A anti-Apple

Como a Positivo fez 30 anos em área dominada por gringas? "Entendemos a complicação brasileira", diz CEO

Helton Simões Gomes Do UOL, em São Paulo Helton Simões Gomes/UOL

O mercado dos celulares no Brasil é loteado por estrangeiras: a sul-coreana Samsung é líder incontestável, a norte-americana Apple tem o modelo mais cobiçado e as chinesas Huawei e Xiaomi são debutantes que prometem brigar pela liderança. Mas há uma exceção: uma brasileira abocanha a parte desse segmento que você talvez não ache assim tão charmosa, por não ter recursos de ponta como reconhecimento facial ou carregamento sem fio. É a Positivo, que lidera em vendas de smartphones baratinhos (mesmo!, já que custam até R$ 500) e é vice entre os chamados feature phones, os celulares tradicionais que possuem funções limitadas e acesso restrito a internet e a aplicativos.

Hélio Rotenberg, presidente da empresa, conta que isso não é à toa. Um dos motivos para a companhia ter chegado aos 30 anos, diz ele, foi investir em produtos fáceis de usar, como o computador pronto para acessar internet quando isso ainda era complicado, e alinhados às necessidades de consumidores brasileiros da classe C, como o celular de três chips, na época que era moda ter mais de uma linha para aproveitar descontos.

Não adianta eu tentar atingir o consumidor de Apple

Aprender a navegar em um mar de dificuldades é outra razão para a sobrevivência, diz. E elas não param de chegar: recentemente o presidente Jair Bolsonaro falou que vai reduzir os impostos de importação para computadores e celulares, algo que pode atingir em cheio quem produz esses equipamentos no país.

Em um país complicado, é uma vantagem entender a complicação. E faz 30 anos que a gente entende a complicação brasileira. Está dando certo

Segundo ele, a empresa hoje discute diversas pautas ao mesmo tempo, como a nova Lei de Informática, os rumos da Zona Franca de Manaus, a alíquota de importação... "Tudo ao mesmo tempo. O empresário estrangeiro olha isso e pensa: 'meu Deus do céu, como pode ter tanta variável? Como é que eu planejo?'"

Apostar na simplicidade não quer dizer abrir mão de inovar. Nessas três décadas, a Positivo já destinou meio bilhão de reais para pesquisa e desenvolvimento de produtos. "O nosso Android é a cara do brasileiro; os outros já vêm prontos." Nem tudo, porém, é feito dentro de casa. Para embarcar na onda da Internet das Coisas (eletrônicos conectados que "falam" uns com os outros), a Positivo está expandindo sua atuação para além dos computadores: investiu em startups voltadas ao agronegócio e prepara sua linha de casa inteligente.

Leia abaixo os principais trechos da entrevista de Hélio Rotenberg ao UOL Tecnologia.

Helton Simões Gomes/UOL
Helton Simões Gomes/UOL

Sobrevivendo a crises

UOL Tecnologia: A empresa surgiu num período difícil, quando o Brasil acabou com a reserva de mercado, no fim dos anos 1990, o que fez o setor de semicondutores desaparecer e muitas companhias de informática sofreram. Como foi esse momento?

HR: Como a Positivo nasceu em maio de 1989, nós tivemos 10 meses sem crise, que foi bem grave. Não foi só a abertura de mercado. No começo, a empresa vendia computador para escola, e o [ex-presidente Fernando] Collor congelou as mensalidades escolares e tivemos que mudar de mercado. De cara, já enfrentamos duas crises enormes.

Desde então, aquele ideograma japonês de que a oportunidade está dentro da crise vem sempre na cabeça. A gente tem tido um monte de crises ao longo do percurso, mas consegue sair mais fortalecido.

UOL Tecnologia: Qual o segredo para não só sobreviver como também virar multinacional, ainda mais no setor de tecnologia em que parece que tudo que é bom vem de fora?

HR: Trabalhar duro e entender o mercado. Talvez o nosso diferencial nesses anos todos tenha sido entender o consumidor em cada um dos mercados que a gente atua. A gente entrou no varejo em 2003, 2004 quando lançou um computador pronto para internet. Parecia coisa de outro mundo, porque as pessoas se batiam para fazer a internet funcionar, principalmente as famílias de classe média.

Quando percebemos que os planos pré-pagos estavam tomando conta do país, lançamos um smartphone com três chips. Junto ao governo, percebemos que as licitações públicas têm poder de exigir especificações determinadas, que mudam de órgão para órgão. Por isso, passamos a produzir sob encomenda para eles, coisa que outras empresas não conseguem fazer porque só têm modelos fixos.

UOL Tecnologia: Vocês nasceram como fabricante de computador, cujas vendas caem constantemente. É um segmento que vai acabar?

HR: Eu não acho que o computador vá acabar. O computador ainda possui uma grande diferença, de quem produz para quem consome tecnologia. Todo consumo de conteúdo passou para o smartphone, mas a produção, não. O trabalho escolar, por exemplo, continua preferencialmente feito no computador, não no smartphone.

Nosso dedo não diminui e o olho não aumenta

Aqui no Brasil, a diminuição do uso do computador é combinada com uma crise financeira enorme. Nosso mercado chegou a representar 3,5% do mercado mundial de computadores entre 2012 e 2013. Hoje é só 1,8%, mas a gente já vê que parou de cair.

UOL Tecnologia: Por que vocês expandiram para outras áreas além da informática?

