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Depois das vacinas contra covid, RNA pode trazer o fim dos agrotóxicos

Solução em RNA pode diminur a presença de agrotóxicos no campo Imagem: iStock

Juliana Stern

Colaboração para Tilt, em São Paulo

31/12/2021 04h00

Sem tempo, irmão

  • RNA pode ser alterado para combater pragas na agricultura de acordo com as espécies locais
  • Prática já está em estudo por empresas do setor, mas depende de regulamentação
  • Compostos auxiliariam na preservação de biomas locais e espécies ameaçadas, como as abelhas
  • No Brasil, a aplicação permitiria a redução de agrotóxicos nas plantações, presentes de maneira elevada no produto final

Pesquisadores na área de biotecnologia podem ter desenvolvido uma saída para reduzir o uso dos agrotóxicos químicos e diminuir seus riscos. O segredo, segundo os cientistas, está em algo presente nos seres vivos: o RNA, molécula que carrega instruções do núcleo da célula para a síntese de proteínas e outras funções biológicas.

O recurso, que pode fazer parte de uma nova geração de pesticidas, é baseado em um truque celular que data de mais de um bilhão de anos: no início da evolução da vida, as células do ancestral comum de animais, plantas, fungos e protozoários desenvolveram a capacidade de fragmentar e destruir o material genético de patógenos invasores, como os vírus, por exemplo.

Como funciona?

Em 2006, pesquisadores entenderam como as células se defendem naturalmente.

Para se reproduzir, o vírus solta seu material genético — composto por RNA de fita dupla (dsRNA), ou seja, que tem duas fitas de códigos genéticos — dentro da célula hospedeira.

Ela, por sua vez, entenderá aquele RNA como um "manual de instruções" para criar proteína, assim como as que o seu próprio núcleo produz, e fabricará mais cápsulas virais, reproduzindo o invasor.

Porém, quando a célula hospedeira detecta o RNA invasor, ela quebra essas moléculas em pedaços minúsculos e esses pedaços de RNA passam a ser como "pôsteres de procurado", extremamente detalhados, usados para caçar e destruir qualquer trecho que corresponda ao do invasor.

A descoberta rendeu aos pesquisadores Andrew Fire e Craig Mello o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina de 2006.

E também desencadeou uma corrida para desenvolver novas ferramentas baseadas no processo, hoje utilizado num campo de estudo relativamente recente: o de vacinas de RNA.

Estudos em 2016 já conceitualizavam a possibilidade deste procedimento curar enfermidades graves, da aids à chikungunha. O procedimento foi crucial para que as primeiras vacinas contra a covid-19 fossem desenvolvidas em um intervalo de tempo tão curto. E que hoje, podem ser usadas para derrotar outras doenças.

De coronavírus às lavouras

Mas os cientistas logo perceberam que o mesmo processo funcionaria para além da área da saúde.

Ao introduzir dsRNAs em um patógeno incômodo — um inseto praga por exemplo — seria possível instruir as células desse patógeno a destruírem seus próprios códigos genéticos. Isso o impediria de produzir proteínas necessárias para funções fisiológicas.

Em essência, a ciência poderia desligar genes dentro de pragas à vontade.

"A tecnologia de RNA controlaria uma praga de agricultura, por exemplo, ao bloquear alguma via metabólica desse patógeno específico", explica o chefe adjunto de pesquisa da Embrapa, Wagner Lucena. "Por exemplo, é possível inibir a absorção de nutrientes, então ele morre por inanição. Se é um inseto, podemos impedir que faça a metamorfose. Com isso, ele não sobrevive, não completa o seu ciclo e não causa o dano às plantações."

"Estamos apenas olhando para uma orquestra de genes e proteínas de organismos alvo e silenciando os violinos", compara Michael Helmstetter, presidente da RNAissance Ag, uma startup americana que deseja trazer sprays pesticidas com a tecnologia de RNA para o mercado.

A RNAissance Ag está trabalhando em um produto que tem como alvo a traça-das-crucíferas, que tem um apetite insaciável por repolhos e já desenvolveu alguma resistência aos pesticidas comuns.

