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'Não Olhe Para Cima': cientistas brasileiros dizem o que é verdade e ficção

Dr. Randall Mindy (Leonardo DiCaprio) e Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence) em "Não Olhe para Cima" - Niko Tavernise/Netflix
Dr. Randall Mindy (Leonardo DiCaprio) e Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence) em "Não Olhe para Cima" Imagem: Niko Tavernise/Netflix

Letícia Naísa

De Tilt, em São Paulo

29/12/2021 04h00

Este texto contém spoilers de "Não Olhe Para Cima".

O filme "Não Olhe Para Cima" ("Don't Look Up", em inglês) foi lançado pela Netflix há poucos dias e a internet já entrou em polvorosa. No longa, uma dupla de pesquisadores, vivida por Leonardo DiCaprio e Jennifer Lawrence, descobre (e prova) que um cometa vai colidir com a Terra e dizimar a raça humana. Porém, nem todos acreditam e uma grande campanha contra os fatos científicos inicia.

A história fez alguns internautas apontarem semelhanças com o cenário brasileiro dos últimos anos. Teve gente que comparou o cientista principal do longa com o microbiologista e divulgador científico Átila Iamarino. Em uma das cenas, a pesquisadora responsável pela descoberta central do filme perde a paciência em um programa de televisão. Isso foi relacionado com um momento vivido pela microbiologista Natália Pasternak na TV Cultura.

Entre os críticos de cinema, as opiniões sobre o filme se dividem. Mas e entre os próprios cientistas, como o longa repercutiu? Tilt conversou com alguns deles para descobrir. Os entrevistados detalham ainda o quão real é a ciência do filme e a vida dos pesquisadores retratadas na sátira.

Vem, meteoro?

Eduardo Sato, mestre em física e divulgador científico, explica que é comum que cometas pequenos e meteoros caiam na Terra, mas nada catastrófico. "Isso é muito improvável."

Os especialistas apontam que, se um cometa gigante estivesse vindo em direção à Terra, nós já saberíamos. "Teríamos informações sobre isso há bem mais tempo do que seis meses [como no filme]", afirma Roberta Duarte, física e doutoranda em astrofísica na USP (Universidade de São Paulo).

Logo, quem torce para a chegada dele ou de um meteoro (rocha espacial menor que um asteroide quando alcança a atmosfera terrestre), pode esperar sentado — só para relembrar, cometas são feitos geralmente de partículas rochosas, poeira e gelo.

Contudo, a Nasa, agência espacial dos Estados Unidos, quer se preparar para caso isso aconteça no futuro. Em novembro, ela lançou a missão DART. O objetivo é mudar a rota de um asteroide usando energia cinética. "Isso é um teste para ver se isso é possível e é a mesma coisa que é proposta no filme, colidir uma sonda com o cometa para desviar da Terra", explica Duarte.

Explodir o corpo celeste funcionaria?

No filme "Não Olhe Para Cima", o governo dos Estados Unidos arrisca um segundo plano: tentar explodir o cometa para ter acesso aos seus materiais valiosos e utilizá-los na indústria de eletrônicos.

Do ponto de vista do efeito científico, diz Duarte, seria uma péssima ideia. "O cometa é muito mais denso do que o esperado. E tem o fato de que uma explosão pode transformar o cometa em pedaços tão pequenos que, ao invés de ser um cometa só caindo, seriam vários ao mesmo tempo", ressalta.

Diante disso, a humanidade não seria destruída de uma vez só, como acontece no filme, mas uma chuva de cometas destruiria vários lugares aos poucos.

O poder dos bilionários

O plano de tentar recuperar os materiais importantes (e caros) para usar na fabricação de eletrônicos foi conduzido pelo bilionário Peter Irshwell (Mark Rylance), dono de tecnologias que possuíam algoritmos dos mais avançados já usados no mundo (exemplo: descobrir que a pessoa está triste antes mesmo de ela perceber).

A personalidade excêntrica e ambiciosa fez alguns internautas o comparar com os ricaços Richard Branson, Jeff Bezos e Elon Musk, já que eles disputam entre si uma corrida espacial. Musk, inclusive, foi criticado por causa do lançamento de satélites de sua empresa, a Starlink, que quase colidiram com uma estação espacial chinesa e podem impactar os estudos astronômicos.

"É difícil entender os objetivos dessas pessoas e se eles vão fazer isso de forma ética", avalia Sato. "Será que eles estão interessados em ciência e no desenvolvimento humano ou querem apenas expandir os negócios?", questiona.

