Morreu, mas passa bem

Desde que mataram o PC, bilhões de unidades foram vendidas; em breve, ele dominará o IoT, diz chefe da Dell

Helton Simões Gomes De Tilt, em São Paulo ARTE/UOL

Se você não presta atenção no que fazem aqueles que curtem jogos online, saiba que seu futuro computador poder estar na mochila que eles carregam nas costas. Sabemos que os PCs já não são a principal porta de entrada na internet para a maioria das pessoas, que prefere usar um smartphones, mas o computador está longe de morrer, diz Luis Fernando Gonçalves, presidente no Brasil da Dell Technologies. O computador que os gamers usam hoje, o mais parrudo no mercado, será o que você levará para casa no futuro, diz o executivo. O que acontece é que as capacidades dos notebooks estão sendo pulverizadas entre outros eletrônicos.

A líder mundial de PCs, outrora totalmente dependente da receita de notebooks e desktops, agora se coloca como uma empresa de infraestrutura. Nada de cimento, tijolo e aço, porém. A companhia fornece máquinas e software para garantir que os dados na nuvem cheguem ao seu celular. Essa transformação foi acompanhada de perto por Gonçalves, que está há 20 anos na empresa e foi um dos primeiros funcionários da Dell no Brasil em 1999. Geek assumido, o executivo é tão convicto de que os aparelhos conectados estarão em todo canto no futuro que até se arrisca a fazer previsões.

"Hoje, a lei obriga a avisarem você se está sendo filmado. No futuro, você irá à casa de algum familiar e vai ter lá uma placa: 'aqui, estamos com um assistente de voz ligado'." Se isso ocorrer, outra mudança, que a Dell espera que ocorra, estará em curso. Será a invasão dos dispositivos conectados à Internet das Coisas (IoT, na sigla em inglês). Leia abaixo a entrevista e descubra como a empresa acredita que essa revolução vai mudar o mundo.

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20 anos, num clicar de mouse

Enquanto fala sobre o futuro, no escritório da companhia em São Paulo, Gonçalves gosta de refletir como era a vida antes de nos tornarmos viciados em tecnologia. Lembra da dureza de ligar para radiotáxis, dos computadores de tubo, de usar mapas de papel para descobrir como se virar pela rua. Mas fala, sobretudo, de como evoluiu a relação da família com as telinhas.

"Vou falar sobre a minha experiência, porque a família toda é geek. Outro dia, estávamos no quarto eu, minha esposa e meu filho, vendo e buscando a mesma coisa, cada um no seu computador. E ainda tinha dois tablets largados na cama. Os três com cinco dispositivos. Na minha infância, TV no quarto já era um luxo. Nesse dia, a única coisa que estava desligada era a TV."

Esse exemplo foi dado para mostrar que, ainda que tenha sido destronado pelo celular, o computador é ainda mais presente na vida das pessoas do que jamais foi uma TV, e isso não deve acabar. "O computador estará presente em tudo quanto é lugar. Talvez de uma forma até exagerada, que a gente deva até conter." A popularização da computação trazida pelos PCs, reflete Gonçalves, é um dos abalos sísmicos que sacudiram o mundo.

Tilt - Nesses 20 anos da Dell no Brasil, como a tecnologia mudou?
Luis Fernando Gonçalves - Mudou a forma como compreendemos nosso papel. No final dos anos 90, o foco era tecnologia para aumentar eficiência operacional nas empresas. Fazer mais com menos ou mais rápido. Hoje, a tecnologia aproxima agentes econômicos ou sociais, permite que se comuniquem e entreguem ou incrementem serviços e produtos.

Já não estamos só fazendo processo produtivo ou contábil, mais rápido e eficiente. Hoje em dia, influenciamos a vida das pessoas, para o bem e para o mal. A gente acessa serviços públicos e até, eventualmente, influencia a opinião de eleitores no momento de uma eleição. Quem você escolhe como representante ou como você acessa serviços públicos para alcançar sua cidadania são situações impactantes na vida do cidadão. Isso não era pensado há duas décadas.

