Como estamos de isolamento?

Dados fornecidos pela geolocalização de celulares mostram queda no número de pessoas em quarentena

Carlos Madeiro e Fabiana Uchinaka De Tilt, em Maceió e São Paulo Arte UOL

Talvez você não tenha reparado que o celular que carrega o tempo todo tem embutido um GPS (Sistema Global de Posicionamento, da sigla em inglês), que serve para te ajudar a saber onde está num mapa, qual caminho tomar quando está perdido, se deve virar à esquerda ou quanto falta para chegar a um destino, onde está o seu celular perdido/roubado ou qual o nome do estabelecimento onde está para colocar na descrição de uma foto no Instagram. O uso da chamada tecnologia de geolocalização, que permite a troca constante de informações entre seu aparelho e um satélite, costuma passar batido no nosso dia a dia, mas agora aparece um outro lado —muito assustador e também muito útil.

Empresas como a Google, dona de aplicativos como o Google Maps, o Waze e o Google Fotos, e o Facebook, dono de WhatsApp e Instagram, armazenam seus deslocamentos. Além de abastecer um histórico dos seus trajetos ou locais visitados, esses dados agora serão usados para criar índices (nacionais e por estado) do comprometimento com o isolamento social, medida defendida pelas autoridades sanitária para evitar a rápida propagação de covid-19.

Já a startup brasileira In Loco, especializada em fornecer inteligência a partir de dados de localização, puxou dados públicos dos celulares, usados na publicidade, para analisar o comportamento de 60 milhões de aparelhos brasileiros (a população estimada do Brasil hoje é de 211 milhões, segundo o IBGE). Ela usa uma tecnologia que interpreta as geolocalizações para dizer quantas pessoas estão "estacionadas", ou seja, em casa. Isso virou o IIS (Índice de Isolamento Social), que você pode analisar nos gráficos abaixo. Ele é medido diariamente, de forma automatizada (bot), para estabelecer a razão entre quem fica em casa e quem se desloca.

Normalmente, você precisa ativar a função de geolocalização — alguns pedem autorização para enviar os dados. Mas, quando isso acontece, eles se tornam públicos.

"A tecnologia detecta quando o celular fica por períodos prolongados em determinado local e envia para os servidores da In Loco qual é esse local e o número identificador de publicidade do smartphone [o Advertising ID] para contagem da visita, sem identificar diretamente os usuários", explicou André Ferraz, CEO da In Loco.

O Advertising ID ou código de publicidade é um número único que constantemente identifica os interesses dos usuários que navegam pelos serviços de plataformas como Google, Facebook, Apple e outros e-commerces. Ele serve para mostrar anúncios segmentados ou personalizados (ou "anúncios com base em interesses"), que geram receita para os apps, mas também podem ser usados para rastrear deslocamentos e uso de apps.

Adesão fica na casa de 55%

A principal informação que podemos tirar desse levantamento é que o ápice da adesão ao isolamento social foi em 26 de março, quando chegou a 57,6% dos usuários de celular —quando tiramos dessa conta os finais de semana. Desde então, o índice fica abaixo de 54%, marcando picos de pessoas em casa somente aos domingos.

A média do IIS nos últimos 13 dias foi de 55,2% —do dia 24 de março, primeiro dia de quarentena em São Paulo, principal foco dos casos, ao 5 de abril (última medida disponível). Excluindo os domingos, a adesão foi de 53,7%.

Antes dos decretos estaduais e municipais, que começaram a acontecer mais drasticamente a partir de 15 e 16 de março, esse IIS nos dias úteis ficava na casa dos 20%.

Comparando, temos:

  • 22 de março: 1º domingo com indicação de isolamento, índice vai a 69,6%
  • 5 de abril: domingo mais recente, índice caiu para 62,3%
  • Mais 4,4 milhões de pessoas nas ruas no intervalo de duas semanas

O Governo Federal já anunciou que esse tipo de cruzamento de dados será usado para monitorar aglomerações e direcionar políticas públicas de saúde. Medidas parecidas já foram adotadas pelas Prefeituras do Rio de Janeiro, em parceria com a Tim, e do Recife, com a In Loco. Isso resultou em equipes enviadas a áreas de aglomeração, carro de som passando por locais movimentados e envio de SMS com orientações e alertas para os clientes das operadoras.

O objetivo é monitorar:

  • a mobilidade populacional;
  • deslocamentos;
  • pontos de aglomeração;
  • situações de concentração de pessoas;
  • risco de contaminação pelo novo coronavírus.

