Motorista por um dia

Trabalhar para a Uber e a 99 me rendeu R$ 211,79, duas coxinhas e muitas dores

Bruna Souza Cruz De Tilt, em São Paulo Fernando Moraes/UOL

Débora caminha com um ar pesado até a esquina. Olha rapidamente para o celular, entra no carro. São pouco mais de 17h, e as ruas começam a ficar abarrotadas de gente e de veículos por todos os lados. Ainda que pareça estranho, um único olhar pelo retrovisor foi suficiente para um ligeiro alívio se espalhar ali dentro do carro. Não sei qual é a sua crença, mas sabe aquilo de "o santo bateu?". Os nossos, pelo visto, ficaram melhores amigos por 2h14 de viagem.

- Bruna?
- Débora? Boa tarde. Fique à vontade. Me confirma o endereço que você deseja ir? Prefere que eu siga o GPS?
- É esse mesmo, obrigada (tosse). Pode seguir o GPS, porque não sei chegar lá daqui, por favor (tosse).
- Quer que o ar-condicionado fique ligado ou desligado?
- Por enquanto está bom aqui (Tosse, tosse e mais tosse).
- Ok. Se mudar de ideia, eu desligo...

Esse diálogo protocolar logo virou um bate-papo divertido e cheio de surpresas sobre as coincidências da vida. Débora foi de longe a melhor passageira durante a minha experiência como motorista de aplicativos de transporte por um dia.

Conto agora os detalhes de todo o processo, as curiosidades e a saga para começar a dirigir. Convido você a sentar no banco do carona e curtir essa viagem comigo. Não se esqueça do cinto de segurança.

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Aquecendo os motores

Dez anos atrás, você se imaginava usando um aplicativo no celular para se deslocar pelas grandes cidades? A Uber chegou ao Brasil há cerca de cinco anos com protesto, briga, mudança na lei, histórias bizarras e casos bem tristes. Teve também muita gente envolvida --só no ano passado, mais de 600 mil motoristas e 22 milhões de passageiros usaram a plataforma. Nas ruas brasileiras, 99 Pop, Cabify e Lady Driver (só para mulheres) também ocupam um espaço importante.

Nós comumente conhecemos a história dos passageiros. Mas, para mim, faltava entender melhor um lado fundamental dessa equação: o de quem está no volante.

Muitos dos motoristas com quem conversei informalmente contaram que trabalham em média de 12h por dia ou terminam o expediente quando atingem a meta diária de R$ 200 a R$ 250. Então, me propus a:

  • experimentar esse mesmo período ou essa mesma meta diária;
  • usar os dois maiores apps, Uber e 99, que funcionam simultaneamente no celular;
  • evitar trabalhar tarde da noite ou de madrugada, por me sentir insegura;
  • usar um carro alugado por um período curto de tempo, porque não tenho um.

Claro que a experiência não foi igual ao de um motorista em tempo integral, dedicado a essa rotina e empenhado em garantir um salário no final do mês, mas nas 12h33 que eu passei na função pude sentir como a profissão pode ser insegura, solitária e cansativa. Dificilmente quem não esteve nessa situação vai entender.

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Conhecendo motoristas e pegando dicas

Um dia antes de ingressar nessa jornada, peguei um "uber" e contei que estava preparando-me para virar motorista, o rapaz ficou animado e tornou-se muito acolhedor. Anotou o número do meu celular e prometeu que me adicionaria ao grupo de WhatsApp do qual ele fazia parte -- não assumi que era jornalista para que a reação fosse a mais espontânea possível.

A principal recomendação que ele deu foi observar bem o perfil do passageiro antes de abrir o carro. "Dê uma passadinha devagar em frente ao local do embarque, como se você tivesse passado e fosse dar a volta. Se sentir algo estranho, continue em frente. Depois cancele a corrida. Segurança em primeiro lugar", falou.

Depois fui entender isso. Nunca tinha reparado que o motorista não recebe qualquer foto ou informações sobre o passageiro antes da corrida, para tentar evitar que haja qualquer tipo de discriminação (e já noticiamos alguns casos do tipo). Mas também é estranho não saber quem vai entrar no seu carro, especialmente para uma mulher --no meu caso, que já escreveu sobre casos de abusos sofridos pelas motoristas.

Logo na manhã seguinte, fui adicionada ao grupo do WhatsApp, que tinha 70 pessoas. Recebi várias mensagens de boas vindas, algumas piadinhas, muitas interações e alguns conselhos. Deixaram claro que eu poderia compartilhar ali localização em tempo real do meu carro sempre que eu me sentisse insegura. "Sempre têm alguns membros online. Compartilha a placa do carro e o trajeto. Qualquer emergência é mais fácil ajudar", disse um. Outro me chamou no privado e se colocou à disposição para ajudar no que fosse preciso. Tirei algumas dúvidas com ele e me senti acolhida.

É só olhar para os membros do grupo para saber que os homens são a esmagadora maioria, e eles sabem que não é fácil ser mulher nessa situação --senti que eles tinham um cuidado maior por eu ser a Bruna.

