes de suas maquetes. Mas agora se vê diante do estigma novamente —antes, o cemitério era chamado "do crime" e marcava a violência policial e do crime organizado em cima dos moradores da região. Agora, é o código de barras.

"Na periferia, estamos sozinhos. Não temos como combater esses danos, só minimizar", afirma. "O Jardim São Luiz foi eleito na década de 80 o pior bairro para se morar. Desde então, essa região é estigmatizada com esse sentido de morte, e dessa vez não vai ser diferente. O Brasil inteiro vai ser estigmatizado, mas as periferias ainda mais."

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