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Facebook sabe que vai morrer, diz ativista de "O Dilema das Redes"

Lucas Carvalho

De Tilt, em São Paulo

12/12/2020 04h00

Joe Toscano é ex-consultor de design do Google, escritor e fundador da Beacon, uma startup de consultoria de ética em tecnologia. Mas o que realmente o deixou famoso mundialmente foi o documentário "O Dilema das Redes", lançado pela Netflix em 2020.

No filme, uma série de líderes e ex-executivos da tecnologia nos Estados Unidos denunciam a maneira como essas grandes empresas —especialmente as redes sociais— abusam do acesso aos dados sigilosos de usuários para ganhar dinheiro com propaganda segmentada e moldar comportamentos.

Nessa entrevista exclusiva concedida a Tilt como parte da nossa cobertura do Internet Festival 2020, evento online que celebra os 25 anos da internet no Brasil, Toscano fala sobre o impacto do documentário na indústria, as possíveis soluções para o dilema das redes e seu carinho pelo nosso país.

Tilt: Como "O Dilema das Redes" impactou a maneira como as pessoas usam a mídia social, na sua perspectiva? Mais pessoas falam com você sobre isso?

Joe Toscano — Acho que as consequências [do documentário] ainda precisam ser determinadas. Mas acredito que ele impactou o uso de diferentes plataformas de mídia social pelas pessoas, especialmente Facebook e Instagram. Eu sei, por exemplo, que o Facebook fez uma declaração pública tentando desacreditar o filme. Uma empresa tão grande não faz uma declaração pública sobre algo a menos que esteja causando muitos problemas.

Nós presumimos que muitas pessoas começaram a deletar o Facebook, o Instagram e tudo mais. Essa é a nossa suposição. Mas não sabemos ao certo quantos ou qual é esse número [de pessoas que deletaram os apps], porque, obviamente, o Facebook não quer compartilhar esses números. Mas sim, o alcance foi incrível.

Muitas pessoas em todo o mundo têm me enviado emails, mensagens no LinkedIn, sobre como o filme os fez reconsiderar seus relacionamentos com os outros, o que eu acho uma coisa muito importante. Nós ficamos tão perdidos em nossos telefones na última década que esquecemos nossos relacionamentos com outras pessoas. Esperávamos que fosse um sucesso, mas não poderíamos ter imaginado tanto.

Tilt: Estamos comemorando 25 anos da internet aqui no Brasil, mas depois de assistir a "O Dilema das Redes", muita gente questiona se há motivo para comemorar. Você acha que há motivo para comemorar o aniversário da internet?

Definitivamente, não. Eu gostaria que o filme tivesse discutido os aspectos positivos da internet um pouco mais. Eu acho que fez um ótimo trabalho em informar o público sobre coisas que eles talvez nunca tenham considerado antes.

Mas veja, por exemplo, a pesquisa que eles mostraram sobre os suicídios e a depressão e essas outras coisas. Essa mesma pesquisa também mostrou que se você usasse redes sociais com moderação —acredito que os números são de dez a 30 minutos por dia— ela melhora a qualidade de vida.

Além disso, devemos considerar todos os benefícios que temos por meio da internet e os benefícios potenciais no futuro. A automação vai permitir nos concentrarmos nos aspectos mais significativos do trabalho. E é por conta da internet que estamos vendo vacinas sendo feitas mais rapidamente do que nunca, porque elas podem ser feitas com computadores em vez de lápis e papel. Mas o que espero que as pessoas tenham descoberto no filme é que existem coisas fundamentais que precisamos consertar. E esse é o objetivo do filme.

Tilt: Muitas pessoas pensam que trabalhar para o Google é um emprego dos sonhos. Mas você já diz que a maioria das pessoas já está trabalhando para o Google, só que de graça. O que você quer dizer com isso?

Também acredito que o Google, na maior parte, trata bem seus funcionários. O que eu digo é, na verdade, sobre o uso de dados e como todos nós trabalhamos efetivamente para o Google e todas as outras empresas que coletam dados sobre nós. Muito do meu trabalho é focado em proteção de dados e privacidade e direitos de dados na internet. E acredito fundamentalmente que os dados são uma moeda moderna que, em sua maioria, nossos governos não reconhecem.