Criogenia e viver fora da Terra

Em uma cena após os créditos do filme, depois de viajar muito tempo em cápsulas de criogenia (que mantêm humanos congelados com sinais vitais equilibrados), os ricaços e políticos chegam a um planeta similar à Terra depois do fim do nosso planeta.

Ao contrário do que mostra o longa, ainda não existe a possibilidade de congelar pessoas por milhares de anos. "Tem empresas que estudam a criogenia, alguns casos de pesquisas nas décadas de 1980 e 1990 com animais, mas não existe tecnologia para isso acontecer", diz Duarte.

Para Sato, também é pouco provável que haja outro planeta habitável para seres humanos. "Tem gente que procura zonas habitáveis, com água, para saber se vida se desenvolve por lá, mas acredito que seja mais fácil salvar o nosso planeta", afirma.

Duarte espera que o telescópio James Webb, que poderá revolucionar a ciência, possa trazer respostas sobre a possibilidade de existir uma "Terra 2.0" (parecida com a nossa). Mas ela concorda que a melhor aposta é preservar o planeta que já temos.

Negacionismo e pesquisas científicas

Entre o público, choveu comparações entre o enredo do filme e a situação atual da pandemia, além das questões relacionadas às crises climáticas. Há os negacionistas, que acham que o cometa (que poderia ser um vírus ou o efeito estufa) nem existe. "Não duvido que se fosse uma situação real, esse tipo de rumor aparecia", diz Sato.

O pesquisador critica a postura do filme de não mostrar o trabalho dos cientistas como colaborativo. Tudo fica centralizado entre dois pesquisadores. "Quando soubemos da pandemia, procuramos ajuda entre nós mesmos", afirma. "Fica a sensação de que os cientistas fazem tudo sozinhos. Eles precisam de um herói para a história, mas a ciência não é feita por heróis, é feita por uma grande comunidade."

Sato destaca também o caráter internacional da comunidade científica. "Fico incomodado com filmes estadunidenses, porque eles são focados nos EUA e desprezam as pesquisas que são feitas no resto do mundo", aponta. A China, inclusive, ultrapassou os EUA em produção de ciência mundial pela primeira vez.

A importância da revisão por pares

Justamente pelo fato da ciência não ser feita por uma pessoa só que existe o método científico e a revisão por pares, termos que são citados pelos personagens de "Não Olhe Para Cima".

Para ter um trabalho científico publicado e a confirmação de uma teoria, é preciso que outros pesquisadores da mesma área façam testes e cheguem aos mesmos resultados. Por isso, leva muito tempo para uma nova tecnologia — ou uma vacina — ser implementada.

"É uma corrida contra o tempo, mas é perigoso tomar uma decisão baseada em um conjunto pequeno de cientistas", afirma Sato. "Pessoas cometem erros e nem sempre é proposital, isso previne que a gente cometa erros drásticos", reforça.

Para a pesquisadora em astrofísica, os processos científicos em "Não Olhe Para Cima" condizem com o dia a dia na vida real, como nas cenas que mostram os cientistas fazendo cálculos e medindo a distância radial do cometa.

"A Kate trabalha exatamente como a gente. As pessoas acham que a gente fica com o olho direto no telescópio, mas é tudo feio por computador, as imagens são geradas na tela. Achei fiel ao que fazemos na academia", comenta.

O telescópio que a personagem de Jennifer Lawrence usa, inclusive, realmente existe: o telescópio Subaru fica no Havaí e faz parte do Observatório Astronômico Nacional do Japão — ou seja, faz parte de uma colaboração internacional — e já foi usado por muitos cientistas.

Contudo, lembra Sato, a rapidez com que eles conseguiram fazer a matemática com tanta precisão não é real. Uma noite apenas seria insuficiente para cálculos tão difíceis.

Machismo e saúde mental

Outra similaridade entre a ficção e a realidade são os problemas de saúde mental. Duarte faz referência a uma cena em que a mulher do personagem de Leonardo DiCaprio (Dr. Randall Mindy) joga os remédios que ele toma para ataques de pânico e quando ele e Kate (Lawrence) têm crises de ansiedade. "O filme mostra uma realidade da academia", comenta.

Duarte também critica o machismo que as mulheres na academia sofrem. Assim como Kate, diversas cientistas são silenciadas e "colocadas como loucas, enquanto os homens são os heróis".

"A física e a astronomia são áreas que têm mais homens, consideradas mais masculinas, então não é raro as mulheres não serem levadas a sério e terem a habilidade questionada, isso é comum", lamenta.