Eu tinha muitas inseguranças antes de enfrentar as ruas, mas parte delas sumiu por causa deste grupo

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Dando a partida: zero conversa e errei o lugar de pegar o passageiro

Assim que liguei o carro e deixei os aplicativos rodando, o frio na barriga veio com força. Dirigi em direção a um grande complexo empresarial, para aumentar a chance de começar a rodar logo, mas se passaram 10, 20, 30 minutos e nada de chamadas. Comecei a achar que estava com problema. Deu pau? Será que é a minha internet? Tudo certo, era só a minha ansiedade mesmo.

Quando o aplicativo da 99 tocou (não estou brincando), levei um susto real com aquele barulhinho. Claramente eu não sabia o que fazer, mesmo depois de ter passado um tempão estudando os sites e o passo a passo das plataformas. Na hora H, deu branco.

Acabou que passei do local do embarque sem querer e tive de dar a volta. Quando cheguei novamente, foi a vez de o passageiro demorar uma eternidade. O GPS provavelmente deu a localização errada, porque a pessoa estava aguardando na mesma rua, só que em outra numeração. Mandei mensagem pelo aplicativo e nada. Tentei ligar, nada. Até que apareceu uma mulher e entrou no carro.

Outro susto. O nome que aparecia para mim era o de um homem. Ela entrou muda e saiu praticamente calada depois de um percurso de quase 10 minutos.

Para uma primeira viagem, foi frustrante. Rendeu só R$ 6,14, zero papo e pouca história para relatar.

Resumo da viagem:

  • Valor pago pelo passageiro: R$ 9
  • Meu ganho: R$ 6,14
  • Quanto fica com a 99: R$ 2,86
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Engatando a primeira: me senti invisível como motorista

Logo em seguida, foi a vez de levar dois cariocas para um hospital, num percurso de 48 minutos --era por volta de meio-dia e o trânsito já estava daquele jeito bem paulistano. Somos orientados pela empresa a não forçar conversas, tentei dar abertura, mas eles ficaram falando entre eles de negócios e da colega de trabalho que precisou ser internada.

Foi então que eu comecei a me sentir estranha e até agora não consigo explicar direito o motivo. Eles não foram desrespeitosos, eu que senti como se eu fosse invisível. Fiquei pensando se os outros motoristas se sentem assim, mas para mim isso foi uma grande lição. Na dúvida, continuarei sendo mais sociável como passageira.

Depois que os deixei, precisei voltar para casa para resolver um problema técnico com o cabo que garante a bateria do celular. Aproveitei para almoçar, já que tinha esquecido minha "marmita". Outras lições aprendidas: 1) organização é tudo, não esqueça o almoço e 2) como gasta bateria rodar com o app ligado, acabou rapidinho.

Segui para o centro e logo veio mais uma corrida de R$ 7,45 e outro passageiro calado. Mais uma corrida, quem sabe agora dá dinheiro? Nada. Entraram duas passageiras muito simpáticas e educadas, que moravam fora de São Paulo e estavam na cidade para um curso de uma semana. Tinham aproveitado um tempinho para fazer umas compras. Nem deu tempo de conhecê-las melhor, porque o percurso durou 10 minutos (R$ 5,52 reais).

Ao se despedirem, falaram: "Fica com Deus e cuidado. Ser mulher e dirigir é bem perigoso. Boa sorte em seu novo trabalho e que você vá em segurança". Achei fofo e um bom retrato do jeito do brasileiro se relacionar.

Até o fim do dia, passaram ainda pelo meu carro uma advogada recém-formada que precisava resolver se teria o diploma ou não, dois casais, uma médica, um rapaz que parecia entender tudo de marketing digital e uma jovem que sugeriu um colírio para os meus olhos ressecados.

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Pit stop: Ganhei uma coxinha e uma amiga de viagem

Mas nem só de passageiros calados se faz uma vida de motorista. Já era final do dia, o horário de pico tinha chegado e eu estava perto do Largo da Batata, zona oeste de São Paulo quando entrou a Débora. Com a garganta inflamada e uma tosse sem fim, ela me garantiu a viagem mais longa de toda a experiência --e a mais interessante.

Fomos em direção a um dos únicos hospitais que o convênio dela atendia, em Santo André, na região metropolitana da cidade. Se você não manja de São Paulo, saiba que é bem longe. O Waze calculou que o percurso ia durar uma hora, mas no fim virou 2h14. Deu tempo de conversar sobre faculdade, carreira e planos para o futuro. Descobrimos que estudamos na mesma universidade e tivemos alguns professores em comum.

A tosse não a impediu de falar, mas a obrigou a parar para ir ao banheiro. "Tomei litros e mais litros de água [para acalmar a garganta]", contou. Encostei rapidamente num restaurante fast food, famoso por suas coxinhas. Minutos depois, ela me aparece aliviada e com quatro coxinhas na mão --duas para ela e duas para mim.

Eu estava morrendo de fome e foi a melhor surpresa do dia.

Comemos e seguimos no bate-papo animado, então achei que era hora de revelar para ela que eu era jornalista. Ela achou o máximo.