Pense no que aconteceria se o Google tivesse que reconstruir o Google Maps apenas com funcionários pagos. Ele não existiria. E o verdadeiro problema é que todos trabalhamos criando dados, tirando fotos de restaurantes, deixando comentários, marcando locais. O mesmo se aplica a muitas outras empresas.

Se eu tivesse um bilhão ou dois bilhões de pessoas trabalhando para mim de graça, poderia ser um trilionário também, certo? Esse é o problema. Precisamos descentralizar essa riqueza, porque efetivamente, o que eu acredito que está acontecendo é a escravidão moderna. Estamos construindo essas empresas para eles, treinando-os, criando dados que, então, treinam seus algoritmos e constroem seus sistemas. E não estamos vendo um centavo disso.

Tilt: Em que momento você se deu conta de tudo isso e decidiu deixar o Google e fundar a Beacon?

Eu estava trabalhando com uma equipe interna de pesquisadores de UX (experiência de usuário, uma das fases na criação de programas e plataformas), ajudando-os a definir questões para que pudessem pesquisar alguns de seus produtos. E quando revisei as perguntas, fui até meu chefe e disse: "há muitas coisas aqui que não estão sendo feitas corretamente".

Sem rodeios, meu chefe na época olhou para mim e disse: "ei, olha, o Google é um grande cliente para nós. E eu entendo o que você está dizendo, mas não temos o poder de contestar isso". Ele disse basicamente tudo, exceto: "vá fazer seu trabalho e pare de choramingar". Não desisti naquele dia, mas acompanhei e continuei assistindo. E eu cheguei a um ponto, um ponto de ruptura eventualmente, onde eu disse "eu simplesmente não posso mais fazer isso".

Foi quando dei aquele salto, deixei meu emprego. Quebrei o contrato de aluguel da minha casa. Vendi quase tudo que tinha, incluindo todas as minhas ações em empresas de tecnologia. E eu simplesmente peguei meu carro e viajei literalmente pelo mundo. Passei os últimos quatro anos falando sobre essas questões em nações diferentes, universidades. Estou ajudando a criar leis agora, a criar o futuro da internet em produtos. E eu amo, amo o que estou fazendo. Definitivamente, existem lutas, como qualquer empresário. Mas nunca estive tão feliz com minha vida em geral.

Tilt: Você deixou o Google porque achou um defeito e queria consertá-lo. Mas como consertá-lo exatamente? Porque não acho que o filme nos dê uma resposta específica. Como podemos consertar isso e de quem é a culpa?

Acho que o maior problema é que queremos uma única resposta para essa pergunta, e queremos uma definição de quem é o culpado. E a verdade é que esse é um problema de sistema no mercado livre. Eu pessoalmente acho que precisamos de alguma regulamentação, mas não muito, acho que sou muito americano nesse sentido. Acho que há algumas coisas básicas que precisamos transformar em lei. Mas, além disso, acho que precisamos começar a construir novas empresas. Existem muitas delas que estão tentando agora.

Acho que veremos com o tempo que o Facebook, o Google, o Twitter, a Amazon são grandes demais para continuar inovando. Eles não funcionam como uma startup. E embora eles façam mudanças, acho que eles não serão rápidos o suficiente para acompanhar uma nova era de empresas que desenvolverão seus produtos de uma forma que realmente respeite o cliente. E eu acho que é isso que veremos, uma mudança de paradigma nas práticas de negócios.

Eu vejo o Google como a IBM do futuro. A IBM costumava ser uma das maiores empresas de computadores dos Estados Unidos no mundo. Agora, a IBM ainda é uma empresa muito grande, lucrativa e bem-sucedida, mas o público em geral não sabe mais muito sobre ela. Eu posso ver isso acontecendo com o Google. Eu não acho que o Google irá desaparecer. Acho que vai mudar, mas vai ser lento. E eu acho que haverá outras empresas surgindo em torno deles, porque eles são muito lentos para se mover, com o governo indo atrás deles e causando um monte de problemas legais.

