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Cortes de verbas, atritos e 5G: o legado do governo Bolsonaro na ciência

Marcos Pontes foi ministro da Ciência e da Tecnologia no governo de Jair Bolsonaro - Reprodução
Marcos Pontes foi ministro da Ciência e da Tecnologia no governo de Jair Bolsonaro Imagem: Reprodução

Abinoan Santiago

Colaboração para Tilt, em Florianópolis

04/11/2022 04h00Atualizada em 04/11/2022 17h23

Dias após o 1º turno, um grupo de 141 cientistas brasileiros manifestaram apoio a Luiz Inácio Lula da Silva (PT), presidente eleito que venceu Jair Bolsonaro (PL). Segundo os pesquisadores, o ato foi consequência da maneira como o governo bolsonarista conduziu a área da CTI (Ciência, Tecnologia e Inovação), marcada pelo sucateamento das universidades federais e por sucessivos cortes de verbas para pesquisas e bolsas para pós-graduação.

Nem o leilão 5G, celebrado por Bolsonaro durante a campanha, demoveu os cientistas. Na carta, eles consideraram o atual governo como responsável por "fomentar a ignorância contra a razão". Em outras palavras, o senso comum contra a ciência.

Tilt reuniu as principais ações do governo Bolsonaro na CTI.

Cortes de verbas

Desde que assumiu o governo, Bolsonaro cortou 45% das verbas de custeio das universidades federais e 50% para investimento nas referidas instituições, segundo levantamento do movimento "Sou Ciência" (Centro de Estudos, Sociedade e Ciência da Universidade Federal de São Paulo), em parceria com o Instituto Serrapilheira.

Com base em dados do SIOP (Sistema Integrado de Planejamento de Orçamento), as verbas de custeio, que são as chamadas "outras despesas", abrangendo custeio e assistência estudantil das universidades, despencaram de R$ 8,1 bilhões para R$ 4,4 bilhões, entre 2019 e 2022.

Esse dinheiro serve para manter a universidade e suas pesquisas funcionando no dia-dia, como pagamento de água, luz, energia e bolsas de estudo de estudantes.

Em relação ao recurso destinado para investimentos, a queda de 50%, entre 2019 e 2022, chegou a R$ 97,5 milhões. É com esse dinheiro que as instituições podem aperfeiçoar laboratórios de pesquisas, comprar equipamentos, livros e computadores, por exemplo.

As bolsas destinadas para pesquisadores da pós-graduação também sofreram com cortes de verbas. Dados compilados pela SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) mostra que, em 2020 e 2021, a soma dos orçamentos do CNPq (Conselho Nacional do Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento do Ensino Superior), alcançaram a cifra de R$ 3,5 bilhões. Isso representa o menor valor desde 2009.

A entidade ainda calcula que as duas agências, que são as duas principais de fomento de pesquisadores no país, perderam 45% de seus orçamentos no governo Bolsonaro (2019-22), em comparação com 2015-18, quando Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB) governaram.

Além dos cortes previstos para orçamentos, o governo Bolsonaro ainda contingenciou o que restou ao longo do exercício financeiro. Em 2021, por exemplo, houve o bloqueio de R$ 600 milhões do Ministério da Ciência e Tecnologia, o que gerou atrito com o então ministro Marcos Pontes, que classificou a medida como "falta de consideração". Apesar da crítica, o astronauta manteve fidelidade ao mandatário até o fim de sua gestão.

Para 2023, os cortes também estão previstos. Com a eleição de Lula, o governo petista trabalhará com o orçamento aprovado durante a gestão de Bolsonaro. Nele, o corte previsto é de 21%.

Descrença na ciência

Com a decretação da pandemia do novo coronavírus pela OMS (Organização Mundial da Saúde), a ciência recebeu investimentos em todo mundo em busca de soluções para enfrentar a pior crise sanitária do século 21.

