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Por que a gente acorda no meio da noite, às vezes no mesmo horário?

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Imagem: iStock

Marcella Duarte

Colaboração para Tilt

21/11/2020 04h00

Sem tempo, irmão

  • A culpa de você acordar no meio da noite sempre no mesmo horário é do ritmo circadiano
  • Não se sinta o alecrim dourado: todo mundo acorda no meio da noite, só não se lembra
  • Se você acorda e se lembra, isso pode sinal de ansiedade, refluxo, apneia
  • Mas pode ser só o jeito que o seu corpo reage ao processo de transição das fases do sono
  • Se acordar no meio da noite te traz consequências durante o dia é bom procurar ajuda
  • Uma boa noite de sono pede, na maioria dos casos, hábitos de vida mais saudáveis

Tic-tac. Dentro de você tem um reloginho. É ele quem dispara alarmes diários, silenciosos e até meio desregulados que te acordam todas as madrugadas, interrompendo seu sono sem um motivo aparente. Até mesmo você que está ai do outro lado da tela pensando "ah, mas eu durmo como uma pedra todas as noites" tem esse relógio dentro de você.

A verdade é que todo mundo acorda diversas vezes no meio da noite, mas na maioria das vezes o intervalo de tempo em que despertamos e voltamos a dormir é tão curto que não nos lembramos na manhã seguinte.

Algumas vezes, porém, esses intervalos são mais longos e previsíveis, acontecendo todas as noites por volta do mesmo horário, e você não precisa nem olhar no relógio para saber que horas são.

Há algumas explicações para isso: ansiedade, consumo de álcool ou algumas enfermidades, como refluxo gástrico, apneia do sono e dores crônicas.

O processo natural de transição entre os quatro estágios do sono também pode ser a explicação. Eles se repetem diversas vezes enquanto dormimos:

  • Sono leve (fases 1 e 2);
  • Sono profundo (de ondas lentas);
  • Sono REM (Rapid Eye Movement ou "movimento rápido dos olhos", que é quando sonhamos).

Por que a gente cai no sono?

Enquanto dormimos, diversos sistemas agem para fazer uma limpeza dos hormônios e substâncias tóxicas que foram acumuladas em nosso organismo durante o dia. Isso acontece, principalmente, durante o sono de ondas lentas (quando você está dormindo como uma "pedra").

"Dentro do nosso organismo, há uma grande 'engrenagem', que é ativada todas as noites e trabalha para que possamos adormecer e para nos manter dormindo", conta Israel Pompeu, neurologista e coordenador do ambulatório de sono do Hospital do Servidor Público Estadual de São Paulo.

Esse mecanismo engloba uma série de grupos neuronais do sistema nervoso central, que trabalham em conjunto e sofrem influências de diversos fatores.

Pompeu explica: "nossa genética, nossa rotina, o que a gente ingere, o que a gente tem de doença, o ambiente em que a gente dorme, entre vários outros itens, podem alterar a hora em que dormimos e acordamos. Costumo dizer que sono é condicionamento".

Todos temos um padrão de sono preestabelecido, chamado de cronotipo. É o que explica por que algumas pessoas são mais ativas durante o dia e, outras, à noite.

"Alguns indivíduos são geneticamente programados para dormir às 21h e acordar as 5h, por exemplo. Está no DNA deles serem extremamente matutinos", diz Andrea Toscanini, médica do sono no Hospital das Clínicas e presidente do Congresso Paulista de Sono 2020.

Estima-se que 25% da população seja matutina (dormem, em média, das 22h às 6h); 25% seja vespertina (das 3h às 11h); e 50% seja intermediário (das 00h às 8h). Mas nosso sono é maleável, podendo ser modificado por fatores ambientais, como a luz solar.

"Trabalhadores rurais, por exemplo, criam ainda na infância uma memória luminosa para despertar antes das 5h. Se eles se mudam para São Paulo, por exemplo, ficam desadaptados. Temos muitos casos assim no HC", conta Andrea.