Para ser honesto, acho que o Facebook vai fracassar eventualmente. Acho que alguém vai assumir seu lugar. Quer dizer, o Snapchat quase conseguiu. O TikTok está fazendo ele se agitar. O problema é que o Facebook não tem realmente valor produtivo na sociedade. O Google tem. O Google é a infraestrutura para o mundo digital. O Facebook é apenas uma plataforma sobre a qual conversamos.

Tilt: O TikTok apareceu e os Estados Unidos o baniram; o Snapchat apareceu e o Facebook começou a copiar tudo o que ele faz. Deixar o mercado se regular é o melhor caminho?

Acredito que há um caso a ser apresentado legalmente contra essas empresas por comportamento de monopólio. Mas, no final das contas, se você olhar para a história e da lei de monopólio, normalmente ele é dividido em um monte de subsidiárias menores e então elas trabalham juntas como se fossem uma empresa só e acabam voltando a ser uma só com o tempo, valendo muito mais do que originalmente.

Eu realmente não acredito na lei de monopólio. Espero que o caso seja levado a tribunal. Mas acredito que se trata de inovação de mercado. O Snapchat surgiu em um momento da história que não conhecíamos, ou pelo menos o governo não sabia, de tudo o que estava acontecendo na internet.

O Facebook, o site azul, vai morrer e sabe que vai morrer. É por isso que eles empurraram todos nós para o Facebook Messenger. É por isso que eles têm o Instagram como o próximo lugar que iremos. O Facebook como o conhecemos é simplesmente uma velha lista telefônica neste momento. É apenas uma forma de gerenciar todos os nossos contatos. E é por isso que mudamos para o Messenger, porque é apenas uma lista telefônica.

O Facebook se baseia no fato de que os descolados o estão usando. E, vamos ser honestos, os descolados estão indo para o TikTok. Eu nem sei, porque não sou mais um descolado. Eu tenho 31 anos, nem mesmo uso as redes sociais. Mas acredito que a única razão pela qual o Facebook e o Instagram ainda estão meio vivos é porque a geração mais jovem está lá apenas para manter contato com sua família. Com o tempo, a mudança de geração, acho que o Facebook vai desaparecer, [sem precisar de lei de monopólio]. Mas vamos ver.

Tilt: Stefania Ricciulli, uma de nossas leitoras, pergunta: "Nossos dados já estão em todos os lugares. Não podemos fazer nada mais a respeito disso. Mas como proteger as futuras gerações?"

Há muitas coisas nas quais estou trabalhando com o governo aqui [nos EUA] para discutir essas questões, algumas das quais posso falar, outras não. Acho que uma coisa importante que todos precisam lembrar é que os dados não têm valor para sempre. Se parássemos de fornecer nossos dados ao Google agora, ele teria de dez a 20 anos de dados sobre todos nós. Mas em dois, três, talvez cinco anos, muitos daqueles dados seriam antigos e irrelevantes, certo? Portanto, se os dados não forem atualizados regularmente, tornam-se menos valiosos.

Eu estou no Facebook, mas não atualizo mais minhas coisas. O Facebook não está recebendo diretamente de mim muitos dados novos. E se essa cadeia de suprimentos começar a ser interrompida, essas empresas cairão, porque o valor não estará mais lá como costumava ser quando tudo estava fresco. Então, a realidade disso é que vai levar muito tempo.

O que vamos fazer é passar por uma série de eventos que mudarão uma geração, como a Grande Depressão, por exemplo, nos Estados Unidos. Teremos toda uma geração de pessoas entre 25 e 45 anos que terão crescido com a internet e passado por esse período em que estamos agora e que dirão: "eu não vou deixar meus filhos passarem por isso".

Acho que é, no mínimo, dez a 20 anos antes de entrarmos nessa mudança de geração. Mas acredito que está acontecendo. Não teria saído do Google se achasse impossível mudar. Espero que as pessoas tenham esperança nesta conversa. O mundo está sempre mudando e podemos ser nós os responsáveis por mudá-lo desta vez.