Nem pagando: 'seca de matches' faz solteiros questionarem apps de namoro

O criador de conteúdo Pedro*, 35, tinha acabado de terminar um casamento quando começou a usar aplicativos de namoro, mas a experiência não foi tão prazerosa.

Era muito difícil dar match e associava essa dificuldade à minha aparência física. Tinha muito problema com autoestima e acreditava que o baixo nível de correspondência se devia a isso. Me questionava se eu me vestisse melhor, tivesse um corpo mais musculoso minhas chances aumentariam.
Pedro, 35

Parte das pessoas que usam apps de namoro relata cansaço com a "loteria do match". A dificuldade de conseguir encontros é associada por eles às suas características físicas, causando impactos na saúde mental.

Segundo eles, o problema não se resolve nem pagando por versões premium. A saída para alguns tem sido abrir mão dos apps e apostar no flerte à moda antiga. Tilt procurou os apps sobre as críticas dos usuários e aguarda posicionamento.

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'Autoestima muito afetada'

Pedro pagou por versão premium de aplicativo apenas uma vez —e não conseguiu se sentir realizado. "Minha autoestima foi muito afetada: o valor que eu atribuía a mim mesmo era muito mais baixo."

João*, 30, também diz que o uso de aplicativos influenciou na autoestima. "Deleto o app porque a autoestima está baixa. Quando estou indo para a academia e estou melhor, eu volto. Passam três meses e a coisa se repete", diz ele, que é pesquisador.

Ele já usou versões pagas para aumentar os matches, uma promessa das opções premium.

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Quando começou com essas versões pagas, deu uma queda na qualidade, influenciando na quantidade de matches. Tenho a impressão que eles mostram pessoas que já sabem que não vão dar certo para a gente permanecer lá tentando --por exemplo, apareciam pessoas que odeiam fumantes e eu sou fumante.
João, 30

Ele optou por pagar por um tempo para testar se conseguiria ir a mais encontros com pessoas de perfis compatíveis. "Somos bombardeados a todo momento [para comprar a versão premium]. Como eu tinha poucos matches e ofereciam a chance de aumentá-los, decidi pagar."

No entanto, para ele, o aplicativo não trouxe tantos resultados. "Estou gastando dinheiro e não funciona como queria. A gente tem necessidade de ver se dá match, se dá uma descarga de dopamina", diz. "Você fica ali sempre no aplicativo, quase como um refém."

'Comecei a buscar relações de outras formas'

A jornalista Carla*, 31, também decidiu pagar para ver se seu perfil nos apps era impulsionado. Ela era usuária de aplicativos de relacionamento desde 2014, em versões gratuitas. Em um dos apps, não viu resultado.

Não compensou. Não conheci ninguém e nem aumentou o número de matches. Parei de pagar porque poderia ter economizado e conhecido alguém à moda antiga.
Carla, 31

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Carla diz que já se pegou pensando que a falta de matches poderia ser uma questão dela.

"Principalmente na versão premium, onde a gente tem muitos filtros e ainda assim não consegue tantos matches com pessoas que nos parecem interessantes, a gente acaba se questionando se é uma questão nossa. Será que outros perfis são mais interessantes que os meus?"

Para Pedro, o uso da ferramenta é como um "jogo na loteria". "Usar um aplicativo desse e ficar triste por não conseguir correspondência é a mesma coisa que jogar na loteria porque não ganhou. Você vai ficar triste com muita frequência."

Excluí minhas contas, comecei a buscar relações de outras formas e minha autoestima melhorou muito. Hoje, consigo ter os aplicativos sem que isso influencie.
Pedro

Os apps de relacionamento têm diferentes pacotes. O Tinder, por exemplo, tem opções que variam de R$ 18 por semana a R$ 3,80, dependendo do caso. Já no Bumble, o valor pode chegar a R$ 400, caso o usuário queira acesso à versão premium de forma vitalícia. Entre os benefícios oferecidos pelos pacotes está uma maior visibilidade do perfil para outros usuários.

