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Pesquisa com IA mostra como falta de leitos acelerou covid no Brasil

Hospital de campanha do Estádio Mané Garrincha, em Brasília (DF) - Mister Shadow/Estadão Conteúdo
Hospital de campanha do Estádio Mané Garrincha, em Brasília (DF) Imagem: Mister Shadow/Estadão Conteúdo

Hygino Vasconcellos

Colaboração para Tilt, em Porto Alegre

28/09/2020 04h00

A falta de leitos de UTI (Unidade de Terapia Intensiva) nos hospitais brasileiros voltados para a covid contribuiu em 58% para a taxa de mortalidade pela doença no país. O dado vem de um estudo com uso de inteligência artificial por pesquisadores da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) e pela startup brasileira Kunumi.

O estudo, que pode ser visto no site covid-19.kunumi.com, usou mais de 200 variáveis para medir o impacto da doença no Brasil e em mais 25 países. As fontes incluem número de mortes pelo coronavírus, dados de viagens, indicadores de infraestrutura de saúde, políticas públicas e dados demográficos gerais, como PIB (Produto Interno Bruto) e distribuição etária.

Cada variável influencia de maneira diferente na taxa de mortalidade de um país, calculada pela número diário de óbitos por covid a cada 100 mil habitantes. Para a análise, foram consideradas os dados do "pico de mortes" —dia em que ocorreu maior número de falecimentos pela doença. A data é variável, já que o coronavírus se proliferou pelo mundo em velocidades e períodos diferentes.

O índice de 58% de influência da falta de leitos na taxa de mortalidade da doença no Brasil é o mesmo verificado no Equador e na Itália, e superior ao encontrado na Espanha (52%). Os dois últimos países foram bastante afetados pela pandemia e chegaram a decretar lockdown para contê-la. Já no Equador, corpos de vítimas chegaram a ser deixados na rua.

Na pesquisa, o Brasil só ficou atrás de outros três na questão da falta de leitos: Reino Unido (62%), México e Nigéria (ambos com 71%). Para o professor da UFMG Adriano Veloso, um dos responsáveis pela pesquisa, o dado não surpreendeu. "Já era algo esperado inicialmente", destaca.

A epidemiologista e professora da Escola de Medicina da PUC-RS (Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), Ina da Silva dos Santos, acredita que a alta relação entre a falta de leitos de UTI e os óbitos vem do descumprimento de medidas no combate à doença, como distanciamento social, uso de máscaras e demora para fechamento de escolas e universidades.

"Se isso não for feito de modo rigoroso, é claro que vai aparecer na ponta, nos hospitais", observa Ina, que não participou da pesquisa, mas foi convidada por Tilt a analisar a plataforma.

A situação também se deveu, segundo Iná, à ausência de ação articulada e sincronizada dos governos municipais, estaduais e federal no Brasil. Alguns estados, como Rio de Janeiro, Minas Gerais e outros fizeram hospitais de campanha. Mas foi uma ação heterogênea.

"Como não houve articulação central, do Ministério da Saúde, ficou muito local. Como isso falhou, o hospital não deu conta. A gente viu muito disso no Norte e Nordeste", diz. Em Belém (PA), por exemplo, uma policial civil morreu na porta de um hospital com suspeitas de coronavírus.

Mais leitos, menos mortes

Por outro lado, o estudo mostrou que a disponibilidade de leitos acabou freando a taxa de mortalidade por covid em outros lugares do mundo. Foi que aconteceu na Alemanha (85%), Nova Zelândia (76%), Austrália (84%), Japão (88%), Egito (15%) —o percentual de cada país corresponde à contribuição positiva deste indicador para o índice geral.

"Na Alemanha, por exemplo, o sistema de saúde conseguiu segurar a barra. Por lá, o sistema de saúde é muito bom, não foi afetado no pico (da epidemia)", diz Veloso.

Para chegar aos resultados, os pesquisadores utilizaram o método Shap (Shapley Additive exPlanation), proveniente da teoria dos jogos. Nele, são verificados a contribuição de diferentes jogadores para o sucesso de uma partida. Os valores Shap medem quanto contribui individualmente cada variável em um modelo de aprendizado de máquina —positiva ou negativamente— para o resultado final, permitindo uma explicação refinada da predição como um todo.