Impacto das falas do presidente

Claro que outros fatores interferem no quadro, mas as informações mostram certo impacto dos discursos do presidente Jair Bolsonaro em relação ao isolamento social —que ele contesta, contrariando o próprio Ministério da Saúde, por considerar excessivo.

> No dia 15, enquanto muitas pessoas já se movimentavam para aderir à quarentena, com várias escolas fechando, Bolsonaro foi para a frente do Palácio do Alvorada interagir com manifestantes pró-governo. O índice cai de 51,3% no domingo, quando normalmente há mais gente em casa, para 38,5% na segunda-feira e 29,9% na terça.

> No dia 17, a primeira morte no Brasil foi anunciada, o que fez o índice voltar a subir (de 29,9% a 38,2% nos dias seguintes);

> No dia 22, um domingo, o isolamento atingiu o pico de 69,6%. Desde então, o isolamento passou a oscilar dentro da faixa dos 50%.

> No dia 24, São Paulo decretou quarentena. No fim do dia, Bolsonaro disse, em pronunciamento na TV, que a covid-19 é uma "gripezinha" que não o afetaria por seu "histórico de atleta". Disse ainda que ela não teria força no clima quente do Brasil e deveria ser resolvida com isolamento vertical (só idosos e grupos de risco em casa). O índice cai até chegar em 47,2% no dia 1º de abril, com recuperação apenas nos finais de semana (domingo, 29, e sábado, 4). (Veja o que diz a ciência sobre seis pontos do discurso)

> Nos dias 25 e 26, houve muita repercussão à fala do presidente, mas a adesão permaneceu até atingir o ápice de 57,5% na quinta. Desde então, a adesão caiu para outro patamar.

> No dia 30, segunda-feira, a semana já começa com índice de 52%.

> No dia 1º de abril, o IIS atinge seu menor índice desde que a quarentena foi decretada em SP e Bolsonaro fez pronunciamento.

Diferenças regionais e por setor

Os dados apontam ainda diferenças regionais da obediência das normas de isolamentos, especialmente em estados da região Centro-Oeste e Norte.

Curiosamente, o estado com maior adesão é Goiás (59,6%), grudado no Distrito Federal. Ao mesmo tempo, Tocantins (47,5%), logo acima, tem a menor adesão do país.

O Google disponibilizou na sexta-feira (3) o "Relatório de Mobilidade da Comunidade" em 130 países, inclusive no Brasil, com dados agregados e anônimos de usuários que ativaram a configuração "Histórico de Localização". As informações mostram alterações nas visitas de lugares como supermercados e parques.

    A partir dos dados disponibilizados pelo Google Maps, referentes a 29 de março, é possível ver a movimentação de forma mais segmentada. Na comparação com as primeiras semanas de janeiro e fevereiro, constatou-se que, no caso do Brasil, houve:

    • queda de 71% na movimentação em comércio
    • queda de 70% na movimentação em parques
    • queda de 62% em estações de transporte público
    • queda de 35% em supermercados e farmácias
    • queda de 34% em locais de trabalho

    Por outro lado, o texto aponta uma alta de 17% nas pessoas que ficaram em casa, que soa discrepante da queda na movimentação pelas ruas. Procurado, o Google Brasil não explicou os dados, só explicou que vai mostrar tendências de aumento ou redução nas visitas ao longo de várias semanas —tudo em termos percentuais, sem compartilhar o número absoluto de visitas aos locais. As informações mais recentes representarão o período de 48 a 72 horas anteriores à publicação.

    O aumento de 17%, no entanto, serve para comparar a adesão do Brasil na comparação com outros países. Por exemplo:

    • Argentina - 27%
    • Itália - 24%
    • Espanha - 22%
    • França - 18%
    • EUA - 12%

    O Facebook, que detém informações de mais de 2 bilhões de pessoas ao redor do mundo, sendo 130 milhões no Brasil, soltou três mapas com a movimentação dos brasileiros durante a pandemia:

    Apesar de métodos diferentes, os dados da In Loco, do Google e do Facebook mostram resultados parecidos. Tocantins, segundo o Google, é o estado com o menor aumento percentual (11%) de pessoas em casa entre todas as unidades da federação, no período analisado.