Decifrando o match

Relacionamentos passam por "plataformização". Pesquisadores observam que, assim como em outros aspectos da vida, como transporte ou alimentação, os relacionamentos também ganharam espaço em serviços "sob demanda". Os aplicativos podem conectar pessoas, mas também estão inseridos em uma lógica de mercado.

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O objetivo dos aplicativos é prender a atenção. As empresas querem que os usuários permaneçam o maior tempo possível nos aplicativos. Assim, é comum que eles sejam desenhados para persuadir o usuário a comprar "atalhos" que prometem encontrar o match perfeito, dizem especialistas.

É um mercado baseado em um modelo de negócio com inputs específicos, como a prisão da atenção do usuário e a possibilidade de lucrar com o interesse subjetivo dos usuários naquele aplicativo. A pessoa fica com a sensação de que, pagando versões premium, aumentará as ofertas de relacionamentos.
Ramon Costa, advogado, doutor em direito pela PUC-Rio e professor do Insper, com estudos na área de direito civil e digital

No Brasil são 16 milhões de usuários e o mercado gerou US$ 53,9 milhões (R$ 310 milhões) em 2023, segundo dados do Statista. No entanto, o mercado brasileiro tem pouca adesão às versões pagas dos apps. Apenas 2,9 milhões dos usuários estão dispostos a colocar a mão no bolso para encontrar o par perfeito.

Sensação de que "algo melhor está por vir" persuade usuários a se manterem nos apps. Com a promessa de uma grande oferta de possíveis encontros, os usuários tendem a continuar deslizando para a direita e esquerda, em busca de um par. Segundo Carmita Abdo, psiquiatra, professora da faculdade de Medicina da USP e coordenadora do programa de estudos em sexualidade, a ideia de ter um serviço de relacionamentos à mão pode levar uma pessoa a ficar horas em frente à tela.

O aplicativo dá a impressão de que tem muitas pessoas disponíveis --e que podemos encontrar sempre alguém 'melhor'. Mas tem um outro lado: o quanto talvez a gente esteja se engajando sem o mínimo real interesse. É tão grande a oferta que posso me dar ao luxo de entrar e sair quando eu bem entender, sem perceber que é meu tempo e energia.
Carmita Abdo, professora da faculdade de Medicina da USP

Usuários podem 'pagar' com dados nas versões gratuitas
Usuários podem 'pagar' com dados nas versões gratuitas Imagem: Getty Images
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Tilt entrou em contato com Grindr, Tinder e Bumble para um posicionamento. O espaço será atualizado assim que houver manifestação.

Ficar ou deletar?

Aplicativos podem ser uma boa ferramenta para encontrar o 'par ideal', mas uso deve ser feito com consciência
Aplicativos podem ser uma boa ferramenta para encontrar o 'par ideal', mas uso deve ser feito com consciência Imagem: iStock

Algoritmos não dão conta de interesses, gostos e até a química entre usuários. Eles são construídos com base em sistemas automatizados de inteligência artificial, mas, no caso de relacionamentos, essa funcionalidade pode ser limitada por não conseguir abraçar a complexidade das relações.

Os aplicativos são construídos a partir de enviesamentos humanos que estão na sociedade. E isso pode causar discriminação. Por exemplo, qual perfil em um aplicativo pode ser entendido como atraente? Isso pode fazer com que algumas pessoas apareçam mais ou menos disponíveis.
Ramon Costa, pesquisador do Insper

Mas é possível utilizá-los de forma consciente e se conectar de verdade com as pessoas. Para Carmita, saber o que está por trás do próprio interesse em usar o aplicativo ajuda a torná-lo um aliado na paquera. Além disso, é essencial alinhar as expectativas com os pretendentes desde o começo. Já Costa aconselha um olhar crítico para as informações colocadas nos aplicativos.

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O usuário tem de fazer uma crítica se essa exposição é saudável para as relações, ou se está inserida em um modelo com potencialidade de gerar mais dano.
Ramon Costa

*Nomes foram alterados para preservar a identidade dos entrevistados

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