Nossa cultura permanece a mesma, mas a Dell mudou muito. Entramos em mercados e domínios onde não atuávamos. Precisamos desenvolver competências de vendas e para atuar nesses segmentos. Como fizemos grandes aquisições, tivemos que absorver companhias e até nos adaptar à cultura delas na forma de operar. O caso mais emblemático é a EMC [empresa de armazenamento de dados comprada em 2015], com dezenas de milhares de colaboradores no mundo. A empresa tem conseguido conviver com alguns movimentos tectônicos do mercado e do mundo, evoluir com eles e até mesmo antecipar alguns deles.

Tilt - Quais esses movimentos tectônicos?
Luis Fernando Gonçalves - O mais emblemático é essa transformação digital, a disseminação da tecnologia digital em todos as frentes de interação de indivíduos e empresas. Hoje, você se apoia muito na tecnologia para fazer e falar, seja entre indivíduos, companhias ou instituições. Essa conexão muda a forma como a gente se relaciona, trabalha e enxergamos a nossa vida. Agora, temos outras fontes para expandir e emanar nossas visões de mundo, assim como para interagir com a visão de mundo dos outros.

Outro movimento tectônico mais forte no passado, mas hoje já incluído na equação, é a redução do custo da tecnologia. Na hora que ela se massificou, foi se tornando acessível para todo mundo. Com o computador em casa, a internet pode conectar todo mundo e, dali para frente, surgiram instrumentos para tirar proveito dessa conectividade. Antigamente, táxi tinha rádio. Você ligava para a central, que falava com o taxista via rádio para buscar o Luis Fernando. Hoje, o instrumento multiuso é o celular, comprado diretamente pelo taxista. Isso permite que toda a transação seja virtual. O serviço é o mesmo, mas a malha foi ampliada de forma absurda, sem o custo operacional que o rádio impunha.

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O PC morreu? Vida longa ao PC

Tilt - Vocês deixaram de ser uma empresa puramente de computador?
Luis Fernando Gonçalves - Ah, há muitos anos. Somos uma empresa de infraestrutura, que engloba obviamente o computador da mesma forma que o smartphone, o tablet e tantos outros elementos da nossa vida cotidiana que incorporaram tecnologia. Hoje não é mais impensável que sua televisão esteja conectada e que você interaja com ela por um teclado. Mas o computador ainda é um desses elementos.

Tilt - Mas o computador é visto como coisa do passado. Como vocês estão fazendo para não ficar atrelados a essa imagem?
Luis
Fernando Gonçalves - Nós já não temos esse dilema, isso é coisa do passado. Como percepção não se discute, vou dar dados para mostrar a realidade da indústria. Hoje, somos líderes nas categorias de infraestrutura de tecnologia em que atuamos. São elementos que têm uma relevância muito maior no ecossistema da tecnologia da informação do que o próprio PC.

Fomos sábios de não embarcar na crença que o PC ia morrer. Ele se transformou, foi incorporado a tablets e smartphones, ainda tem um papel muito relevante. Todo ano são vendidos 300 milhões de unidades no mundo. Não é pouca coisa. O Brasil já chegou a ter 15 milhões, hoje navega na faixa dos 6 milhões, porque a situação econômica não é tão próspera para fomentar uma renovação do parque.

Dentro da companhia a gente fala em dispositivos para o usuário final. Um deles nós fornecemos. Estamos investindo em outros tantos que surgirão com a IoT, como os sensores e gateways. Essa é a próxima fronteira na expansão do mercado de infraestrutura.

Desde que falaram que o computador morreu, já foram vendidos alguns bilhões de unidades. Acho um exagero. É necessário reconhecer que houve, sim, uma readequação do que fazer no computador. Tem smartphone, TV, videogame, mas certas coisas só se podem fazer no computador, porque meu dedo não vai diminuir para eu conseguir colocar todos eles nas teclas do smartphone. Essa adaptação genética provavelmente não vai acontecer na nossa geração.