HR: O mercado de computador diminuiu, sem dúvida, e nós precisávamos continuar crescendo. Depois do smartphone, decidimos entrar em outras tecnologias. Nós não somos mais uma empresa de computador, mas, sim, de tecnologia. Achamos que houve uma revolução dos últimos dois anos.

Com o barateamento do preço da comunicação e dos sensores, surgiu a oportunidade de entrar na Internet das Coisas. Como empresa de tecnologia, a gente não podia ficar fora dessa onda

UOL Tecnologia: E vocês até passaram a investir em várias startups...

HR: Acreditamos que é aí onde está o crescimento, mas não conseguimos fazer tudo organicamente. IoT é um termo muito abrangente. Na área da educação, continuamos fazendo dentro de casa, porque somos forte nesse segmento. Mas, para fazer na área médica, julgamos que seria melhor investir. A mesma coisa na área agrícola, mais distante do nosso negócio central.

Lutando com gigantes

UOL Tecnologia: Quais são as maiores dificuldades de se viver de tecnologia no Brasil?

HR: Competir contra gigantes mundiais. O grande paradigma é continuar sempre atualizado na mesma velocidade dos grandes. O mundo inteiro se concentrou em ecossistemas, como o taiwanês, o chinês e o coreano. Eles são fornecedores de todos os fabricantes de computador e smartphone, mas a combinação de componentes, de partes do projeto, do design, é você quem faz. Isso é combinado com o conhecimento profundo de quem será atendido.

Não adianta trazer um computador de R$ 5.000 muito legal, que você não vai vendê-lo para a classe C. Tem que trazer o que há de melhor na tecnologia, mas no preço que cabe no bolso dessas famílias

UOL Tecnologia: Mas há alguma facilidade de se viver de tecnologia no Brasil?

HR: Todo mundo esquece, mas nós temos um mercado interno muito grande. Hoje até temos fábrica na Argentina, fornecemos para o Uruguai, estamos na África, mas a gente poderia viver só de Brasil. São 200 milhões de pessoas que vivem aqui, e esse mercado ninguém tira da gente. Entender as pessoas é uma vantagem, porque, em um país complicado, é uma vantagem entender a complicação. E faz 30 anos que a gente entende a complicação brasileira. E está dando certo.

Estamos nesse momento com diversas discussões: nova Lei de Informática, como fica a Zona Franca, como fica a alíquota de importação. Tudo ao mesmo tempo. O empresário estrangeiro olha isso e pensa: 'meu Deus do céu, como pode ter tanta variável? Como é que eu planejo?'. A gente está acostumado com isso.

UOL Tecnologia: Falando em estrangeiros, o que deu de errado com a parceria com a Huawei?

HR: Na realidade, eles decidiram vir sozinho [para o Brasil] sem um parceiro mais forte. Mas nós continuamos em negociação para alguns tipos de negócio. A parceria ainda está sendo desenvolvida. Eles queriam, no primeiro momento, um parceiro que fizesse tudo. Quando mudou a gestão, decidiram vir sozinhos.

UOL Tecnologia: Você falou e agora quero saber: do que o brasileiro gosta?

HR: Ele gosta de coisa bonita, mas o conceito de beleza varia. Se você pegar um produto asiático, tem muito prateado, muito dourado. O brasileiro é mais sóbrio, não gosta tanto de brilho, mas de algo mais fosco. Ele gosta de coisa bem feita e quer pagar o preço justo, não mais do que isso, por um produto que tenha beleza, qualidade e serventia. Aí começam as diversas particularidades de cada produto: qual tipo de aplicativo que ele gosta, se ele gosta de uma interface mais ou menos poluída.

O nosso Android é a cara do brasileiro, os outros vêm prontos. A gente está o tempo inteiro em sintonia com o consumidor

UOL Tecnologia: Hoje vocês vendem tantos feature phones quanto smartphones. Quando foi que perceberam que apostar em celular simples daria certo?

HR: A gente conhece as limitações financeiras da população brasileira. Quando todo mundo dizia que feature phone iria acabar, a gente dizia que uma população inteira iria conseguir comprar smartphone.

UOL Tecnologia: São os top de linha que chamam a atenção do público, seja quando surge o próximo iPhone ou um novo Galaxy. Mas vocês nem se arriscam a entrar na disputa, ficam nos smartphones de entrada e nos celulares tradicionais. Isso é humildade ou acham que não dá para competir com as gigantes?

HR: É uma definição nossa. Nossa marca é muito forte na classe média brasileira, e a gente sabe disso. Por que vamos onde não somos fortes?

UOL Tecnologia: Em 30 anos, vocês investiram quase R$ 500 milhões em pesquisa. Para onde foi esse dinheiro?

HR: Nossos produtos são amostra de que dá para criar no Brasil. Fazer um sistema operacional Android não é fácil. A Microsoft cobra [licença] pelo sistema operacional e já entrega tudo pronto. O Google não cobra, mas não entrega pronto. Você tem que adaptar tudo para o seu smartphone. Só aí vai muito dinheiro.

Quando a gente lança um computador pronto para a internet, não sai de graça. Você tem que fazer e acontecer

UOL Tecnologia: Vocês criaram o primeiro leitor eletrônico de livros brasileiro, o primeiro smartphone com oito núcleos do Brasil e o primeiro feature phone com 3G do Brasil. Por que então o consumidor não tem a impressão de que a Positivo está inovando?

HR: Depende do consumidor. Uma família da classe C que tenha os nossos produtos vai achar que a gente inova muito. E é para lá que a nossa comunicação é direcionada. Se você for a um órgão do governo ou a uma corporação, a mesma coisa. Não adianta eu tentar atingir o consumidor da Apple.

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