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"Foto da família sem chamarem de macaco": rede social vira Wakanda virtual

A rede social brasileira Black & Black quer ser um ambiente de acolhimento para a comunidade negra - UOL Tilt
A rede social brasileira Black & Black quer ser um ambiente de acolhimento para a comunidade negra Imagem: UOL Tilt

Naiara Araújo

Colaboração para Tilt, de Madrid (Espanha)

13/09/2020 04h00

"Como eu nunca vi essa rede antes?" e "Quanto preto lindo!" são as principais reações de quem entra pela primeira vez na Black & Black, uma rede social brasileira criada como alternativa para negros e negras.

Em testes desde 2018, a plataforma está sendo preparada para ter sua visão final lançada dentro de dois meses. Se você está se perguntando o que ela tem de diferente do Facebook, por exemplo, a resposta é tudo e nada ao mesmo tempo.

Como rede social, ela tem funções similares às que já existiam —dá para postar, curtir e comentar. O que muda tudo, no entanto, é a experiência dos usuários, pois ela funciona como um espaço de acolhimento. Tanto que um dos objetivos é fortalecer a integração dos usuários em diferentes temáticas: do afroempreendedorismo, saúde, beleza, cultura e lazer até religião e política.

'Os pretos estão em casa'

O idealizador da Black & Black é Celso Athayde, presidente-executivo da Favela Holding, conglomerado de empresas que atendem a comunidade periférica. Para ele, a rede social nasceu de uma necessidade: dar um espaço para que as pessoas negras naturalmente criem laços com base em interesses e vivências em comum.

Ainda assim, a ideia não é excluir usuários brancos ou incentivar o abandono de outras redes sociais. Um usuário que quiser arranjar trabalho pode compartilhar um currículo no LinkedIn e na Black & Black, aumentando as suas chances de conseguir um emprego, exemplifica.

Não é uma rede para reivindicar nada, é um lugar onde as pessoas se identificam. Tem um pouco de Facebook, de Instagram, mas buscamos a nossa identidade e somos diferentes porque somos segmentados. Na Black & Black, os pretos estão em casa. Não precisam ficar com dedos para falar certas coisas. Não ficam com vergonha de postar foto do Orixá ou com medo de postar foto da família e ser chamados de macaco
Celso Athayde, executivo-chefe da Favela Holding

Quando chega?

Ainda em uma versão beta, a rede social já faz sucesso entre os 98 mil usuários cadastrados até a última segunda-feira (7). Durante o processo de desenvolvimento, melhorias são incluídas semanalmente. A expectativa dos idealizadores é que a versão final da Black & Black seja lançada em 20 de novembro deste ano, Dia da Consciência Negra no Brasil.

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A rede social brasileira Black & Black quer ser um ambiente de acolhimento para a comunidade negra
Imagem: UOL Tilt

De acordo com Marcus Vinícius Athayde, presidente da Black & Black e diretor de comunicação do Grupo Favela Holding, a principal novidade da versão a ser lançada serão os selos. Diferente de Facebook, Instagram e Twitter, que dão selos de verificação para famosos ou celebridades, a ideia é bonificar usuários pela participação na rede.

"As pessoas vão ganhando níveis de selos conforme ganham seguidores, curtidas ou se destacam, independentemente de serem famosas ou não", explica Marcus Vinícius. Os perfis que alcançarem 200 seguidores, por exemplo, ganharão um selo de bronze. Os que tiverem 2 mil receberão um de prata. A bonificação mais alta será o selo preto; o patamar de interação necessário para ganhá-lo ainda não foi definido.

Para Marcus Vinícius, o grande diferencial da Black & Black é que nas redes sociais mais populares do mundo a maioria das publicações e fotos que chegam ao feed são de brancos. Isso afeta a identidade das pessoas que não se veem assim. "Você se sente acanhado, enquanto na Black & Black os pretos podem mostrar o seu dia a dia."

Ele também conta que o retorno dos usuários tem sido bastante positivo. Um deles definiu a rede social como "um misto de Twitter, grupo da família no WhatsApp, um pouco de Facebook com Instagram e, às vezes, um toque de bate-papo do UOL".