Mas só podemos modificar nosso sono até um limite. "Se desviarmos demais do molde, podemos sofrer consequências, que são os transtornos do sono, como o de insônia e o de ritmo circadiano", alerta Pompeu.

Ritmo circadiano é justamente aquele "reloginho" (ou 'relógio biológico') que regula o ciclo do organismo e sincroniza o sono-vigília dos seres vivos durante um período de 24 horas.

Por que acordamos no meio da noite?

Os diversos despertares durante a noite e madrugada também fazem parte desse nosso molde de sono. O neurologista ressalta que isso é normal: "é algo completamente fisiológico e até bem importante. Precisamos, ocasionalmente, superficializar nosso nível de consciência, emergir do sono, para mudar de posição na cama, evitando dores e feridas. Falando em termos evolutivos, esses despertares poderiam até ser cruciais para que se pudesse escapar de um predador noturno na era das cavernas, por exemplo."

As acordadas, em geral, são rápidas e inconscientes, durando de alguns segundos a poucos minutos. Chamadas de microdespertares, normalmente, acontecem de uma a dez vezes por hora. Podem ser detectadas em um exame do sono, a polissonografia, e identificados na avaliação da atividade elétrica cerebral (no eletroencefalograma, que é um dos componentes da polissonografia).

O que determina a ocorrência de grande parte desses microdespertares, alguns de forma regular durante todas as noites, porém, ainda é um mistério.

"Sabemos de sua importância fisiológica e até evolutiva, mas o que faz com que ocorram, em termos anatômicos, ainda é objeto de estudo. Eles podem acontecer a qualquer momento, mas parece haver um padrão de ocorrência durante as transições de estágios de sono, principalmente quando passamos de um mais profundo para um mais superficial", avalia Pompeu.

Andrea exemplifica: "as transições entre as fases são estados dissociativos, são os momentos mais frágeis do nosso sono. É como um barbante com emendas; se puxamos, ele pode arrebentar onde está emendado".

Todas as pessoas têm uma métrica parecida de sono: na primeira metade, mais sono profundo de onda lenta; na segunda, mais sono REM e, consequentemente, mais sonhos.

"Os despertares são mais frequentes depois de três a cinco horas que já estamos dormindo. Muitos pacientes se queixam de acordar às 2h ou 3h da manhã. Em geral, isso representa a passagem da fase de sono profundo, de ondas lentas, para o REM, que é mais leve. E, quando acordamos durante o sono REM, em geral, nos lembramos", explica a médica.

Por que sempre no mesmo horário?

Um microdespertar pode dar origem a um despertar propriamente dito, mais longo, quando a pessoa toma consciência de si e do ambiente. Muitas vezes, eles acontecem em um horário semelhante todos os dias. Isso pode ter diversas causas, internas ou externas:

  • transição entre os estágios do sono, em geral após completar um ciclo de sono profundo e passar a um mais leve;
  • eventos facilitados pelo sono REM, como apneia ou sonhos/pesadelos que forcem um despertar;
  • fenômenos fisiológicos do nosso organismo (movimentação intestinal, funcionamento do aparelho urinário, liberação de hormônios, mudança de temperatura corporal etc.), que seguem um ritmo diário próprio;
  • término da metabolização ou digestão de um alimento;
  • ingestão moderada a alta de bebida alcoólica: álcool é um indutor de sono eficaz, você vai adormecer rápido e dormir mais profundamente por de três a cinco horas, mas pode ter um efeito euforizante depois de metabolizado;
  • refluxo gastro-esofágico;
  • dificuldade para respirar, asma, rinite, tosse;
  • hipertensão, arritmias, cardiopatias;
  • condições dolorosas, como fibromialgia, neuropatias e quadros osteomusculares;
  • uso de medicamentos;
  • idade;
  • fatores ambientais que se fazem notar em determinado horário (um alarme, um som de algo na vizinhança, o ronco do(a) parceiro(a), o clique de um ar-condicionado etc);
  • condicionamento do sono: se despertamos no mesmo horário muitos dias por qualquer motivo, depois de um tempo, mesmo que esse motivo não esteja mais presente, podemos acabar acordando naquele mesmo horário, simplesmente por termos nos habituado a isso;

Higiene do sono

Se constantemente modificamos o horário de sono, podemos ter cada vez mais dificuldade para adormecer. "Nosso cérebro perde o fio da meada e deixa de captar as pistas ambientais a que estava acostumado, como variações de luz, temperatura e sons, que indicavam quando dormir e acordar. Por isso é importante estabelecer uma rotina", alerta Pompeu.