Resumo da viagem:

  • Valor pago pelo passageiro: R$ 65,06
  • Meu ganho: R$ 60,19
  • Ganho da Uber: R$ 0,55
  • Valores ligados à prefeitura, órgãos públicos etc.: R$ 4,32

Curiosidades

O xixi

Vários motoristas costumam parar em postos de gasolina. Quando foi minha vez, entrei no primeiro restaurante fast food que vi. Aproveitei também para comer (fazia quase 4h que não comia nada) e tomar um café para acordar.

A espera

As corridas não aconteceram em sequência. Fiquei vários minutos dirigindo solitariamente esperando o match entre o passageiro e meu carro acontecer. A maior espera foi de quase 40 minutos.

O silêncio

Imaginei que passaria horas conversando e conhecendo pessoas. Que engano. Ao todo, 16 pessoas passaram pelo meu carro. Se quatro delas conversaram comigo, foi muito. A maioria ficou no celular.

O app que rende

Das 16 viagens feitas, 12 foram pela Uber. Foi o app que mais tocou, logo, o que mais rendeu (R$ 161,29). Em geral, as corridas foram rápidas. Pelo menos 12 delas duraram menos de 20 minutos. A menor durou 5.

Como me tornei motorista?

Tornar-se motorista de aplicativo não é algo rápido. Antigamente, dizem que tudo levava dois, três dias. No meu caso, foram três semanas até eu conseguir a autorização completa. Algumas cidades, como São Paulo (onde fiz o processo), possuem regras mais rígidas para dar o aceite final para os motoristas parceiros. Mas a burocracia é diferente em cada lugar.

  • 1

    2ª via da CNH

    A carteira de habilitação precisa ter a indicação de "Exerce atividade remunerada - EAR". Para isso, é preciso ir até o Detran da sua cidade. O exame psicotécnico é obrigatório. Valores gastos: R$ 102,14 do exame psicológico + R$ 43,77 da emissão do documento.

  • 2

    Cadastro

    Para a Uber, você precisa enviar dados pessoais (nome completo, CPF, email, comprovante de endereço e outros), uma cópia da CNH e uma foto de rosto. A 99 também me pediu uma foto do rosto, segurando a carteira de habilitação na lateral da imagem. Tudo é gratuito.

  • 3

    Análise

    Feito isso, você precisa esperar as empresas analisarem seus dados e a documentação. A Uber demora até sete dias úteis para dar um retorno, a 99 finaliza o processo em até cinco. No meu caso, fui aceita em dois dias pelas duas.

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O raio do ConduApp: burocracia necessária, mas que atrasa quem tem pressa em trabalhar

Em São Paulo, você precisa do ConduApp, sigla para "Cadastro Municipal de Condutores de Aplicativo". Sem ele, o carro pode ser apreendido. Então, mesmo que os apps tenham me liberado para dirigir em dois dias, o link para fazer o curso de formação para obter do cadastro não chegava nunca. Demorou cinco dias para a Uber disponibilizar login e senha para isso. A 99 nem sinal.

Como é o curso: vários vídeos de orientação ficam disponíveis em sequência. Os temas vão de dicas de como usar o aplicativo (da Uber) até o que fazer em caso de acidentes e como dirigir de um modo mais seguro (direção defensiva). Alguns conteúdos passam de 30 minutos, então fiz pausas --o ritmo quem dá é você, mas a recomendação é de que ele seja concluído em até 30 dias.

E depois?: o sistema avisa a prefeitura que você assistiu aos vídeos. No meu caso, levou um dia apenas para me autorizarem a circular por aí.

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Quanto eu ganhei?

Parei de dirigir quando atingi 12h33 e ganhei R$ 211,79, bem perto da meta que os motoristas costumam estabelecer.

No meu caso, os gastos foram maiores que os ganhos --há empresas de aluguel de carros conveniadas com os serviços de transporte que podem oferecer pacotes mais atraentes para quem não tem ou não quer desvalorizar o carro. Usamos um aluguel normal, longe do ideal, porque esse não era o foco da reportagem.

Mas, só o que eu gastei com álcool já foi quase 50% desse valor. Outra coisa que pesou foi o estacionamento --se o motorista não possui um local próprio para guardar o seu veículo, terá que compensar esse custo com mais horas de trabalho.

Eu terminei minha experiência com as pernas doendo, o joelho reclamando e as costas latejando. Terminei também pensando que esta é uma rotina muito individual, apesar do intenso fluxo de gente entrando e saindo do carro --minha experiência foi diferente das relatadas por outros motoristas com quem conversei, que acham esse fluxo intenso de pessoas dinâmico e divertido.

Tive medo, mas também me diverti. Tudo aconteceu dentro do esperado e, ainda bem, não passei pelos perigos que os motoristas devem enfrentar diariamente. Mas vale saber que respirei aliviada cada vez que uma passageira entrou no meu carro.

Por fim, não se esqueça da avaliação. É com ela que os bons motoristas conseguem se destacar no trabalho com aplicativos. Fiz poucas viagens, mas mantive a minha nota 5. Fiquei feliz com o reconhecimento e ganhei um único elogio: "muito simpática".

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