A paz esteja convosco

Reparou que a vida urbana anda bem ruidosa? Virou questão de saúde pública, mas como achar o silêncio?

Jacqueline Lafloufa Colaboração para Tilt Guilherme Zamarioli/UOL

Enquanto digito essas linhas, percebo o quanto sou privilegiada. Ao combinar potentes protetores intra-auriculares e um fone com isolamento acústico, nem ouço o barulho das teclas. Mas, noto, o silêncio custa caro —e, nos centros urbanos, é para poucos.

Faça o exercício de acordar e não abrir os olhos. Quantos barulhos você ouve? O despertador tocou? As mensagens apitaram? Um carro freou? Um caminhão buzinou? A polícia passou? Alguém deu ré e ficou aquele pi, pi, pi grudado na sua cabeça. O guindaste de alguma nova construção que você sequer notou na vizinhança fez um estrondo e já ligaram a furadeira. E o avião, deu para ouvir? A moto, com certeza.

No banheiro, até a escova elétrica faz um zunido. Reparou no barbeador? No secador? O alto-falante inteligente toca música enquanto você está no banho? Inclusive a descarga é barulhenta (a sua e a da vizinho, que você consegue ouvir e monitorar).

Com um botão a máquina de café dá início àquele processo cheiroso, mas torna quase impossível ouvir o longo áudio de WhatsApp que chegou antes das 9h. A geladeira, você nem nota mais, emite um contínuo white-noise (ruído branco), assim como o microondas, o ar-condicionado, a máquina de lavar, o aspirador. Melhor desligar a TV.

Na rua, então, o barulho é constante. No carro, é só fechar o vidro para sentir a diferença. No transporte público, os horários de pico de uma grande cidade como São Paulo são atordoantes. Na escola, na academia, no trabalho... Não tem muito como fugir: a vida urbana está cada vez mais ruidosa, o que preocupa autoridades no mundo todo.

Guilherme Zamarioli/UOL Guilherme Zamarioli/UOL

Problema real oficial

Se cansou só ler, imagina como anda seu ouvido. E sua mente. Segundo a Organização Mundial da Saúde, a poluição sonora tem sido subestimada como uma das principais ameaças à saúde, junto com a poluição do ar e da água.

"Isso acontece porque o ruído é muito subjetivo. O que é barulho para mim de repente não é barulho para você", explica a Andrea Petian, fonoaudióloga e especialista em ruídos em ambientes laborais. Um torneira pingando pode ser torturante, mas é bem difícil provar que ela é uma vilã dos decibéis —sons, vale dizer, são realmente usados como uma forma de tortura.

Apesar de a sensação ser subjetiva, os impactos são comprovados cientificamente: o mais indiscutível deles é a perda auditiva por exposição a barulhos excessivos, que foi descrita já em 1989 pelo American College of Occupational Medicine Noise and Hearing Conservation Committee. Mas existem ainda impactos fisiológicos e emocionais, como prejudicar o sono, dar dor de cabeça, causar insônia e cansaço ou provocar irritabilidade em pessoas mais sensíveis, explica Mara Gandara, médica responsável pelo ambulatório de saúde auditiva do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP).

"O excesso de barulho pode aumentar os níveis de pressão arterial, especialmente quando o ruído é frequente, além de agravar o estresse", diz a otorrinolaringologista Mariana Hausen Pinna, do Grupo de Surdez do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Guilherme Zamarioli/UOL Guilherme Zamarioli/UOL

Pequenas batalhas

No meio do caos acústico, cada um busca suas ilhas de silêncio do jeito que pode. "Já cheguei a colocar os fones na orelha sem nada tocando, apenas para tentar reduzir o barulho externo", conta a jornalista e analista de comunicação Joice Coletti, de 32 anos.

Ela não está sozinha, basta caminhar nos grandes centros urbanos para entender que o acessório virou item de utilidade máxima. Mas, para uma pessoa especialmente sensível aos sons, como ela, só isso não basta. O jornalista sofre com a falta de concentração no trabalho (até uma conversa de corredor atrapalha) e com o barulho da vizinhança interferindo no seu sono. Vive, portanto, travando pequenas batalhas em busca do silêncio.

"Sempre quis morar aqui, mas agora estou orçando janelas antirruído para instalar no apartamento", conta Coletti, já um pouco exasperada com o estresse do barulho e a falta de sono causados pelos ruídos do seu novo bairro, a Barra Funda, na região oeste da capital paulista. Ela também faz denúncias à prefeitura, especialmente sobre os apitos da ré de caminhões de lixo durante a madrugada, e encabeça tensas conversas com os responsáveis por geradores utilizados por estúdios na região, cujos motores a diesel geram insistentes zumbidos.

