'Vamos resetar a discussão', diz presidente da comissão do PL da IA
Luísa Canziani (PSD-PR) estava em seu primeiro mandato de deputada federal quando relatou o primeiro projeto de inteligência artificial a ser aprovado pelo Congresso, em 2021. Ao ser enviado ao Senado, o texto foi alvo do que muitos viram como um atropelamento. O então presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), ignorou a proposta: reuniu uma comissão de juristas, criou um novo documento que, aprovado no ano passado, começará a ser analisado pela Câmara nesta semana, quando a Comissão Especial será instalada na terça (20). Por uma dessas ironias que só acontecem em Brasília, a presidente desse colegiado será Luísa Canziani. Em conversa com Radar Big Tech, ela avisa:
"Nós vamos resetar a discussão desse projeto. Entendo que a Câmara não vai deixar de ter protagonismo na discussão da inteligência artificial."
Luísa Canziani, deputada federal (PSD-PR)
A parlamentar adianta que não restringirá o processo de consulta à sociedade apenas a juristas, lista alguns temas que serão alterados na discussão (da classificação de risco das aplicações de IA à remuneração aos donos dos dados usados para treinar IA) e considera que sairá vitoriosa manter o debate distante do que ela classifica como "paixões político-ideológicas".
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"Nós, e eu digo como presidente da comissão, não deixaremos que o debate sobre a inteligência artificial seja, de alguma forma, contaminado pela discussão da regulação das plataformas. Trabalharei ao máximo para não permitir que esse debate entre na comissão ou no texto."
Veja os principais trechos da entrevista abaixo:
Radar Big Tech: A Sra. foi relatora do primeiro projeto de lei de IA aprovado no Congresso. Colocou o Brasil na dianteira do mundo, pois, naquele momento, a regulação não existia nem mesmo na Europa. Depois, o texto foi para o Senado, que fez uma proposta própria. Agora, é ela que chega à Câmara, tendo a Sra. como presidente da comissão especial criada para analisá-la. O que que representa esse movimento? É o mundo político dando voltas?
Luísa Canziani: Eu quero começar dizendo que o Parlamento é um ator importante, pois, a depender da atividade legislativa traduzida em políticas públicas, é que a gente entende o grau de inovação de um país. Se for mais ou menos aberto à inovação, esse país será capaz de gerar mais ou menos oportunidades em tecnologia. Essa tem que ser nossa premissa básica. A gente precisa de cautela para não deixar o Brasil fora do mapa mundial da inteligência artificial. Pelo contrário, a gente tem que fazer o país desenvolver cada vez mais.
Falando do texto propriamente dito, de fato, lá atrás a gente tinha uma ideia de regulação mais principiológica. Lá atrás, nós não tínhamos nem IA generativa, era um escopo regulatório diferente de hoje.
Reconheço, sim, que houve avanços importantes no Senado. O texto do Senado evoluiu e está mais parecido com o nosso projeto, no sentido principalmente de descentralizar a regulação setorial e trazer menos burocracia. Mas, na minha visão, o texto ainda pode ser melhorado e é nesse sentido que a gente vai trabalhar.
Radar Big Tech: Em que pontos, deputada, o texto pode ser melhorado?
Luísa Canziani: Essa é uma discussão que eu, como presidente, vou mediar. A gente vai debater com profundidade, cautela e equilíbrio. Mas nós vamos resetar a discussão desse projeto. Entendo que a Câmara não vai deixar de ter protagonismo na discussão da inteligência artificial. A comissão tem uma composição bem plural e técnica. Os deputados que estão ali têm familiaridade com os temas da inovação, transformação digital e a própria inteligência artificial.
Acredito que [pode ser repensado] como tornar a gestão de riscos mais razoável. Como a gente vai lidar com o artigo 15, que cria uma lista para o regulador infralegal? Acredito que o tema dos direitos autorais merece cada vez mais debate. E a gente precisa responder a pergunta: como pode ser afetada a capacidade brasileira de treinar suas máquinas? Outro ponto é: como vai ser esse órgão centralizador? São pontos que não estão ecoando só na Câmara dos Deputados, mas estão sendo levantados por parte da sociedade civil organizada brasileira, e a gente pretende discutir com mais profundidade.
