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Em segredo, médicos venezuelanos cruzam dados clandestinos da pandemia real

2.mai.2020 - De máscara, homem aguarda para receber cesta básica fornecida pelo governo da Venezuela durante a pandemia - Humberto Matheus/NurPhoto via Getty Images
2.mai.2020 - De máscara, homem aguarda para receber cesta básica fornecida pelo governo da Venezuela durante a pandemia Imagem: Humberto Matheus/NurPhoto via Getty Images

Marcella Duarte

Colaboração para Tilt, em São Paulo

06/09/2021 04h00

Durante pandemia de covid-19, estatísticas precisas se mostraram ainda mais relevantes para que organizações globais consigam definir melhor para os insumos e recursos devem ser enviados, e também para que o governo local decida os próximos passos, como abertura de escolas e comércios. Na Venezuela, porém, profissionais de saúde estão às escuras, e precisaram agir secretamente em busca de informações confiáveis.

Médicos e enfermeiras se uniram em redes clandestinas, para coletar dados dos hospitais e enviá-los a institutos de pesquisa e organizações não-governamentais (ONGs), para serem compilados e divulgados. Isso tem revelado um cenário de caos, muito pior do que o apresentado pelo regime de Nicolás Maduro. As informações são de artigo publicado no site da revista científica Nature.

O governo venezuelano divulga dados que, comparados aos dos países vizinhos, estão fora da realidade. Estima-se que os números reais de casos e de mortes por covid-19 no país seja entre cinco e sete vezes maior que os oficiais.

Oficialmente, teriam morrido por covid-19 cerca de 3.900 de seus 29 milhões de habitantes. Na Colômbia e no Brasil, respectivamente, são 2.440 e 2.700 óbitos por milhão de pessoas.

Os números, que não refletem a realidade, são resultado de falta de testes, de infraestrutura de saúde precária, de muitas mortes que ocorrem em casa e não são registradas —e também de um esforço do governo para minimizar a gravidade e descontrole da situação do país.

Cenários de caos

A economia da Venezuela colapsou na última década. Pelo menos 5,4 milhões de pessoas deixaram o país e, de acordo com a ONU, cerca de 90% da população restante vive em situação de pobreza.

Para especialistas, essa situação pode, sim, ter dificultado a disseminação do vírus — já que a maioria dos habitantes não tem condições de viajar ou frequentar eventos sociais.

Mesmo assim, os dados do governo não condizem com os que têm sido coletados clandestinamente nos hospitais.

De acordo com a organização Médicos Unidos Venezuela, apenas entre os trabalhadores de saúde, foram 736 mortes desde o início da pandemia. Em algumas semanas, os óbitos de médicos e enfermeiros foram superiores ao número divulgado oficialmente para o país inteiro.

Com a falta de testes, muitos dos diagnósticos são feitos com base nos sintomas —não é o ideal, mas mostra um panorama muito mais real do que as estatísticas do governo, que consideram apenas os PCR positivos.

Como eles "garimpam" os dados

No Peru, a situação é parecida em termos de falta de dados mais concretos. Em maio, o governo precisou atualizar as informações oficiais de mortes por covid-19, após pesquisadores alertarem que eles não representavam a real situação do país. O resultado foram números triplicados.

A solução veio com matemática e estatística, considerando as mortes em excesso do período, ou seja, comparando quantas pessoas morreriam em um determinado tempo, em situações normais pré-pandemia, com os óbitos atuais.

Mesmo em nações desenvolvidas, as contagens podem ser subestimadas. Nos Estados Unidos, acredita-se que o número de mortes seja 20% superior ao divulgado pelo governo, devido a diversos fatores, incluindo diagnósticos errados.

Aí está a importância do cruzamento de dados e do trabalho dos pesquisadores, mas que encontra mais um empecilho na Venezuela. Desde 2016, o Ministério da Saúde não publica estatísticas de mortalidade no país. Assim, não há fator comparativo recente.

Como identificar variantes que atuam na Venezuela?

Organizações internacionais tentaram realizar testes do tipo nasal no país, para sequenciar o genoma dos vírus em circulação, mas foram impedidas pelo governo —que nunca divulgou informações sobre variantes. Uma das maneiras de contornar a situação foi agir fora das fronteiras.

Elas analisaram amostras de venezuelanos que migraram para a Colômbia durante a pandemia. E foi possível ter uma ideia da situação: foram confirmadas seis variantes, incluindo a beta e a gama, que são consideradas preocupantes.

Esse trabalho fora do país também evita possíveis represálias. Pelo menos 12 profissionais de saúde foram detidos pelo governo por falarem publicamente sobre a pandemia na Venezuela.