'IAs do job': brasileiros faturam com conteúdo adulto de mulheres virtuais

Em um mundo com padrões de beleza inalcançáveis e interações sociais cada vez mais limitadas, um fenômeno ganhou força na internet nos últimos meses: as "IAs do job".

São fotos e vídeos de mulheres criadas a partir de inteligência artificial, vendidas em plataformas de conteúdo adulto. A palavra inglesa "job" ("trabalho") tem sido usada por jovens, especialmente nas redes sociais, como gíria para se referir à prostituição.

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As "IAs do job" ganharam força nos Estados Unidos e na Europa no início de 2024, mas só recentemente chegaram ao Brasil, se consolidando como um nicho de mercado.

O gaúcho Lusca Fontoura, 31, de Porto Alegre, conta que entrou no ramo das "IAs do job" em janeiro, depois de ver, nas redes sociais, um usuário de fora do Brasil criar e vender fotos e vídeos de mulheres virtuais para conteúdo adulto.

Eu sempre trabalhei com tecnologia e, no início do ano, tinha proposto a mim mesmo o desafio de faturar R$ 500 mil em 2025 com a internet. Pensei: 'Pô, ninguém no Brasil está fazendo isso. Um gringo está investindo na ideia e ganhando grana. Vou tentar. Lusca Fontoura

Lusca criou um homem e uma mulher virtuais para fazer um teste e ver como seria a performance de cada um nas redes sociais. Então, criou um perfil no Instagram e no TikTok para eles e começou a alimentar esses perfis com fotos, vídeos e conteúdos diários. Em ambos os casos, homens foram os principais interessados em interagir com esses personagens.

Em muitos casos, os usuários não sabiam o que era "IA". Lusca, então, começou a ser mais claro e passou a falar "inteligência artificial". Depois disso, algumas pessoas deixavam de interagir com o personagem, enquanto outras optavam por dar continuidade à conversa.

Lusca se comunicava com os usuários por mensagens privadas do Instagram e do TikTok. Durante a interação, eles pediam fotos e vídeos personalizados, que o brasileiro produzia em poucos minutos —ele vendia pacotes com, no mínimo, três fotos, por R$ 9,90. Os interessados também tinham a opção de entrar em um grupo do Telegram, ao qual Tilt teve acesso, por R$ 9,90, e obter pacotes de fotos e vídeos exclusivos.

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Hoje, o grupo, que reúne 98 membros, tem como finalidade disponibilizar o material produzido por Lusca para ensinar as pessoas a criarem suas próprias mulheres virtuais a partir de sites geradores de pornografia de inteligência artificial —há centenas deles, alguns pagos e outros gratuitos. O brasileiro não vende mais fotos e vídeos dos personagens que criou e parou de alimentar os perfis deles nas redes sociais.

Eu decidi não fazer mais [não alimentar mais os perfis] porque não foi uma experiência legal. A galera é meio nojenta. Tem de ter estômago, sabe?
Lusca Fontoura

O perfil das pessoas que buscam por essa experiência é de homens mais velhos, entre 40 e 60 anos, que se sentem solitários, alguns dos quais querem realizar fetiches.

"Quando produzi minha primeira mulher virtual totalmente nua, fui perguntar para minhas amigas se a vagina estava bem construída. Elas disseram que estava toda errada, que não era assim. Só que, quando mandei as fotos para os caras, eles ficaram loucos. Então, não me parece que estavam buscando algo real", acrescenta.

A partir de sua experiência como criador de conteúdo, Lusca observou que alguns perfis de mulheres virtuais geravam mais interesse do que outros. Eram mulheres brancas, loiras ou ruivas, e magras, mas com quadril e seios grandes. É raro ver mulheres virtuais negras ou não brancas.

'IAs do job' ganharam força nos EUA e na Europa no início de 2024 e chegaram ao Brasil
'IAs do job' ganharam força nos EUA e na Europa no início de 2024 e chegaram ao Brasil Imagem: Reprodução
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'Sem vínculos reais'

Para o professor de filosofia José Luiz Bueno, o fenômeno das "IAs do job" evidencia uma situação antiga na sociedade, a objetificação do corpo feminino, mas a problemática vai além.

Para ele, o consumo de pornografia gerada por inteligência artificial reforça estereótipos de beleza eurocêntricos e padrões estéticos inalcançáveis, além de prejudicar a capacidade das pessoas de desenvolver relações sociais.

"O mundo virtual, ainda que benéfico em muitos aspectos, tem afetado a capacidade das pessoas de interagir socialmente e criar vínculos sólidos na vida real", diz Bueno, que é coordenador do Núcleo de Filosofia Política do Laboratório de Política, Comportamento e Mídia (Labô), da Fundasp/PUC-SP.