Radar Big Tech: Que tipo de participante da sociedade foi pouco contemplado na discussão do Senado e, com a volta do debate para a Câmara, vai se sentar à mesa?
Luísa Canziani: Primeiro, é preciso reconhecer o trabalho da comissão de juristas, que elaborou o texto. Mas, como o próprio nome diz, ela é composta só por juristas. Nós queremos, é claro, envolver juristas, afinal, são importantes na construção de legislações, mas queremos também inserir uma visão de inovação para trazer pequenos e médios desenvolvedores, os setores da indústria, do comércio, envolver outros atores nessa cadeia. É isso que eu quero deixar muito claro: a gente quer entender quem está lá na ponta desenvolvendo inteligência artificial, quem pode, através do seu trabalho, trazer essa tecnologia para melhorar e mudar o Brasil.
A nossa ideia é fazer as audiências setorizadas. Por exemplo: a inteligência artificial e o agro, e trazer a FPA (Frente Parlamentar de Apoio à Agropecuária) para promover esse tema conosco. A gente quer fazer isso com a saúde, comércio e serviços, indústria... Queremos fazer audiências públicas para pontos específicos, como direito autoral, a gestão dos riscos.
Um receio muito grande é que, a depender da regulação, o custo de conformidade para esses pequenos e médios seja tão grande que nós impediremos o desenvolvimento da tecnologia no Brasil. A preocupação é não deixar ninguém para trás no desenvolvimento, uso e aplicação da inteligência artificial.
Eu digo "nós", porque esse entendimento não é só meu, mas também do relator, o [deputado] Aguinaldo Ribeiro [PP-PB], e também dos outros membros da comissão, com, é claro, anuência do presidente da Câmara [deputado Hugo Motta] para a gente efetivamente entregar uma legislação que seja referência para o mundo. Vai ser um debate plural, amplo e em que, de novo, a Câmara dos Deputados terá protagonismo. E iremos despender todo o tempo necessário para entregar a melhor legislação ao Brasil.
Radar Big Tech: Deputada, o texto do Senado propõe uma regulação que, inspirada na lei europeia, traz regras a serem cumpridas antes da inovação ser lançada. Outras regulações tratam de uma aprovação: a aplicação é feita, experimentada e só depois o regulador pede ajustes, caso constate riscos. Qual é a sua opinião sobre a modalidade de regulação adotada no projeto analisado agora?
Luísa Canziani: O nosso projeto lá atrás foi baseado em legislações como a de Reino Unido, Japão e Singapura, que tinham a visão de, sobretudo, desenvolver, mas também mitigar os riscos e malefícios. Essa era a ideia. E a gente precisa reconhecer que há, sim, uma referência muito grande no texto que foi aprovado [no Senado], embora tenha avançado em muitos temas, seguindo a tendência da regulação setorial. Mas, inicialmente, houve uma inspiração muito grande no AI Act, o texto que a União Europeia tem trazido para o mundo.
Fica essa grande reflexão também, porque a própria Europa tem postergado a entrada em vigor do AI Act e está repensando a lei, porque esse é um desafio de regulação de tecnologia. O tempo passa, e novas tecnologias surgem. O que funciona hoje amanhã não funciona mais. Temos que entender de que forma a nossa legislação não fica ultrapassada. E, de que forma a gente impulsiona a inovação no Brasil, mas protege os nossos direitos, a nossa integridade física e moral.
Radar Big Tech: Goiás acaba de sancionar uma lei de inteligência artificial que traz o princípio de fomento à tecnologia e também prepara a população para os dias que virão por meio da educação, do letramento digital, seja discutindo a tecnologia nassa escolas, sejam preparando a mão de obra afetada pela IA para um novo ambiente de trabalho.
Luísa Canziani: Você toca num ponto importante de verdade. De nada adianta a gente falar de regulação de inteligência artificial, se a gente não trouxer a discussão do letramento digital e da substituição dos empregos. É central e básico.