Acha exagero? Os médicos afirmam que sons constantes acima dos 65 decibéis já são suficientes para tirar ou desviar a atenção, fazendo com que as pessoas percam o foco. A maioria dos gadgets do mercado possui potência máxima de 90 a 120 decibéis, sendo que o limite saudável é de 85 decibéis por no máximo oito horas diárias (acima disso já pode causar perda auditiva).

Para você ter uma ideia:

  • Turbina do avião a jato - 140 decibéis
  • Shows de rock, com distância de 1 a 2 metros da caixa de som - 120
  • Avenida movimentada - 85
  • Automóvel passando a 20 metros - 70
  • Conversação a 1 metro - 60
  • Falar sussurrando - 20

Isso quer dizer que colocar música alta para mascarar o barulho é um grande erro, especialmente no metrô, onde os decibéis podem chegar a 110.

"Há uma tendência de aumentar o volume dos fones para superar o som ambiente. Se o volume estiver muito alto, há chance de lesões e perda irreversível da audição"
Mara Gambara

Existe inclusive uma determinação da Associação Brasileira de Normas e Técnicas (ABNT) para que as construtoras garantam o desempenho acústico das residências —e a entidade recomenda que você cobre isso dos responsáveis pelos imóveis: isolamento de pisos e paredes internas para minimizar ruídos e pressões acústicas.

"Também é indicado dar preferência a eletrodomésticos com o Selo Ruído, que indica uma menor emissão sonora", recomenda Krisdany Cavalcante, coordenador da Comissão de Estudos Especiais de Acústica da associação. Criado pelo Inmetro e Ibama, o Selo Ruído costuma estar visível em eletrodomésticos como geladeiras, aspiradores de pó, secadores de cabelo e liquidificadores, indicando quanto ruído aquele produto emite.

Ao mesmo tempo, o estresse é tão grande que estamos emudecendo também nossas convivências. Quem aí deixa o celular sempre no "modo silencioso", desencanou de usar o telefone, só fala pelo WhatsApp e habilitou todos os recursos para bloquear as notificações? Recentemente, um novo recurso do Uber deu o que falar ao inserir a opção de "prefiro não conversar com o motorista" nas corridas pelo aplicativo.


Segundo o relatório Fjord Trends 2019, feito pela consultoria Accenture para apontar tendências, a busca por desconexão e bloqueio de notificações, mensagens e conteúdos é evidente e crescente. "Silêncio é ouro", diz o texto. "As marcas precisam encontrar maneiras de serem ouvidas pelos consumidores que querem apenas silêncio em um mundo barulhento."

"Estamos vendo uma escalada dramática na taxa de desconexão das pessoas, elas cancelam inscrições e optam por impedir a enxurrada de conteúdo e mensagens que atrapalham a vida cotidiana. Como consumidores, percebemos que não é mais apenas uma opção de estilo de vida, mas um sério problema de saúde mental. À medida que colocamos mais barreiras entre nós e as tecnologias digitais, as organizações precisam aprender a oferecer valor aos usuários que desejam tranquilidade em um mundo barulhento"
Fjord Trends 2019

O relatório destaca ainda que a 1ª Cúpula Global de Saúde Mental, que aconteceu em Londres, escancarou a preocupação de diversas organizações mundo afora, discutiu maneiras de lidar com o impacto negativo das tecnologias digitais e evidenciou a reação da indústria tech —o Center for Humane Technology (grupo de ex-funcionários do Vale do Silício) disse que redes sociais e smartphones estão "sequestrando nossas mentes e a sociedade".

Silenciar um perfil, um contato ou um grupo de mensagens é algo que quase toda mídia social oferece em algum momento —Twitter e WhatsApp contam com botões de "mudo" desde 2014. Mas, mais recentemente, essa pressão fez Apple, Google e Microsoft responderam com várias "ferramentas de bem-estar".

Guilherme Zamarioli/UOL Guilherme Zamarioli/UOL

Cultura do cancelamento?

Enquanto isso, as buscas mundiais pela expressão em inglês noise canceling (cancelamento de ruídos), normalmente associada a fones com tecnologias que reduzem o barulho do exterior, cresceram 475% nos últimos 5 anos, segundo dados do Google Trends.

