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Por que Rússia e Ucrânia ainda não realizaram grandes ataques cibernéticos?

14 mar. 2022 - Fragmento de míssil é visto em rua de Donetsk, na região do Donbass, Ucrânia - Reuters/Stringer TPX
14 mar. 2022 - Fragmento de míssil é visto em rua de Donetsk, na região do Donbass, Ucrânia Imagem: Reuters/Stringer TPX

Vinícius de Oliveira

Colaboração para Tilt, em São Paulo

30/03/2022 04h00Atualizada em 30/03/2022 09h24

Sem tempo, irmão

  • Contrariando previsões, ataques cibernéticos não tiveram um grande papel no conflito entre Rússia e Ucrânia
  • Para especialista, países firmaram uma "Guerra Fria cibernética": nenhum dos dois quer dar um primeiro passo com alto poder destrutivo
  • Um satélite ucraniano foi invadiado e desconectado das turbinas eólicas do país, mas russos não assumiram autoria do ataque
  • Rússia tem dado preferência a uma guerra de desinformação, como a fake news de que o governo ucraniano limitaria saques nos bancos
  • Grupo hacker Anonymous declarou apoio à Ucrânia, derrubando sites do governo russo

Desde o surgimento do Stuxnet, primeiro vírus de computador a fazer estrago relevante na infraestrutura de um país, em 2005, especialistas acreditavam que futuras batalhas entre nações incluiriam ataques cibernéticos.

O Stuxnet tinha o poder de barrar a produção de uma bomba nuclear no Irã, e permaneceu ativo e indetectado por cinco anos. De lá para cá, ameaças hackers foram aperfeiçoadas — imagine o poderio atual para uma verdadeira guerra cibernética, de proporções nunca antes vistas, afetando estruturas físicas estratégicas, como redes de comunicação, energia e água e esgoto.

Mas durante o conflito entre Rússia e Ucrânia, os ataques virtuais (ainda) não foram elevados a este novo patamar. Eles "apenas" têm focado em bloquear sites de empresas telecomunicação e fontes oficiais do governo.

Para Felipe do Nascimento, diretor de engenharia técnica na América Latina da empresa de segurança cibernética Tanium, dois motivos principais ajudam a explicar por que as ações dos países não se desenrolaram como o previsto: a Rússia não quer ser a primeira a dar este passo e está priorizando a disseminação de informações falsas.

Já Marcelo Suano, professor de relações internacionais e direito no Ibmec SP, acredita que a Rússia não atacou fortemente a Ucrânia no âmbito digital devido à "origem comum entre povos" do Leste Europeu, à maior resistência que o esperado e à rápida resposta do Ocidente ao conflito.

"Guerra Fria" cibernética

Assim que a Ucrânia começou a ser invadida, um dos satélites do país, que coordena mais de 5,8 mil turbinas de energia eólica, foi desconectado. Desde 24 de fevereiro, as turbinas continuam girando no piloto automático, sem gerenciamento, e não podem ser reinicializadas remotamente.

"Nenhum russo assumiu a autoria, mas este ataque aconteceu horas antes de as tropas começarem a invadir a Ucrânia", diz Nascimento. "Apesar de não ter causado nenhuma destruição, ele afeta a infraestrutura do país. É do tipo que cai em uma área cinzenta: causa bastante dano, mas nenhuma morte de forma direta."

Para o diretor, a Rússia não atacou a Ucrânia diretamente por temer retaliação de outras superpotências, como França e Estados Unidos.

"No momento que um país fizer um ataque capaz de explodir um reator nuclear ou alterar uma linha de gás e distribuição de energia, ele vai sofrer o revide da mesma maneira e com a mesma força".

Para ele, consolidou-se uma "Guerra Fria cibernética": nenhum dos lados quer ser o primeiro a dar um passo desproporcional, mesmo no âmbito virtual.

"Todas as superpotências sabem que têm potencial para se autodestruir. Mas não é porque não aconteceu até agora que não pode acontecer ainda. Ou que não há algo pronto para ser detonado quando a Rússia achar que deve", completa.

