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Exclusivo: como Museu do Ipiranga digitalizou 100% do seu prédio centenário

Gêmeo digital foi recriado com drones e scanners a laser para o bicentenário da Independência - Reprodução/Autodresk Brasil
Gêmeo digital foi recriado com drones e scanners a laser para o bicentenário da Independência Imagem: Reprodução/Autodresk Brasil

Marcella Duarte

De Tilt

06/09/2022 08h52

Após nove longos anos fechado, o Museu do Ipiranga reabre amanhã (7 de setembro), todo restaurado, maior e mais moderno. O período de obras também permitiu a realização de um sonho tecnológico: o desenvolvimento de seu "gêmeo digital".

O museu foi interditado às pressas em 2013, devido a graves problemas de conservação e segurança, com riscos de desabamento. O acervo foi abrigado temporariamente em outros edifícios públicos durante as reformas — que efetivamente só começaram seis anos depois, a um custo de aproximadamente R$ 235 milhões.

Apesar do capítulo triste, havia ali uma ocasião única que talvez nunca se repetiria: o prédio, que é tombado pelo patrimônio histórico, estava vazio. O momento perfeito para uma digitalização tridimensional completa - e Tilt teve acesso exclusivo ao projeto.

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Imagem: Marcella Duarte

Gêmeo digital

"É um projeto educacional, de preservação da memória e do patrimônio histórico", acredita a professora e curadora do museu, Solange Ferraz de Lima. "Nosso futuro é digital."

Um gêmeo digital é mais que uma simulação; trata-se de uma réplica precisa e atualizável de algo físico, que pode ser usada para trazer melhorias à vida real. Já há fábricas do futuro e armazéns inteligentes usando essa tecnologia para gestão do negócio, e até o projeto de um planeta Terra inteiro para monitoramento das mudanças climáticas ao longo dos anos.

No caso do Museu do Ipiranga, a grande motivação foi a necessidade de preservar o local, que guarda parte da história do Brasil e de São Paulo. Mas ele também abre outras possibilidades: visitas à distância e exposições virtuais, atividades de educação imersiva, desenvolvimento de jogos, impressão 3D de objetos e até controle da segurança.

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Imagem: Helio Nobre/Autodesk

O 'escanemento' foi realizado com o edifício esvaziado, antes no início das reformas, e agora deve ser repetido com a obra pronta, para registrar as diversas mudanças — como aberturas de portas para ampliar a área de exposição e a construção de um mirante no topo.

"Já temos um retrato de um pouco antes, a memória do 'dia D' em que tudo começou a mudar, e em breve teremos o 'depois'", diz Lima.

O museu é vinculado à USP desde 1963 — seu nome oficial é Museu Paulista da Universidade de São Paulo.

Scanners a laser e drones

A digitalização inclui o edifício-monumento e o grande Parque da Independência ao seu redor — uma área de mais de 160 mil m², no bairro do Ipiranga, em São Paulo. As imagens externas foram captadas por modernos drones (fotogrametria) e as internas por um sistema de scanners a laser, durante dois dias.

Foram capturados 2,3 bilhões de pontos, com precisão de 3,7 mm, que formam a chamada "nuvem de pontos", em cima da qual é feita a modelagem 3D. Foram meses de processamento dos dados visuais, por meio de softwares de engenharia e arquitetura, como Civil 3D, Infraworks e Revit, dentro da metodologia BIM (Modelagem da Informação da Construção, que permite a criação de modelos virtuais precisos e multidisciplinares).

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Imagem: Marcella Duarte

Assim, com um conjunto de ferramentas, os dados brutos foram "traduzidos" para um modelo digital utilizável. O trabalho resultou em um arquivo de 13 GB com diversas camadas de informação — desde a curvatura de uma coluna até a cor e quantidade de tinta utilizada na pintura.

Ele não foi usado para orientar as reformas, que já estavam sendo iniciadas, mas pode ser muito útil em serviços futuros. Dá para detectar falhas com tempo suficiente para reparos proativos, para planejar manutenção preventiva, e até testar uma obra primeiro nesse modelo virtual, para ver se daria certo. De certa maneira, o gêmeo digital acaba funcionando como uma máquina do tempo, avançando até um cenário simulado ou retrocedendo para uma versão do passado.

O projeto foi realizado pela empresa de tecnologia Autodesk, que tem feito diversos trabalhos de preservação digital, inclusive na Catedral de Notre-Dame, em Paris, parcialmente destruída por um grande incêndio em 2019.

Veja um vídeo de apresentação:

Acervo de milhões

Nesta primeira fase, foi mapeada somente a estrutura (prédio, jardins e itens fixos, como árvores, bancos, luminárias e algumas esculturas enormes). Mas já foram selecionadas 50 obras (entre os 450 mil objetos, imagens e documentos do acervo) que também passarão pelo processo.

Entre elas, estão as famosas ânforas de cristal, que carregam águas de rios brasileiros, e carruagens, que não estão fisicamente expostas.

"São objetos grandes e pequenos, escolhidos de acordo com sua importância histórica e os eixos temáticos das exposições, que englobam cerca de 3.800 itens", conta a curadora. Será uma fase experimental, para checar a viabilidade e utilidade da modelagem tridimensional do acervo (que já está todo digitalizado, mas em 2D).

"O bidimensional também continua tendo função, além de ser mais fácil de produzir e mais leve para utilizar. Textos, por exemplo, não precisam ser 3D", acredita. Mesmo assim, é um volume enorme: os objetos totalizam 30 mil, e as imagens (esculturas e quadros) são 70 mil.

O desafio, então, é desenvolver as plataformas e ambientes virtuais para uso destes dados, para que possam ser acessadas facilmente por celulares e cheguem a mais pessoas. "Isso já vem acontecendo em alguns museus. Você tem o detalhamento dele, pode 'girar' o prédio e as obras, faz uma visita mais imersiva", diz Lima.

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Imagem: Helio Nobre/Autodesk

Gamificação

Quando a nova modelagem for concluída, os códigos serão disponibilizados para que alunos de graduação e pós-graduação possam explorar mais possibilidades, como desenvolvimento de games ou apps. "A inovação é uma característica das universidades. Imagine, por exemplo, imprimir uma destas obras para que deficientes visuais possam tocá-las."

Na verdade, já existe uma experiência de jogo e de exposições e passeios virtuais, mas que foram feitos com uma digitalização anterior e bem mais simples, em parceria com a Escola de Comunicações e Artes (ECA-USP). O app surgiu em um desafio do festival Games for Change, e retrata uma guerra entre humanos e robôs, em que você precisa proteger o museu de um exército com inteligência artificial do futuro.

"Há, inclusive, um conceito do mundo de games que você começa com o mundo, todo ele, e vai dando zoom e aumentando o nível de definição", lembra Pedro Luis Soethe Cursino, gerente técnico de vendas da Autodesk Brasil. "Posso chegar no nível de detalhe da curvatura da base de um pilar, mas também posso disponibilizar todas estas informações de uma forma relativa para que pessoas que não são engenheiros nem arquitetos possam contemplar o ambiente."

"Estamos construindo uma memória que vai ficar para sempre", garante. Algo particularmente importante e louvável nestes tempos de queda no investimento em cultura, em que museus carecem de manutenção e perdem acervos inestimáveis em incêndios, infiltrações e outros problemas.