"Wakanda virtual"

Cecília de Amorim Pereira, estudante cearense de 23 anos, usa a Black & Black há um mês. Desde então, a plataforma virou a primeira coisa que acessa quando pega o celular. A sensação, conta, é de estar em um "quilombo ou Wakanda virtual", uma referência ao país natal do super-herói das HQs Pantera Negra, interpretado por Chadwick Boseman no filme de 2018.

Eu consigo perceber que a galera gosta de se entender e isso é muito importante. Eu não cresci com esse debate na minha família, embora a maioria das pessoas sejam negras. Ver uma parte de mim quando entro em contato com quem tem essa mentalidade é uma experiência muito enriquecedora
Cecília de Amorim Pereira, estudante

Para ela, a Black & Black virou um lugar onde ela se sente confortável para discutir assuntos que não sente segurança para falar em outras plataformas, por temer ser mal compreendida. "Parece que é um lugar de proteção. Quem está ali passa pelas mesmas coisas que você", explica Cecília.

Ela diz não pensar em sair das outras redes sociais, porque a Black & Black chega para somar, não para separar. Para ela, a criação de uma rede social para negros é importante por dar voz para que os usuários se fortaleçam antes de chegar chegar a outros espaços.

"Muito antes de a gente combater o racismo das pessoas brancas, precisamos combater o que foi ensinado para nós mesmo", afirma Cecília.

Brancos podem participar?

A rede social não é exclusiva para negros. É aberta e qualquer pessoa com mais de 14 anos. Mas seus idealizadores não deixam dúvidas: é um espaço dedicado às pessoas pretas.

O ideal é que os brancos não pudessem entrar nesse álbum de família. Mas a gente não pode proibir a entrada de brancos, porque racismo é crime. Então, eu desejo que as pessoas que entrem na rede respeitem o objetivo para o qual ela foi criada
Celso Athayde

Cecília, por exemplo, não se incomoda com a presença de pessoas brancas, desde que estejam dispostos a contribuir. Recentemente, foram denunciados perfis que publicavam apologia ao nazismo, como fotos de Adolf Hitler e comentários mal-intencionados. Segundo os responsáveis pela rede, os usuários tiveram as suas contas banidas da plataforma por não respeitarem as normas.

"Eu fiz um post dizendo que não adianta revidar, se tiverem pessoas mal-intencionadas fazendo posts racistas e criminosos, porque o objetivo da rede não é revidar, mas sim fortalecer os nossos", explica. "É importante combater o racismo, mas esse combate a gente já faz todos os dias e todas as horas. Eu vejo a Black & Black como um lugar de descanso."

Espaço político também

A Black & Black, por ora, está só no Brasil, mas a ideia é ser uma plataforma internacional —o nome da rede social em inglês foi pensado com este propósito. O objetivo dos criadores é que a adesão cresça nos próximos meses para atingir cerca de 2 milhões de usuários até o dia 1º de janeiro de 2021. Atualmente, a rede já conta usuários famosos, como MV Bill, Hélio de La Peña, KondZilla, Lázaro Ramos e Taís Araújo.

"O objetivo dessa rede é oferecer para a comunidade negra um espaço onde ela pode se reunir e manifestar todas as manifestações que elas já fazem", explica Celso Athayde.

Além ser um espaço para a comunidade negra se manifestar, Celso Athayde acredita que a rede social pode contribuir com o debate político, já que candidatos pretos possam abordar diretamente eleitores pretos em potencial e compartilhar com eles suas propostas.

E a privacidade?

No que diz respeito à privacidade, eles funcionam como qualquer outra rede social. Ou seja, ainda que respeitando algumas regras, os dados dos usuários são usados para direcionar publicidade. Celso Athayde não vê problema nessa estratégia.

"Uma coisa é usar os dados das pessoas de forma irregular ou ilegal, mas a coisa mais normal é que os pretos possam democratizar oportunidade para os pretos. E a única maneira de melhorar a qualidade da rede e a usabilidade é tendo recursos", explica.

Em seu perfil, o presidente da rede social define o que esse espaço virtual significa para ele. "Essa não é uma rede de revolta e muito menos de segregação, a Black & Black é uma rede de auto-valorização, reconhecimento e reafirmação. Acima de tudo, é a rede social de fortalecimento da cultura afro", escreveu Marcus Vinicius Athayde.