Tilt - Como foi a migração de uma empresa focada em computador para uma que trabalha com a cabeça nas nuvens?
Luis Fernando Gonçalves - A Dell foi um grande agente da ampliação do acesso à tecnologia. Tivemos e temos o desafio de atingir uma massa grande de clientes, trazendo essa redução de custo e acelerando a adoção. Outro desafio foi trabalhar na camada mais sofisticada, que é o domínio da tecnologia no seu estado mais in natura, como os data centers, os serviços e desenvolvimento de aplicação.

A infraestrutura hoje é diferente de 20 anos atrás, e a transição foi desafio grande para gente, porque passamos da venda de tecnologia menos complexa, o computador, por exemplo, para uma infraestrutura muito sofisticada. Tivemos que investir muito mais em pesquisa e desenvolvimento. São US$ 4 bilhões por ano. Temos um grupo amplo de cientistas e engenheiros voltados só para isso. Há 20 anos pareceria pouco provável que tivéssemos aqui no Brasil um centro de desenvolvimento de cientistas de dados, como o a Ilha do Fundão, na UERJ [Universidade Estadual do Rio de Janeiro].

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Tilt - As vendas de computadores para empresas subiram muito, mas imagino que não são as máquinas que elas costumavam comprar.
Luis Fernando Gonçalves - Antigamente, eu dava um computador, um instrumento com sérias limitações, mas que naquela ocasião era considerado adequado. Hoje, o indivíduo tem uma experiência digital que acontece fora do trabalho e ele leva essa expectativa para dentro da empresa. Se você der um computador antigo, que não funciona, lento, pesado, sem interface amigável, ele não sente atraído a trabalhar naquela empresa, porque considera que o ferramental é pobre. As empresas tiveram que investir muito mais no que diz respeito a essa relação com o colaborador. As empresas compram tecnologia para o negócio, não para tornar um processo eficiente. Tecnologia passou a fazer parte da estratégia empresarial.

Tilt - O perfil do comprador mudou?
Luis Fernando Gonçalves - Esse usuário hoje tem exigências que se sofisticaram ao longo do tempo. Quando você pensa em compra de um computador, pensa: "Ah, na hora que eu acessar o streaming de vídeo ou quando rodar o aplicativo de IR, a placa de rede é rápida ou não? A tela é 'touch'? Tem borda infinita?".

Tilt - Vocês tem um contato muito próximo com os gamers. Eles se tornaram os embaixadores dessa tecnologia?
Luis Fernando Gonçalves - Os games são os usuários mais exigentes que existem. Podemos comparar com a academia. Ela é fechada e se encerra nela mesma. Os gamers, não. Como se espalharam pelo mundo inteiro, trazem exigências que a academia não tem. Na academia, querem computação de alta performance para avaliar a geologia do solo no fundo do mar que será explorado no pré-sal. Outro exemplo: colocam uma quantidade impensável de dados no data center para tentar prever o clima de amanhã. Agora, como faz para conectar milhões e milhões de usuários para jogar Fortnite ao vivo? É um outro tipo de desafio.

Mas, do ponto de vista da capacidade de processamento, é igual. Eu não posso fazer uma atividade ao vivo em que eu vejo a ação com atraso em relação ao colega com quem estou jogando. Os gamers empurram o setor de tecnologia para criar novas experiências, novas capacidades. Veio deles a pressão para aprofundar tecnologias de realidade aumentada e virtual, porque eles vivem isso. Veio deles também o streaming em tempo real, o processamento distribuído.

Eles exigem da tecnologia certas capacidades que não dizem respeito a gastar milhões de dólares na compra de um data center. É importante estar conectado ao gamer, porque ele ajuda a desenvolver produtos que serão a norma no futuro. Hoje, você pode olhar o gamer e achar que isso tudo é muito sofisticado. Mas o que era sofisticado há dez anos é o que você tem hoje no seu smartphone. E hoje você joga Fortnite nele.