É absolutamente normal se sentir inseguro diante de alguém por quem se tem atração ou dentro de um relacionamento. O medo permeia as relações humanas. Só que, na vida real, você lida com ele. No mundo virtual, é possível mascará-lo, escondendo-se atrás de uma tela.
José Luiz Bueno

O fenômeno das "IAs do job" está ganhando tanta força que já foi parar em sites de pornografia, por meio dos quais usuários podem criar modelos personalizadas e interagir com elas em uma caixa de bate-papo.

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O Pornhub, site de pornografia mais visitado do mundo, permite que os usuários tenham essa experiência gratuitamente, embora alguns recursos sejam pagos.

O que diz a lei sobre pornografia com IA?

A inteligência artificial está em vias de se tornar regulamentada no Brasil. O projeto de lei 2338/23, que rege a tecnologia no país, foi aprovado no Senado em dezembro de 2024 e seguiu para análise na Câmara, que deve votar nos próximos dias.

Para o advogado Daniel Becker, especializado em proteção de dados e inteligência artificial e diretor de novas tecnologias do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA), produzir pornografia a partir de inteligência artificial não é crime, mas há limites.

A lei proíbe o deepfake, técnica que permite alterar fotos e vídeos com ajuda de inteligência artificial, como instrumento de violência psicológica contra a mulher.

Em março, o plenário do Senado aprovou o projeto de lei (PL 370/2024) que aumenta a pena de violência psicológica —reclusão de seis meses a dois anos e multa— se o crime tiver sido cometido com o uso de inteligência artificial ou qualquer outro recurso tecnológico que altere imagem ou som da vítima. A relatora, senadora Daniella Ribeiro (PSD-PB), teve fotos falsas de nudez divulgadas nas eleições de 2018.

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Becker ressalta ainda que os criadores de conteúdo, bem como as plataformas de conteúdo adulto, precisam deixar claro quando uma imagem foi gerada por inteligência artificial —caso contrário, isso configura violação do Código de Defesa do Consumidor. As penalidades, nesse caso, podem incluir indenização por danos morais e multa aplicada pelo Procon e pelo Ministério Público.

Tilt encontrou, no Instagram e no TikTok, perfis de criadores de "IAs do job" que fazem promessas falsas de dinheiro fácil e rápido, o que pode configurar outro crime, explica o advogado André Bialski, sócio na área penal do Bialski Advogados.

Um desses perfis diz ensinar seus alunos a faturarem de R$ 100 a R$ 500 por dia a partir de seu "método secreto", ensinado em um curso vendido a R$ 47,90.

Influenciador diz faturar com IA do job
Influenciador diz faturar com IA do job Imagem: Reprodução

Em seus posts, ostenta vida fácil e luxuosa: "Minha IA do job fazendo vendas no automático enquanto vou de Uber pro shopping gastar", escreve em um post. A reportagem procurou o influenciador, mas não obteve retorno até a publicação deste texto.

"A venda de cursos para a criação de conteúdo pornográfico com o uso de ferramentas de inteligência artificial com a promessa de faturamento imediato e irreal pode ser qualificada como estelionato, conforme prevê o artigo 171 do Código Penal", afirma Bialski. "O principal elemento configurador do estelionato é a fraude, usada pelo agente criminoso para obter vantagem ilícita."

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'Leva um tempo para conquistar admiradores'

A paulistana Elaine Pasdiora, 35, que mora em Porto Velho, uma das influenciadoras mais conhecidas no ramo das "IAs do job", conta ter um faturamento alto desde que começou a trabalhar nesse nicho de mercado.

Assim como Lusca, em um primeiro momento, ela criou uma mulher virtual e, depois, passou a se dedicar a ensinar outras pessoas a seguirem seus passos.

Com a mulher virtual, em si, Elaine revela não ter ganhado muito dinheiro, mas, com o curso, vendido a R$ 237,89, chegou a faturar cerca de R$ 17 mil em 60 dias.

Às vezes, ela promove os chamados "aulões", que custam R$ 100 e ocorrem via chamada de vídeo e, em uma semana, consegue lucrar entre R$ 2.000 e R$ 2.500, segundo afirma. Apesar disso, alerta que o nicho de mercado não traz dinheiro rápido.

"Muita gente pensa que vai ganhar dinheiro do dia para a noite, e não é bem assim. Não é só criar a mulher virtual — é preciso criar um perfil nas redes sociais, alimentá-lo com conteúdos diários, interagir com seguidores. Leva um tempo para conquistar admiradores", diz Elaine, ressaltando que mulheres virtuais famosas, como Anastasiya Kvitko, têm milhões de seguidores, mas centenas de publicações feitas ao longo de anos. "É preciso ter muita persistência."

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DEU TILT

Toda semana, Diogo Cortiz e Helton Simões Gomes conversam sobre as tecnologias que movimentam os humanos por trás das máquinas. O programa é publicado às terças-feiras no YouTube do UOL e nas plataformas de áudio. Assista ao episódio da semana completo.

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