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'Batom radioativo': a história de cosméticos que fizeram sucesso no passado

O pó "Tho-Radia", à base de rádio e tório, de acordo com a fórmula de Alfred Curie - Rama/Wikipedia
O pó "Tho-Radia", à base de rádio e tório, de acordo com a fórmula de Alfred Curie Imagem: Rama/Wikipedia

Sarah Alves

Colaboração para Tilt

26/08/2021 04h00

Rituais de beleza são milenares. Com o passar do tempo, no entanto, alguns se revelam pouco seguros para a saúde. Imagine, por exemplo, usar cremes faciais com elementos radioativos sem controle? A ideia parece absurda, mas era item de desejo nas primeiras décadas do século 20.

O surgimento dos produtos foi fruto da empolgação com a descoberta da radioatividade, fenômeno identificado pelo físico Antoine Henri Becquerel, em 1896. Após a separação do elemento químico rádio (Ra) pelo casal de físicos Marie e Pierre Curie, em 1902, os elementos passaram a ser associados a benefícios praticamente milagrosos pelo sucesso inicial que tiveram na medicina.

A francesa Tho-Radia, marca mais popular no mercado de cosméticos radioativos, comercializou a partir de 1933 cremes com cloreto de tório e brometo de rádio, que prometiam "ativar a circulação, tonificar, firmar os tecidos, eliminar a gordura e remover as rugas". A empresa foi registrada em 1932, por Alfred Curie — um farmacêutico sem qualquer parentesco com o casal Curie.

Mas a verdade é que tudo era publicidade: a presença dos elementos radioativos era baixa ou quase nula, já que os materiais eram muito caros. "A quantidade usada era pequena, até porque o rádio tinha uma obtenção muito complicada, arenosa. Tudo foi um empirismo, algo muito mais motivado pelo marketing, em aproveitar a tendência", explica a engenheira química Júlia Bravo, mestranda e pesquisadora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Depois dos cremes, a Tho-Radia lançou uma linha de pó facial em oito tonalidades, anunciados como um "verdadeiro tecido de cobertura para a pele". A marca também vendia batons radioativos.

Anúncio da Tho-Radia, marca de cosméticos radioativos - The National Museum of Nuclear Science & History (EUA) - The National Museum of Nuclear Science & History (EUA)
Anúncio da Tho-Radia
Imagem: The National Museum of Nuclear Science & History (EUA)
Anúncio da Tho-Radia, marca de cosméticos radioativos - Museum of Radium (Reino Unido) - Museum of Radium (Reino Unido)
Anúncio da Tho-Radia
Imagem: Museum of Radium (Reino Unido)

Riscos das substâncias

De maneira geral, a radioatividade era usada nas propagandas como provedora de uma pele viçosa e iluminada. Não há estatísticas robustas dos danos causados pelos produtos da Tho-Radia, até porque eram restritos a uma parcela da população pelo alto preço na época. Mas a marca inglesa Radior, também de cosméticos, foi relacionada a casos de queimaduras, câncer de pele e ulcerações. A linha à base de rádio reunia produtos que prometiam rejuvenescer a pele e o reembolso de US$ 5 mil caso os resultados não fossem cumpridos.

Não é o caso comprovado desses cosméticos, mas, para se ter uma ideia, os piores impactos envolvendo elementos radioativos foram registrados em pessoas que passaram terapias diretamente com uso de radiação ou que ingeriram produtos aditivados com os materiais, explica a farmacêutica Angela Bonjorno, professora da PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná).

"Itens para ingestão foram mais complicados, há mortes em função do consumo de bebidas enriquecidas com produtos radioativos, além de intoxicações", afirma.

É o caso do Radithor, uma espécie de água radioativa lançada em 1925 nos Estados Unidos e vendida como um revitalizante para o organismo. Com rádio na composição, estima-se que 400 mil doses foram vendidas até 1931 — cada uma com 15 mililitros, em média.