A receita para uma boa noite de sono pede, apenas, hábitos mais saudáveis. "Independentemente da causa da insônia, o primeiro passo do tratamento deve envolver, necessariamente, a adoção de boas medidas de higiene do sono. Em muitos casos, o problema é resolvido assim, sem necessidade de medicamentos", conta o neurologista.

Andrea ressalta: "a higiene do sono engloba cinco campos: ambiente, alimentação, rotina, controle de estímulos e relaxamento". Os dois especialistas separam um conjunto de dicas e hábitos que devem ser adotados por toda a família, sem contraindicações ou limite de idade:

  • evite refeições pesadas no jantar;
  • não consuma substâncias estimulantes (café, certos tipos de chá, guaraná, energéticos) à noite;
  • monte um ambiente de sono que seja confortável e prazeroso;
  • reserve a cama como espaço para dormir (e não para trabalhar ou fazer refeições, por exemplo);
  • não use celular, notebooks ou tablets na cama;
  • mantenha horários regulares de sono, de refeições e de atividades físicas;
  • evite atividade física extenuante perto do horário de dormir;
  • se exponha ao sol durante o dia;
  • se acordar no meio da noite, não comece a fazer atividades que não realizou durante o dia, como ler seus e-mails (seu cérebro pode se acostumar a ter de acordar para isso);

Havendo condições clínicas (apneia do sono, distúrbios psiquiátricos, doenças respiratórias ou cardíacas, dores crônicas etc) que justifiquem os despertares, é preciso, além de seguir essas dicas, abordá-los individualmente, tratando com o especialista.

Quadros de depressão e ansiedade, por exemplo, podem provocar alterações importantes no sono, causando ou agravando muitos casos de insônia. A primeira é associada a despertar precoce e, a segunda, à dificuldade para iniciar e manter o sono.

O consumo de bebidas alcoólicas é um caso interessante e que requer atenção em nosso dia a dia. "O álcool tem um efeito que engana em nosso organismo. Achamos que ele faz dormir mais e melhor, mas não é bem verdade. Se ingerimos doses maiores, adormecemos com facilidade e caímos logo em um sono profundo. Mas, depois, há um rebote. Acordamos no meio da noite e a segunda parte do sono não é legal. O sono induzido pelo álcool não é de boa qualidade", ressalta Andrea.

Quando se deve procurar um médico?

O que diferencia um sono normal de um patológico é a frequência, duração e impacto dos despertares. "Eles podem ser poucos e longos ou múltiplos e curtos. Na prática, um bom parâmetro é avaliar o quão desconfortáveis esses despertares são. Se a pessoa se sente angustiada e incomodada, causando até repercussões durante o dia, como alterações do humor, irritabilidade e fadiga, se tem sensação de sono não-reparador, se acorda sentindo dor de cabeça, é recomendável que seu sono seja devidamente investigado e tratado", ressalta Pompeu.

A chamada insônia de manutenção, ou sono fragmentado, é caracterizada pela dificuldade para voltar a dormir após os despertares. "Ela tem varias causas e precisa ser tratada, pois gera encurtamento do período principal do sono, causando consequências diurnas, fisiológicas, metabólicas e até hormonais, como diminuição da libido", diz Andrea.

É interessante descartar, primeiramente, a possibilidade de apneia do sono, distúrbio que faz que nossa respiração pause por cerca de dez segundos algumas vezes enquanto dormimos. Isso é muito mais comum do que se imagina. "Mais ou menos um terço dos paulistanos tem apneia obstrutiva do sono. Ou seja, a cada três pessoas, pelo menos uma tem sono de má qualidade", conclui Andrea.