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O futuro do computador

Tilt - Qual o futuro da computação?
Luis Fernando Gonçalves - Para nós, o futuro da tecnologia, quer você esteja usando um computador quântico, 'computing edge' ou outro elemento tecnológico, será de uma imersão absoluta.
Como o custo da inclusão tecnológica tende a zero, vamos viver cada vez mais com elementos que incorporem tecnologia digital em tudo. Pensa no valor de um carro. Para colocar no seu carro um processador que, no seu smartphone já tem maior capacidade do que o computador que levou o homem à Lua, o valor é desprezível.

A sua sensação vai ser a de que o carro é muito inteligente. Mas o que tem lá é só um sensor com capacidade computacional limitada. Por estar conectado a algum provedor na nuvem, ele dará ao veículo um poder sem fim. Vai dizer como está o trânsito em tempo real três quarteirões adiante, onde estão os carros, se há algum conhecido próximo de você, se a performance está bem. Se a gente levar isso para a saúde, a educação, os transportes, o saneamento, mudamos a forma como interagimos com o mundo.

Tilt - O que edge computing tem de diferente de computing?
Luis Fernando Gonçalves - O conceito é simples. Volto ao exemplo do carro. O veículo não terá tempo de, ao visualizar algo parecido com um bebê de 4 anos engatinhando, decidir se aquilo é um bebê ou um cachorro. Não dará tempo de se comunicar com o data center. Ele terá de decidir ali. Isso tem de acontecer lá na ponta, muito embora não deva atropelar nenhum dos dois.

Depois, o 'edge' vai levar esse conjunto de decisões para o data center, aumentar a base estatística e melhorar a capacidade de decisão. Voltará para a ponta dizendo: 'sempre que você ver esse conjunto de atributos, tenha certeza que é cachorro'. O 5G vai ser o promotor do 'edge computing', porque vai aumentar a capacidade de transmissão e processamento na ponta.

Na sua casa, haverá um gateway de 'edge computing' para controlar todas as instalações prediais. No fim do dia, aquele centralizador vai passar para o fabricante da iluminação tudo o que coletou para os produtos serem melhorados.

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Tilt - De que forma que o IoT se encaixa nesse futuro em que o computador será onipresente?
Luis Fernando Gonçalves -
Quando a gente levar IoT aos seus limites, removeremos toda a falta de precisão ao tomar uma decisão. Hoje, o médico analisa meu estado ao aferir a pressão ali na hora. E se ele tiver condição de ver uma tabela com a minha pressão em tempo real desde a última visita? O IoT vai permitir isso, porque seu relógio inteligente, smartphone ou anel vai coletar todos os dados.

As lâmpadas serão sensores, que analisarão luz natural e temperatura para definir qual é luminosidade necessária. Ao longo do tempo, você vai saber as áreas mais usadas em instalações prediais, porque a presença de alguém vai acionar a luminosidade automaticamente. Assim, eu vou saber os ambientes que precisam de mais manutenção, para limpar o carpete ou consertar algo. Hoje, como não sabe essas coisas, você limpa todo o andar. Vai sobrar dinheiro para gastar em outra coisa.

Tilt - Ficou difícil explicar para um leigo o que é computação?
Luis Fernando Gonçalves - Não digo que as pessoas tenham dificuldade de entender, mas elas não têm noção da profundidade dessa transformação digital. Como são as empresas que propagam essa ideia, parece uma coisa que é do mundo dos negócios. Mas não é. A forma como vivemos, como nos relacionamentos e como experimentamos a vida como seres humanos está sendo transformada pelo digital.

A penetração dos instrumentos digitais é ampla e vem crescendo. As pessoas compreendem o computador, o streaming do vídeo. Sabem que podem fazer agendamento pelo computador para resolver o IPTU, que podem tirar um documento eletrônico de antecedentes para apresentar no trabalho. O que talvez elas não tenham refletido é que há 10 anos não dava para fazer muita coisa.

Às vezes, a discussão fica restrita ao ambiente de negócios, mas se trata de indivíduos. Se a criança não consegue ir até a escola por falta de infraestrutura, de transporte, por que não levar a escola até a criança, por meio da tecnologia sem fio, wi-fi, 5G? A tecnologia permite, mas não pode ser algo disponível só na Suécia, tem que ser para a África, para o Brasil.

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