Frasco do Radithor no Museu Nacional de Ciência Nuclear e História em Novo México, nos EUA - Sam LaRussa/Wikipedia - Sam LaRussa/Wikipedia
Frasco do Radithor no Museu Nacional de Ciência Nuclear e História em Novo México, nos EUA
Imagem: Sam LaRussa/Wikipedia

Quem deu fama ao produto foi o atleta e magnata Eben Byers, que ingeriu cerca de 1.400 frascos do elixir. Byers morreu em 1932, aos 51 anos, com múltiplos quadros de câncer, buracos em seu crânio e com a mandíbula totalmente desintegrada devido à intoxicação radioativa.

Mortes e fim da euforia

Segundo Nelcy Mohallem, mestre em ciências e técnicas nucleares pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), os perigos da exposição só foram notados quando começaram as reações adversas — como problemas de saúde ou, em casos mais graves, as mortes.

"O material radioativo natural é um núcleo instável, que emite partículas radioativas: alfa, beta e radiação gama. Elas vão se transformando em outro material, que, ao ser emitido, faz mal à saúde", explica Mohallem, também professora do departamento de química da UFMG.

"Foi se usando [os elementos] e percebendo só depois que faziam mal. Morreram pessoas e, então, se descobria ser por conta da radiação", acrescenta.

Marie Curie morreu de leucemia causada por alta exposição a radioatividade - Reprodução/History - Reprodução/History
Marie Curie, cientista
Imagem: Reprodução/History

Regulamentações

Na década de 1920, alguns congressos científicos já tinham certa atenção aos eventuais riscos da radiação. Ali, alguns pesquisadores adotavam mais cautela em contraste com a euforia dos anos seguintes à descoberta. Mas levou bastante tempo para que o discurso sobre a gravidade dos danos alcançasse a prática.

Sobre os cosméticos, apenas nos anos 1940 houve contraindicação direta ao uso. "Mas, apesar de a comercialização ter sido suspensa, ainda teve consumidor que continuou usando os produtos", conta farmacêutica Angela Borjorno. Em 1947, a Tho-Radia lançou um batom, mas sem qualquer menção ao tório e rádio. A marca desapareceu na década de 1960.

Batom da Tho-Radia - Museum of Radiation and Radioactivity - Museum of Radiation and Radioactivity
Batom da Tho-Radia
Imagem: Museum of Radiation and Radioactivity

A proibição coincidiu com regulamentações mais severas. Em 1938, os Estados Unidos aprovaram, em um ato pioneiro, uma lei para fiscalizar alimentos e produtos em geral. Organizações de defesa dos consumidores e a imprensa foram as principais defensoras em reformular a norma vigente, datada de 1906 — o mesmo ato criou a FDA (Food and Drug Administration, em inglês), agência regulatória do país nos moldes da Anvisa.

Para mostrar brechas nas políticas, reportagens ressaltavam produtos que causaram danos severos à saúde, entre eles, o tônico Radithor. Porém, a gota d'água foi o incidente de 1937 com o Elixir Sulfanilamida, quando mais de 100 pessoas morreram envenenadas após tomarem um antibiótico que continha solvente altamente tóxico não testado.

Elixir Sulfanilamida continha solvente altamente tóxico não testado - FDA (Food and Drug Administration) - FDA (Food and Drug Administration)
Elixir Sulfanilamida continha solvente altamente tóxico não testado
Imagem: FDA (Food and Drug Administration)

A nova lei trouxe regras rígidas aos processos de aprovação dos alimentos, produtos diversos e medicamentos, além de expandir fiscalizações em fábricas e o controle de publicidades.

"O ato da FDA foi bem inovador para a época. A regulamentação dos cosméticos, especificamente, foi motivada por ingredientes que não deveriam estar neles e, sobretudo, pela contaminação por microrganismos", explica Júlia Bravo, que também é especialista em cosméticos verdes, feitos com ingredientes orgânicos e opções mais naturais em relação aos usados tradicionalmente.

A partir dali, cresceram parâmetros que passaram a nortear a produção segura dos itens de beleza, reforçando preocupações de seus impactos no corpo humano. "Os ingredientes têm que ser aprovados para uso cosmético e devem estar na concentração permitida", conclui a especialista.