A gente tem que preparar as futuras gerações para competências e habilidades e habilidades socioemocionais que as máquinas e que os robôs não vão dar conta. Assim, a gente vai conseguir resgatar o que há de mais precioso no ser humano, como criatividade e sensibilidade. Qual que vai ser o médico do futuro? É um médico que tem troca, que consegue se conectar de fato com o seu paciente, coisa que a tecnologia não vai fazer, mas vai dar todos os instrumentos para isso.
Radar Big Tech: O que a Sra. consideraria uma vitória ao final desse processo?
Luísa Canziani: Eu tenho certeza que, através desse trabalho seguro, maduro, equilibrado, sensato e distante de paixões político-ideológicas, ficaremos distante de temas como, por exemplo, a regulação das plataformas digitais.
Radar Big Tech: Quer dizer que o projeto de inteligência artificial não é o lugar para regular as plataformas também?
Luísa Canziani: Não, sem dúvida alguma. Nós, e eu digo como presidente da comissão, não deixaremos que o debate sobre a inteligência artificial seja, de alguma forma, contaminado pelo debate da regulação das plataformas. Trabalharei ao máximo para não permitir que esse debate entre na discussão da comissão ou no texto.
Saúde e educação de risco... Mal começou e já há treta encomendada. Segundo integrantes da Comissão Especial de IA com quem a coluna conversou, uma das primeiras frentes de batalha será em torno de aplicações de IA voltadas à saúde e educação terem sido classificadas como de alto risco, o que pode levar à requalificação. Os sistemas enquadrados como alto risco serão obrigados a cumprir regras mais rígidas, como documentar testes de segurança, mitigar vieses discriminatórios e ser transparente sobre ações de responsabilidade social e sustentável. Exemplos são ferramentas de IA voltadas ao diagnóstico médico e sistemas usados em processos seletivos.
Redes sociais... Em algum momento da tramitação do texto no Senado, as redes sociais foram qualificadas como sistemas de alto risco, devido aos seus algoritmos. Após forte movimentação das Big Tech, esse ponto caiu. As obrigações decorrentes da classificação inviabilizariam os serviços no Brasil, chegaram a dizer alguns deputados. Na visão de alguns integrantes da comissão, o governo Lula tentará retomar a discussão.
ANPD: nada assegurado... Pelo texto aprovado no Senado, a ANPD (Agência Nacional de Proteção de Dados) é alçada à coordenação do SIA (o Sistema Nacional de Regulação e Governança de Inteligência Artificial), o que lhe dá poderes de, por exemplo, incluir serviços na lista de aplicações de alto risco. Na Câmara, este posto não está assegurado, comenta um integrante influente da comissão que analisará o PL da IA. Durante a tramitação no Senado, a Anatel se ofereceu para ocupar o posto.
Sem vida fácil... A comissão que discutirá o PL de IA, tratado pelo governo Lula como uma das prioridades de 2025, é coalhada não só de figuras da oposição, mas de deputados que têm intensificado crises políticas para a administração federal. É o caso de Nikolas Ferreira (PL-MG), que produziu vídeos virais para fustigar o governo com as mudanças no Pix e as fraudes no INSS. Ele não está só, já que estão por lá Bia Kicis (PL-SP), Gustavo Gayer (PL-GO), Zé Trovão (PL-SC) e Kim Kataguiri (União-SP). Diante desse cenário, discutir propostas que avancem o sinal rumo à regulação de plataformas será complicado, avalia um integrante da comissão.
"A composição da comissão é uma derrota gigante do governo. Eles não se organizaram para colocar parlamentares mais alinhados com a regulação das plataformas."
Integrante da comissão especial da IA na Câmara dos Deputados
DEU TILT
Toda semana, Diogo Cortiz e Helton Simões Gomes conversam sobre as tecnologias que movimentam os humanos por trás das máquinas. O programa é publicado às terças-feiras no YouTube do UOL e nas plataformas de áudio. Assista ao episódio da semana completo.
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