Falta de dados

Para a pesquisa, foram usadas bases de dados diferentes, consideradas confiáveis pelos pesquisadores. No caso dos leitos, foram tomadas informações reunidas pela Universidade de Washington, nos Estados Unidos. Mas, a ausência de dados foi um dos problemas encontrados no trabalho. "Há países que faltam mais de dez variáveis", explica Veloso, que contou com uma equipe de 15 pessoas para a pesquisa.

A falta de dados foi frequente, foi um desafio. A China é um dos exemplos. Não há uma série de dados socioeconômicos, demográficos. Na Espanha o governo cismou em não passar os dados de óbitos e por muito tempo o país ficou sem essa informação. No Brasil também aconteceu. Quanto maior for a disponibilidade de dados, com certeza é melhor para o modelo
Adriano Veloso, professor da UFMG

A inexistência de certas informações acaba comprometendo comparações, observa o professor de ciência da computação do Instituto de Informações da Ufrgs (Universidade Federal do Rio Grande do Sul) João Luiz Comba, também convidado por Tilt para analisar a plataforma. "Não ter os dados completos interfere no modelo. A gente sofreu bastante com a falta de dados", salienta Comba, que reuniu informações de 6 mil cidades do mundo sobre a covid.

Apesar disso, o professor elogiou a iniciativa. "Eu fiquei bastante impressionado. Eles conseguiram reunir uma quantidade grande de dados. É um trabalho muito sério, modelaram um sistema bem complexo."

Achados da pesquisa

É preciso levar em consideração a umidade do ar e não apenas a temperatura ambiente para explicar a alta proliferação do vírus. No começo da pandemia, fala-se apenas na temperatura para explicar a explosão de casos em Fortaleza e Manaus.

"Baixa umidade relativa contribui para diminuir a velocidade (número diário de mortos a cada 100 mil habitantes), enquanto a alta umidade relativa geralmente contribui para aumentar a velocidade", salienta a pesquisa.

As favelas também contribuíram para a elevação da taxa de mortalidade no Brasil. Os moradores dessas regiões precisaram trabalhar normalmente durante o isolamento já que não dispunham de reservas financeiras, segundo os pesquisadores. Além disso, essa população usa transporte público para longas distâncias e seus serviços incluem contato próximo com outras pessoas, acelerando a disseminação da infecção.

Sozinho, o impacto da população em favelas sozinho representa 4,6% do impacto combinado das centenas de variáveis do modelo do Brasil. No caso dos EUA, a grande população vivendo em guetos e bairros pobres levou a um aumento do ritmo de espalhamento da covid de 12% do total das variáveis do modelo.

As mortes em asilos corresponderam a um terço do total de óbitos pela doença na Bélgica. Já na Suíça, representou a metade dos falecimentos por coronavírus no país. "Apesar das medidas que promovem o distanciamento social, os moradores de asilos precisam de cuidados de funcionários que inevitavelmente podem transmitir o vírus", aponta a pesquisa.

A desigualdade de renda (calculada pelo coeficiente de Gini, muito usada nesse tipo de estatística) mostrou alto impacto na velocidade do surto de coronavírus no Brasil e nos EUA. "Nossos modelos revelam que os países com maior desigualdade de renda são mais propensos a enfrentar um aumento no número de mortes de covid-19", salientam os pesquisadores.

Quanto a falta de leitos aumentou taxa de mortalidade por covid:

  • Brasil 58%
  • Chile 54%
  • Equador 58%
  • França 39%
  • Bélgica 49%
  • Canadá 38%
  • Dinamarca 24%
  • Espanha 52%
  • Israel 42%
  • Índia 47,08%
  • Irã 34%
  • Itália 58%
  • México 71%
  • Nigéria 71%
  • Holanda 31%
  • Peru 50%
  • Suécia 21%
  • Reino Unido 62%
  • África do Sul 42%

Quanto oferta de leitos diminuiu taxa de mortalidade por covid:

  • Alemanha 85%
  • Nova Zelândia 76%
  • Austrália 84%
  • Japão 88%
  • China 77,50%
  • Egito 15%

Sem dados:

  • EUA