No Brasil, contudo, os cortes foram mantidos. Levantamento do Senado mostra que o Brasil investiu apenas US$ 100 milhões em pesquisas de enfrentamento à covid-19. Para comparação, nos Estados Unidos, o valor chegou US$ 6,1 bilhões.

 Jair Bolsonaro segura uma caixa de Cloroquina, remédio sem eficácia para covid-19 - MATEUS BONOMI/ ESTADÃO CONTEÚDO - MATEUS BONOMI/ ESTADÃO CONTEÚDO
Jair Bolsonaro segura uma caixa de Cloroquina, remédio sem eficácia para covid-19
Imagem: MATEUS BONOMI/ ESTADÃO CONTEÚDO

Em sua estratégia , o governo abriu mão de iniciativas de produção de vacina e investiu em remédios sem comprovações científicas, como a cloroquina.

Além disso, Bolsonaro repetiu, mais de uma vez, ao longo do mandato, acusações contra estudantes e pesquisadores. Ao comentar protestos contra cortes na ciência, o presidente disse, em maio de 2019, que os manifestantes eram "idiotas úteis" e "massa de manobra", dizendo que "a maioria (na manifestação) era militante".

Em outra ocasião, Bolsonaro ainda disse que a "esquerda brasileira tomou as universidades". Para a SBPC, o discurso do presidente contra a ciência buscou descredibilizar os pesquisadores.

"Além dos cortes orçamentários, há uma campanha em andamento para tentar minar o moral do ensino superior público, da cultura e da saúde pública", comentou Renato Janine Ribeiro, presidente da SBPC, em entrevista à revista Nature, uma das mais importantes publicações científicas do mundo.

Ribeiro afirma que o governo Bolsonaro fomentou a descrença da ciência por ter "propagado mentiras de que universidades públicas são lugares de sexo, desordem e confusão".

Em audiência pública no Senado, em 2020, a pesquisadora Márcia Barbosa, da ABC (Academia Brasileira de Ciências), afirmou que a desvalorização da ciência criou um terreno para a disseminação de fake news na pandemia.

"Até a pandemia, ninguém falava em ciência. De repente, todo mundo começou a falar. Com isso, ficou claro o quanto as pessoas não sabem o que é o processo científico. Chega a ser assustador. As fake news encontraram terreno fértil. Isso tem a ver com as deficiências das nossas escolas. A educação científica é muito pobre. Se as pessoas não sabem o que é a ciência, não a valorizam. Se elas não a valorizam, elas não cobram do seu senador e do seu deputado que a protejam. Assim fica fácil fazer os cortes de verbas", afirmou, na ocasião.

Relação conturbada com reitores

A partir de 2023, Lula terá de trabalhar para reconquistar a relação de confiança entre as universidades e o governo federal, que enfrentou momentos de atritos nos últimos quatro anos.

Além dos reiterados cortes às instituições, Bolsonaro estremeceu a autonomia universitária ao quebrar a tradição de nomear sempre o 1º colocado da lista tríplice escolhida por eleições nas universidades federais.

30.mai.2019 - No Recife (PE), estudantes protestam contra cortes na ciência e educação - VeetMano Prem/Foto Arena/Estadão Conteúdo - VeetMano Prem/Foto Arena/Estadão Conteúdo
30.mai.2019 - No Recife (PE), estudantes protestam contra cortes na ciência e educação
Imagem: VeetMano Prem/Foto Arena/Estadão Conteúdo

O presidente não é obrigado a escolher o vencedor da lista tríplice, mas desde 1990, todos os mandatários respeitaram a vontade da comunidade universitária.

Um levantamento da Folha de S. Paulo mostrou que, até 2021, Bolsonaro deixou de nomear o primeiro colocado em 40% dos casos. Isso aumentou a tensão política entre os reitores e o governo.

O caso das nomeações foi parar no STF (Supremo Tribunal Federal), que decidiu pela legalidade de o presidente nomear qualquer um dos três citados na lista tríplice.