Fones do tipo emitem uma onda sonora que cancela a onda incidente, explica o professor José Roberto de França Arruda, do Laboratório de Vibroacústida da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), por isso são uma alternativa muito melhor do que bombar uma música no seu tímpano. As opções mais modernas têm até a capacidade de controlar quais ruídos do ambiente serão permitidos, o que evita que você perca um anúncio do aeroporto ou do metrô.


Segundo a Sony, fones com cancelamento de ruído já representam quase metade de todas as vendas de fone de ouvido da marca, tida como uma das líderes desse mercado. Pelas projeções da Reportlinker, que agrega relatórios da indústria, as vendas devem crescer 14% anualmente até 2024. "Há 5 anos, sequer vendíamos esses fones localmente", conta André Mendes, gerente de produtos de áudio da Sony Brasil. Hoje, já são cinco modelos capazes de bloquear os ruídos externos.

Fones do tipo, comercializados por marcas como Bose, Sony, JBL e Sennheiser, chegam a custar cerca de R$ 2.000 —eu disse que o silêncio custa caro e é para privilegiados.

Há opções mais acessíveis, claro. Muita gente apela para o velho e bom protetor auditivo, aquela borrachinha ou espuma de colocar dentro da orelha, especialmente na hora de dormir. "São Paulo é disparado a cidade que mais faz compras", explica Marcelo Morais, fundador da loja online Dorminhoco, que vende esses produtos desde 2014. O carro chefe da loja é o kit com 11 modelos diferentes, que permite ao comprador entender qual protetor se adapta melhor ao seu duto auditivo e ao tipo de som que está tentando bloquear. Mas o formato Maxi Slim Fit, "o roxinho" mais compacto, é o que faz mais sucesso.Fato é que existem estudos científicos que comprovam os motivos do sucesso do kit: a eficiência e o conforto dos protetores auditivos depende do seu tamanho, que deve se adaptar o mais anatomicamente possível a cada usuário.

Um exemplo do cúmulo do desespero por paz de espírito se chama "Flutuar". São câmeras de flutuação disponíveis na região central de São Paulo, que você pode alugar por preços a partir de R$ 150 a hora. Você fica dentro de um tanque feito de dupla camada de plástico e espuma, totalmente privado de estímulos sensoriais, experimentando um silêncio quase absoluto.

"Ficam apenas você e os seus ruídos, como a respiração e os batimentos cardíacos. Existem gestantes que chegam a relatar ouvir o batimento cardíaco dos seus bebês", conta Tobias Nold, fundador da Flutuar. "Além de ajudar a reduzir a ansiedade e o estresse, há um favorecimento da performance do sistema cognitivo. Há quem diga que se sente entrando em um estado de flow [fluxo mental de máxima motivação], capaz de olhar os problemas sob uma outra perspectiva e criar soluções mais criativas", diz.

Quem mora no campo deve rir do nosso gasto e esforço por minutos de silêncio na selva de pedra.

Guilherme Zamarioli/UOL Guilherme Zamarioli/UOL

Dá pra baixar o volume da vida?

O desenvolvimento tecnológico pode ter uma faceta bem patética. Mas é claro que não é saudável ficar exposto a volumes acima dos 65 decibéis e ser atormentado por centenas de notificações de grupos de WhatsApp incessantemente. A vida urbana exige equilíbrio, manter-se completamente alheio a ruídos por longos períodos de tempo, além de perigoso (imagine não ouvir um alarme de incêndio!) também é bastante irreal. "Nem mesmo na natureza encontramos o silêncio total", lembra Mara Gandara.

"Mais de 70% dos nossos clientes mora em apartamento e está tentando superar barulho dos vizinhos, falatório nas ruas próximas, marido roncando, cachorro latindo, até passarinho: uma senhora do Rio de Janeiro comprou um estoque de protetores, porque disse odiar o canto dos passarinhos pela manhã", conta o responsável pela loja de protetores auriculares.

Sim, passarinhos. Ou seja, o incômodo que cada um sente com ruídos é bastante subjetivo.

"A natureza também tem seus sons, como o canto dos pássaros ou o barulho do mar. São apenas sons que chegam à sua orelha. Agora, gostar ou não gostar desses sons, deixar que eles te irritem, isso é a nossa mente que decide", explica a monja budista Miao You, do templo Zu Lai.

Para You, já que silenciar o mundo ao redor é impossível, o melhor é deixar a mente preparada. "Um mantra pode ajudar a orientar a nossa mente, porque é melhor lidar com um barulho que você escolheu [o barulho do mantra] para acalmar a mente", sugere. O que não vale é ficar reclamando eternamente dos barulhos da vida, diz. "Vira um mantra negativo, e você se concentra nesses ruídos incomodativos até sem querer."