    No gráfico abaixo, divulgado pelo Facebook, é possível ver o nível de adesão por estado na comparação com os outros —a linha laranja mostra o estado na comparação com os demais (linhas cinzas). Em todas as imagens é possível notar uma queda drástica e depois uma menor adesão ao isolamento social ao longo do mês de março

    Divulgação/Facebook Divulgação/Facebook

    As comunidades de pesquisa e resposta em saúde pública podem e devem usar dados de mobilidade populacional coletados por empresas privadas, com as devidas garantias legais. Esses dados podem ajudar a refinar as intervenções, fornecendo informações quase em tempo real sobre mudanças nos padrões de movimento humano. Em vez de mostrar padrões individuais de viagem ou comportamento, as informações de vários dispositivos refletem mobilidade no nível da população

    Caroline Buckee, professora-assistente de epidemiologia da Escola de Saúde Pública da Universidade Harvard, em estudo publicado na revista Science

    Ficou preocupado?

    O monitoramento via celular já foi implantado em outros países, de formas até mais extensas, como é o caso da Coreia do Sul e da Itália. Os programas de rastreamento de infectados identificam e isolam o doente e acessam a rotina dele para avisar quem cruzou seu caminho.

    A estratégia foi elogiada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e pela Nações Unidas (ONU). "O uso de dados pessoais no combate à pandemia deve ser facilitado, e é crucial que seu uso seja limitado para este fim e por um período de tempo e que sejam mantidos direitos e garantias", diz declaração oficial do Escritório do Alto Comissariado para Direitos Humanos.

    Mas, tornar isso público, com riqueza de informações, é alvo de críticas por ativistas de direitos humanos.

    No Brasil, a iniciativa federal ganhou novos contornos quando o Ministério da Economia publicou duas resoluções que permitem o compartilhamento de dados entre órgãos do executivo federal sem a necessidade de autorização do cidadão ou a justificativa por parte do órgão (veja aqui a resolução 1 e a resolução 2). Dessa forma, o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações poderá compartilhar com mais rapidez os dados de geolocalização com o Ministério da Saúde.

    Isso despertou preocupação em relação à privacidade do cidadão e sobre o aparato de vigilância do estado, afirma Bruna Santos, analista de políticas públicas na Coding Rights, think tank de direitos humanos no mundo digital. "O Brasil segue o exemplo de vários países que têm incrementado o aparato de vigilância do estado durante a crise, porque há a necessidade ter acesso a informações que normalmente ficariam presas em ministérios e órgãos", diz.

    O ministério diz "não existir nenhum problema com privacidade". O Sinditelebrasil (sindicato das teles) afirma que as informações vão para uma nuvem pública para serem unificadas e anonimizadas e que a iniciativa funcionará apenas para agir contra a covid-19. Google, Facebook e In Loco dizem que os dados são anônimos e serão apagados ou estarão disponíveis por tempo limitado.

    A ideia geral é evitar que as flexibilizações necessárias para o uso de dados pessoais na elaboração de políticas virem regra. Dois limites precisam ser observados:

    • o princípio de finalidade (combate à epidemia)
    • o prazo no qual se aplica (o período crítico de propagação do vírus).

    Para Diogo Moyses, coordenador do programa de telecomunicações e direitos digitais do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), as operadoras deveriam ter pedido autorização aos clientes antes de compartilhar seus dados com os governos. "Os clientes deveriam primeiro autorizar o uso de dados, e não a empresa usar e, depois, se o cliente quiser, pedir à companhia para que ela não os use", diz. Ele vê uso abusivo e desproporcional de dados, pois não há norma legal que autorize empresas de telecomunicação a coletar dados desse tipo no Brasil.

    A vigência da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), que resolveria isso, foi adiada pelo Senado nesta semana. Segundo ela, as empresas precisam de consentimento explícito do usuário para coletar, armazenar e tratar dados das pessoas. Com a resolução do Ministério da Economia, não é mais necessário esse consentimento.

    Mas há um entendimento de que a LGPD já é uma lei válida após aprovação no Congresso e deve ser usada como referência para pautar o uso excepcional de dados pessoais durante o período de pandemia, porque dá mais segurança jurídica ao mencionar o uso da informação para proteção da vida.

    "Os dados podem ser usados em contexto de pandemia para proteger a coletividade, a própria LGPD fornece mecanismos para que essa utilização seja feita de forma adequada", disse o professor Danilo Doneda, em webinário do Laboratório de Políticas Públicas e Internet (LAPIN).

    "A tecnologia pode desempenhar um papel importante no esforço global de combater a pandemia da covid-19, no entanto, isso não dá aos governos carta-branca para expandir a vigilância digital. O passado recente mostrou que os governos relutam em renunciar a poderes temporários de vigilância", escreveu Rasha Abdul Rahim, da Anistia Internacional.

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