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Vigilância? Por que a 99 vai gravar dentro e fora de carros de motoristas

Estúdio Rebimboca
Imagem: Estúdio Rebimboca

Bárbara Therrie

Colaboração para Tilt

03/10/2020 13h54

Os motoristas da 99, de São Paulo, poderão instalar a partir da segunda-feira (5) um novo sistema de segurança que grava imagens dentro e fora do carro. Desde 2018, a empresa já oferecia a opção de instalar uma câmera que gravava apenas internamente. A novidade pode ser entendida como mais um alerta sobre possíveis abusos de privacidade cometidos por serviços de tecnologia.

Localizada próxima ao retrovisor, a câmera é automática e é ativada no mesmo momento que a corrida começa. Ela é coordenada por um sistema de inteligência artificial da 99. Do início ao fim da viagem, registra imagens periódicas —isto é, gravam trechos da viagem sob certos intervalos de tempo.

Além disso, a câmera tem um botão de emergência que pode ser pressionado pelo motorista, a qualquer momento ou sempre que ele se sentir inseguro, para acionar a central de segurança da 99, que começa a monitorar o áudio e a imagem da viagem. Se necessário, a polícia poderá ser acionada.

Segundo Ingrid Flesch, gerente de projetos de segurança da 99, a nova câmera tem o objetivo de garantir uma nova camada de proteção para motoristas e passageiros.

As câmeras trazem GPS próprio e internet 4G. As lentes são do tipo olho de peixe e têm modo de visão noturna. Custam R$ 50 para instalação e R$ 9,90 para a taxa semanal do serviço de monitoramento, que também cobrem danos no equipamento ou a troca por um novo, se necessário.

E a privacidade?

Marcelo Crespo, advogado especialista em direito digital, diz que esse tipo de câmera é permitida pela lei porque a finalidade dela é garantir a segurança.

"Essa situação se assemelha a ter, por exemplo, uma câmera de segurança em um condomínio. As pessoas que frequentam esses lugares são filmadas. Em casos assim, o ideal é que haja um aviso informando que o passageiro está sendo filmado", diz.

Segundo Flesch, todos os passageiros serão avisados de que o carro tem um sistema de segurança por imagem antes de a corrida começar. O usuário pode aceitar ou não a viagem. Se ele recusar, outro veículo, sem câmera, será enviado automaticamente.

O que diz a lei sobre isso?

Não existe ainda no Brasil uma lei específica sobre usos e direitos de imagem. Mas algumas legislações mais abrangentes já dão reforço a esses casos.

Constituição: No artigo 5º, cita como direito individual e inviolável a "intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas" e a "proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas".

Código Civil: No artigo 11, os direitos da personalidade são "intransmissíveis e irrenunciáveis", tirando exceções previstas em lei. O artigo 20 ainda cita algumas formas para isso, e entre elas cita "a utilização da imagem de uma pessoa".

Código Penal: Segundo os artigos 139 e 140, difamar ou injuriar alguém pode render prisão de um mês a três anos, além de multa. No caso de difamação, prevê a "exceção da verdade", ou seja, se o ofendido é funcionário público e a ofensa é relativa ao exercício de suas funções. Sobre injúria, o juiz pode deixar de aplicar a pena em alguns casos, como quando o ofendido provocou a injúria.

Marco Civil da Internet: O artigo 7 cita de novo "inviolabilidade da intimidade e da vida privada", mas no caso, durante o acesso da internet. O artigo 21 garante punição a qualquer aplicação de internet que divulgar imagens ou vídeos com nudez ou atos sexuais sem autorização das pessoas filmadas.

LGPD: A lei geral de proteção de dados pessoais está valendo no país desde o mês passado. Em um dos artigos, diz que ela não se aplica ao tratamento de dados em casos de segurança pública e investigação e repressão de infrações penais (art. 4º, III, "a" e "d"). Por isso, as filmagens nos carros da 99 estariam garantidas pela LGPD, desde que sejam usadas apenas para esses usos. Estão proibidos abusos —como, por exemplo, que pessoas estranhas tenham acesso às filmagens ou a cópias delas.

A LGPD ainda diz que o tratamento de dados pessoais para essas finalidades deverá ser regido por uma legislação específica, que ainda não existe. Enquanto isso não acontece, ações que entrem nesses pontos teriam que se apoiar na Constituição e leis afins que citamos acima.

Em nota, a 99 diz que todas as imagens coletadas são armazenadas de acordo com a "legislação vigente" no país (sem especificar quais leis) e com as políticas de privacidade da companhia.

Você é o produto: cada passo que você dá na web gera rastros e essas informações são usadas para te vigiar e influenciar o seu comportamento

Entenda

Ok, mas pode filmar ou não?

Em resumo, essas leis permitem que filmemos, guardemos e até divulguemos na internet imagens de terceiros. Normalmente o uso que se fará dessas imagens é que pode ser passível de ações —basicamente, se a pessoa filmada alegar algum tipo de lesão ou constrangimento que se enquadre nas leis citadas acima.

Por exemplo, filmar pessoas basicamente andando na rua em um enquadramento amplo não costuma causar problemas, já que é uma via pública —logo, fora do caso de "vida privada" citado na Constituição. A menos que se crie algum viés ou discriminação no vídeo, como focar uma única pessoa e ofendê-la com algum tipo de edição ou voz em "off".

Uma pessoa pode processar o autor de um vídeo divulgado na web que a mostre sem seu consentimento mesmo que não haja prejuízo pessoal, clamando apenas pelo direito de imagem.

Mas não é algo que costuma acontecer com frequência; até porque é preciso antes que esta pessoa tenha ciência do vídeo. E isso geralmente só acontece se a imagem viralizar ou for informada à pessoa filmada por quem teve acesso ao vídeo.

Alguns usos específicos de imagem devem ser comunicados, como por exemplo a produção de um show de música avisar que cenas do público poderão constar em vídeos nas redes sociais do artista.

Polícia e empresas podem filmar pessoas sem autorização?

Tanto agentes públicos quanto privados, como as câmeras de segurança em lojas, metrôs e apartamentos, e até os shows de música que citamos acima, podem filmar qualquer pessoa sem consentimento prévio. Elas já fazem isso, como sabemos. Novamente, é o uso da imagem que faz a diferença, além da informação clara sobre o ato de filmar.

Para evitar processos, os autores das filmagens devem:

  • criar normas internas;
  • dispor as câmeras em locais com bom ângulo de visão e não íntimos (em banheiros não, por exemplo);
  • informar a todos os filmados sobre o monitoramento constante;
  • não focalizar em áreas ou pessoas específicas;
  • e disponibilizar os registros somente às autoridades e pessoal responsável

Há exemplos disso nas câmeras com reconhecimento facial que foram testadas no Carnaval em Salvador e no Rio de Janeiro no ano passado. Sem falar nos aeroportos e shoppings com esse sistema. Por que eles fazem isso? Porque a lei preserva o direito à segurança nestes casos.

Fontes: Paulo Rená, especialista em direito digital e gestor do projeto de elaboração do Marco Civil da Internet no Ministério da Justiça; e Luiza Sato, advogada especialista em propriedade intelectual e direito digital —ouvidas em reportagem publicada em 3 de abril de 2019