Isso não significa que as práticas budistas indiquem ignorar solenemente os ruídos e controlar os decibéis com o poder da mente. "Se você tem sensibilidade aos ruídos, procure ajuda, siga o conselho dos médicos e busque por momentos de silêncio", sugere a monja.

Se inspirou? Veja abaixo algumas leituras e apps que podem te ajudar a entender o que causa ruído mental e encontrar formas de silenciar o pensamento:

Apps

  • Moment App (iOS e Android)

    Um app que te ajuda a monitorar o tempo que você passa no celular, com lembretes para deixar o aparelhinho de lado por algumas horas

  • RescueTime (iOS, Android, Windows e Mac OS)

    Esse aplicativo rastreia suas atividades - pode ser no desktop ou no celular - para te dar uma visibilidade de como você anda gastando seu tempo.

  • Headspace (iOS e Android)

    Precisando aprender a ficar em silêncio de novo? Esse app ajuda com aulas de meditação guiadas. Algumas são grátis.

  • Calm (iOS e Android)

    Outra alternativa de meditacão guiada, que ajuda a reduzir o estresse e reduzir a barulheira da sua vida.

  • Medite.se (iOS e Android)

    Feito por brasileiros, esse app traz diversas opções gratuitas de sessões de meditação guiada para quem quer silenciar a mente.

Livros

  • Celular: Como dar um tempo

    Um guia de 30 dias para diminuir o uso do celular, de Catherine Price.

  • Minimalismo Digital

    As vantagens de alguns momentos de desconexão, de Cal Newport.

  • Conecte-se ao que importa

    Uma reflexão sobre os riscos de se manter conectado por tempo demais, de Pedro Burgos.

  • Detox Digital

    ebook da Contente.vc, gratuito e disponível online. Traz artigos de alguns dos principais experts brasileiros e estrangeiros sobre a necessidade de dar um tempo na conexão digital

  • Dez argumentos para você deletar agora as suas redes sociais

    Para evitar que as redes sociais fiquem "buzinando" na sua mente (entre outros males), Jaron Lanier traz 10 bons argumentos para você abandonar seus perfis, ao menos temporariamente.

Guilherme Zamarioli/UOL Guilherme Zamarioli/UOL

Viciados, hora da desintoxicação!

Use a arma que for (um fim de semana longe das fontes de ruído que te incomodam, um passeio no parque, fones com isolamento acústico, câmaras silenciosas ou protetores auriculares), mas saiba que o barulho é viciante e você precisa treinar os ouvidos.

"O silêncio pode ser reparador. Além de promover um relaxamento e aumentar a concentração, ele vai permitir que as células da orelha interna possam repousar", explica Gandara.

"Alguns pacientes quando entram nas cabines de audiometria ficam irritados e incomodados com o silêncio. Isso acontece porque o ruído é viciante, e a presença do barulho passa a ser uma necessidade fisiológica", conta fonoaudióloga Andrea Petian. "Quanto mais convivemos com ruído, mais precisamos dele. É isso que faz muitos jovens aumentarem os sons dos fones, eletrônicos e televisores, o que pode levar à perda auditiva."

Segundo ela, é como se fosse uma dieta, só que de sons. "O ruído é parte das nossas vidas, e pequenas experiências de silêncio podem ajudar a nos conscientizar sobre o que é excessivo e buscar minimizar os emissores ou mitigar a exposição aos ruídos do dia a dia."

Sentiu que é um dependente? Passe a controlar o volume dos sons do cotidiano, eduque seu ouvido à metade dos decibéis totais e sempre busque ambientes silenciosos, diz a especialista.

Guilherme Zamarioli/UOL Guilherme Zamarioli/UOL

Grandes batalhas

Por fim, os pequenos momentos individuais de silêncio não reduzem a importância de políticas públicas para o controle dos ruídos, como a Lei do Silêncio e a vigilância de serviços das prefeituras, como o Programa de Silêncio Urbano (PSIU) da prefeitura de São Paulo.

Na capital paulista, as limitações são determinadas por zoneamento urbano, com as zonas mistas devendo respeitar o limite de 60 decibéis entre as 7h e 19h, de 55 decibéis entre as 19h e 22h e de no máximo 50 decibéis entre 22h e 7h.

Quem se sentir lesado pelo som alto em bares, igrejas, supermercados, restaurantes ou até por veículos com som alto pode usar aplicativos medidores como o Decibel X (disponível para iOS e Android) para averiguar a situação e, em caso de infração, fazer uma denúncia pelo 156.

Topo