Disseminação de fake news

Sites governamentais e empresas de telecomunicações ucranianas têm sofrido invasões virtuais, atribuídas a hackers russos, desde antes do início da guerra. Em geral, foram ataques de negação de serviço (DDoS, sigla para "denial of service") massivos, que deixaram sistemas indisponíveis.

"De acordo com a NSA [Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos], a Rússia está dando prioridade à propaganda enganosa e à desinformação. Afeta-se mais a infraestrutura do país com informações falsas do que com informações diretas", diz Nascimento.

Suano lembra que os ucranianos correram para retirar dinheiro dos bancos depois que a máquina de propaganda russa afirmou que a Ucrânia restringiria saques. Inicialmente uma fake news, a história acabou virando verdade, uma vez que o governo passou a limitar saques em dinheiro e suspendeu compras em moeda estrangeira após registrar filas enormes nas agências bancárias.

Origem comum entre os povos

Suano acredita que a Rússia não lançou uma guerra cibernética em larga escala também por causa dos laços entre ambos os povos.

"Há muitos ucranianos que têm pais ou avós russos. Assim como há muitos ucranianos que transitavam livremente pela Rússia", diz o professor.

A herança comum remonta ao século 9, quando Kiev era o centro do primeiro estado eslavo do povo "rus". Este grande estado medieval, que historiadores chamam de Rus de Kiev, deu origem a países como Ucrânia, Belarus e Rússia.

No século 20, com a criação da União Soviética, o ditador Josef Stalin invadiu a parte leste da atual Ucrânia. Por isso, os laços com Moscou são mais fortes na região. A população tende a seguir a religião ortodoxa e a falar russo. Na parte oeste, muitos são católicos e preferem se expressar na língua local.

Resistência

A resistência "inesperada" da Ucrânia também pode explicar a relativa timidez dos ataques cibernéticos russos. Para o Kremlin, o presidente ucraniano, Volodymy Zelensky, era visto como um político fraco, que abandonaria o país logo após uma invasão.

"Quando o Zelensky fez uma live dizendo que não sairia do país e convocando todos os ucranianos a resistirem, criou um sentimento de resistência na população, que não era esperado pela Rússia", explica Suano. "Os russos achavam que a invasão seria rápida, com poucos dias. Agora, o país está procurando uma saída honrosa da guerra."

Isto explica porque a Rússia tem se demonstrado aberta ao diálogo, porém, ao mesmo tempo, bastante inflexível nas demandas para o fim da invasão.

Entre as exigências, estão o reconhecimento da Crimeia como território russo; o reconhecimento das regiões separatistas de Donetsk e Lugansk como independentes; e a rejeição constitucional à entrada da Ucrânia em qualquer bloco econômico ou militar, como a União Europeia ou a Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte).

Resposta do Ocidente

A última razão para não termos assistido a um ataque virtual de grande escala está na rápida resposta dos países ocidentais ao conflito.

Além das sanções comerciais e da exclusão da Rússia do sistema bancário internacional, muitas grandes empresa ocidentais, como McDonald's, Coca-Cola, Starbucks, Amazon e Pepsi, estão deixando de atuar no território comandado por Putin.

"Quando a Ucrânia ficou sem internet, Elon Musk posicionou satélites da Starlink para ajudar a população a se comunicar. Atualmente, existem muitos mais atores globais que podem influenciar em uma guerra, não apenas os governos e políticos", diz Suano.

Ele também lembra que hackers podem agir de maneira independente. O grupo Anonymous declarou guerra cibernética à Rússia, derrubando o site do canal estatal Russian Today e as páginas do Kremlin e do ministério da Defesa russo.

Outro ataque, ainda sem autoria identificada, invadiu o sistema da emissora de televisão Ukraine 24, espalhando uma montagem de vídeo (deepfake) com o presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, declarando rendição à Rússia e pedindo para os soldados baixarem armas e voltarem para suas casas.