Já a GreenLight Biosciences, outra empresa de biotecnologia americana, tem um spray de RNA direcionado ao besouro da batata do Colorado, que já está sob avaliação da agência reguladora local. A empresa espera uma decisão sobre a aprovação do produto para 2022.

Menos impacto, mais eficiência

A nova geração de pesticidas baseada em RNA pode ter algumas vantagens importantes sobre os produtos atuais de base química.

Por exemplo, o RNA é decomposto muito mais facilmente do que os agrotóxicos químicos, desaparecendo do solo em alguns dias — o que diminui o problema de acúmulo de resíduos tóxicos no ambiente.

Outra vantagem é que os sprays de RNA têm como alvo genes específicos para espécies individuais, então há (pelo menos teoricamente) uma chance muito menor de que outros organismos sejam pegos no fogo cruzado.

Esse ponto é importante principalmente para preservar as populações de polinizadores que contribuem para o cultivo e os biomas locais.

No Brasil, 76% das plantas utilizadas para cultivo dependem da ação de polinizadores. As abelhas são as mais importantes nessa relação, sendo responsáveis pela polinização de 80% das culturas. O café, a maçã, o maracujá e até a soja são beneficiados pelos insetos.

Agricultor lança pesticida em plantação de soja em Rio Verde, Goiás Imagem: Getty Images

Um estudo apoiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) sobre efeito dos agrotóxicos em abelhas mostrou que, mesmo quando usado em doses não letais, os químicos encurtaram o tempo de vida dos insetos em até 50%.

A pesquisa investigou o efeito de produtos com clotianidina, inseticida usado para controle de pragas nas culturas de algodão, feijão, milho e soja, e o fungicida piraclostrobina, aplicado na maioria das folhas de culturas de grãos, frutas, legumes e vegetais.

Outro efeito observado foi que os agrotóxicos mudaram o comportamento das operárias, deixando-as letárgicas e desorientadas, o que pode comprometer o funcionamento de toda a colônia.

Para Lucena, apesar da tecnologia de RNA ser relativamente nova, é bastante promissora considerando os benefícios em relação à biossegurança, menor impacto ambiental e por ser mais fácil produzir um novo dsRNA que um novo pesticida químico.

"A galera da bioinformática, que está na ponta inicial da pesquisa para o desenvolvimento dessa tecnologia, pode voltar ao laboratório e reformular um spray, com outro código genético, assim que as pragas começarem a desenvolver resistência aos modos de ação atuais. Apenas a própria informação genética seria ajustada."

E o agro brasileiro?

No Brasil, o pesquisador Eduardo Henrique Goulin, professor de genética e microbiologia no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Santa Catarina (IFSC), é o primeiro autor de um estudo que analisa o uso da tecnologia de RNA como forma de controlar pragas na produção de citros.

Citros é uma das culturas mais importantes do mundo, sendo o Brasil o principal produtor de laranja doce. No entanto, vários patógenos são controlados com produtos químicos.

Segundo levantamento da Agência Pública, em parceria com o Repórter Brasil, a partir dos dados brutos do Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos da Anvisa, de 2020, uma a cada 14 laranjas vendidas nos mercados tinha agrotóxico suficiente para causar uma intoxicação imediata em quem consumiu. Das frutas testadas pela Anvisa, 14% apresentavam doses acima do recomendado ou agrotóxicos de uso proibido no Brasil.

Uma das pragas agrícolas que mais preocupa os produtores brasileiros de citros é a bactéria Candidatus Liberibacter asiaticus, causadora da doença conhecida como "greening", que se propaga muito rapidamente e não tem cura ou tratamento.

De acordo com o Fundecitrus (Fundo de Defesa da Citricultura), ela está presente em 22,37% das laranjeiras do cinturão citrícola de São Paulo e Triângulo/Sudoeste Mineiro, principal região produtora de laranja do mundo, o que pode significar uma média de prejuízo anual na casa dos R$ 50 milhões.

Uma das principais causas deste impacto seria a resistência ao pesticida.

"O RNA surge como estratégia promissora para melhorar a resistência de plantas, diminuir custos de produção e trazer menores impactos ambientais e na saúde dos consumidores", acredita Goulin.

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