Outro ponto que estremeceu a relação de autonomia das universidades foi um decreto publicado em 14 de maio de 2019. Na ocasião, Bolsonaro proibiu que reitores nomeassem cargos de confiança sem aval da Presidência.

Ele também usou a Abin (Agência Brasileira de Inteligência) para investigar candidatos a cargos de reitores das universidades e institutos federais. O caso gerou desconfiança de pesquisadores.

Acordo espacial polêmico com os EUA

Uma das primeiras medidas de Bolsonaro na área tecnológica em seu mandato foi a assinatura do acordo espacial com os Estados Unidos, quando ainda era governado pelo então presidente Donald Trump.

O acordo foi chancelado pelo Congresso, mas é rodeado de polêmicas. Ele prevê o lançamento de foguetes, espaçonaves e satélites norte-americanos na Base Espacial de Alcântara, no Maranhão, a partir de remuneração pelo uso do espaço.

Base espacial da cidade de Alcântara, no Maranhão - Valter Campanato/Agência Brasil - Valter Campanato/Agência Brasil
Base espacial da cidade de Alcântara, no Maranhão
Imagem: Valter Campanato/Agência Brasil

O problema é que a oposição apontou que o documento assinado por Bolsonaro prevê cláusulas incomuns de demais acordos espaciais entre os EUA e outros países, como o veto dos norte-americanos a lançamentos do Brasil em sua própria base e a proibição do uso da tecnologia estadunidense pelos cientistas brasileiros.

Os EUA também poderão vetar o lançamentos de aeronaves espaciais em Alcântara por países não signatários do MTCR (Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis), como é o caso da China. Também estarão proibidos de usar a base nações que os EUA suspeitam de ligações com o terrorismo.

"Nesse tratado, há obrigações apenas do Brasil e apenas boa vontade dos Estados Unidos", comentou o deputado federal Arlindo Chinaglia (PT-SP), durante a votação no Congresso.

5G: o chamariz no governo

Apontado durante a campanha como uma das principais realizações do governo, o leilão do 5G acabou sendo destravado na gestão de Jair Bolsonaro.

O certame para exploração do serviço pelas operadores aconteceu em 5 de novembro de 2021, quando ficou definido quais empresas poderiam levar a internet móvel de última geração aos brasileiros a partir de 2022.

Martelo no leilão do 5G, batido por Bolsonaro - Reprodução - Reprodução
Martelo no leilão do 5G, batido por Bolsonaro
Imagem: Reprodução

O leilão arrecadou R$ 46,790 bilhões. Isso, segundo analistas, incluindo a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento), o classificou como o maior do mundo para a exploração do 5G.

Na área da tecnologia, aliás, o 5G foi a única realização do governo citada por Bolsonaro em seu programa entregue ao TSE. Nele, o presidente prometeu levar a tecnologia a todos os municípios durante um eventual segundo mandato, mas não explicou como faria isso. O edital vigente obriga implementar a conexão até 2030 somente nas cidades com pelo menos 30 mil habitantes, o que deixa de fora 4.388 cidades com população abaixo desse critério.

Legado é de 'desmonte'

Para o presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), Renato Janine Ribeiro, o cenário a ser deixado por Bolsonaro no dia 31 de dezembro para a área "é muito negativo", pois as conquistas históricas foram "desmontadas".

"O legado é muito negativo porque quando a gente pensa que a ciência tem como principal fator a produtividade e nas humanas as políticas públicas. Quando imaginamos isso, vemos que tudo foi desmontado", analisou a Tilt.

Hugo Aguilaniu, presidente do Instituto Serrapilheira, afirma que o legado deixado por Bolsonaro fez jovens cientistas procurarem outros países ou não retornarem para o Brasil.

"É um legado aterrorizante. Isso é fácil de dizer. Temos na Serrapilheira o apoio a jovens pesquisadores e mesmo assim, com Bolsonaro no poder, os recados e o desprezo demonstrados para a ciência fez com que cientistas deixassem o Brasil. Estamos falando de jovens que acabaram de voltar e não tinham perspectivas", comentou.