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Entregadores de app são multados em R$ 6.000 após ato em SP e tensão com PM

Imagem de 14 de julho mostra entregadores de apps circulando na frente do sindicato - Divulgação/SindimotoSP
Imagem de 14 de julho mostra entregadores de apps circulando na frente do sindicato Imagem: Divulgação/SindimotoSP

Gabriel Francisco Ribeiro

De Tilt, em São Paulo

19/08/2020 04h00

Entregadores que protestaram contra os aplicativos de delivery no dia 14 de julho têm recebido multas de trânsito que chegam a até R$ 6.000 (por obstrução de via). As infrações foram registradas na manifestação organizada pelo SindimotoSP (Sindicato dos Mensageiros, Motociclistas, Ciclistas e Mototaxistas Intermunicipal do Estado de São Paulo), que saiu da sede da entidade, na zona sul de São Paulo, passou pela Câmara dos Vereadores e terminou no Tribunal Regional do Trabalho.

Os entregadores acusam policiais militares que vigiavam o local do protesto de multarem para intimidar, enquanto a Polícia Militar diz que eles infringiram normas. Por outro lado, especialistas ouvidos por Tilt enxergam violações ao direito de reunião e manifestação.

Ao menos quatro multas já chegaram ao conhecimento da entidade —é possível que outras apareçam, porque a pandemia aumentou o tempo de notificação.

Um dos multados por "usar do veículo para interromper deliberadamente circulação na via sem autorização do órgão" é o entregador José Paulo Ramos, que trabalha para o app iFood. Ele descobriu a multa, no valor de R$ 5.869, porque tem o aplicativo da carteira de habilitação digital —ainda não recebeu a carta de notificação.

Ganhando cerca de R$ 1.000 por 30 horas de trabalho semanais, ele não sabe como vai pagar o valor, especialmente porque a multa prevê suspensão imediata da carteira de motorista, o que o impediria de exercer sua atividade. "É um valor absurdo, de R$ 6.000, mais caro que uma moto, sendo que eu não fiz nada disso [obstruir a via]", afirma.

A multa foi registrada às 10h50, no número 2.820 da avenida dos Bandeirantes, zona sul de São Paulo —local exatamente na esquina da rua onde fica o SindimotoSP. Ramos alega que apenas entrou na rua do sindicato e estacionou.

A mesma infração, com exatamente o mesmo valor, local e horário, foi dada ao entregador Claudemir Gonçalves, que também a descobriu pelo aplicativo da CNH digital.

"Quando chegamos ao sindicato, já tinha um pessoal reunido. Policiais tentaram nos impedir de entrar, mas o advogado do sindicato mandou liberar, porque tinha espaço para parar na via. Então, deixamos a moto parada lá. Não paramos a avenida dos Bandeirantes, estávamos na rua do sindicato", alega.

Um terceiro entregador recebeu uma infração por "usar buzina prolongada e sucessivamente a qualquer pretexto" na avenida 9 de Julho no mesmo dia, no valor de R$ 88.

Procurada, a Secretaria de Segurança Pública (SSP) disse que foram emitidas 76 autuações nas três paralisações de motoboys em julho —cerca de 5% dos 1.500 motociclistas presentes nos atos, segundo a polícia. Das multas, 65% foram pelo motociclista "segurar ou manusear celulares na direção do veículo", e duas delas por obstrução de via.

A pasta alega que os dois motociclistas multados neste caso participavam do ato e "deliberadamente, sem autorização, bloquearam o trânsito de veículos na avenida dos Bandeirantes, em frente ao numeral 2.820".

"Avisamos sobre o movimento, notificamos a SSP e o comando da Polícia Militar. Não faz sentido falar em obstrução, porque a polícia e a CET estavam lá e poderiam organizar o trânsito ou usar a força, se quisessem, para desobstruir", afirma ao Tilt Gilberto Almeida, presidente do SindimotoSP.

O ofício enviado pelo sindicato às autoridades avisa que o ato começaria às 9h na rua Dr. Eurico Rangel [esquina com a avenida dos Bandeirantes], com público estimado de 2.000 pessoas. É informado ainda o trajeto, que passaria por avenida dos Bandeirantes, marginal Pinheiros, av. Rebouças, av. Consolação, viaduto Anchieta, av. 23 de Maio, av. Paulista e rua da Consolação.

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Membros do sindicato conversam com policiais na concentração do movimento de 14 de julho
Imagem: Divulgação/SindimotoSP

Direitos em conflito

Especialistas entendem que o aviso sobre a manifestação libera para que o ato ocorra sem intimidação da PM, tornando eventuais repressões algo que fere a Constituição.

De acordo com Thiago de Oliveira, advogado especialista em direito público, basta comunicar à autoridade pública competente —"não é nem pedir autorização, é comunicar"— sobre a manifestação. Cabe às autoridades checar alguns requisitos, como se não vai haver outra manifestação no local.

"Estamos diante de um direito fundamental e consagrado pela Constituição, a liberdade de reunião e manifestação, que Estado de direito preconiza", disse.

Até que ponto houve uma irregularidade de trânsito e até que ponto essa iniciativa do poder público impede a livre manifestação de uma categoria profissional? Sem examinar as provas não dá para fazer juízo, mas são direitos relevantes em conflito
Luís Carlos Moro, da Comissão do Direito do Trabalho da OAB [Ordem dos Advogados do Brasil]

Segundo o advogado, ainda que tenha havido um descumprimento de uma norma, o direito de manifestação desses trabalhadores, se for pacífico, deve ser assegurado.

O sindicato informou que enviou dois ofícios às autoridades (para o Comando de Policiamento de Trânsito e o comandante-geral da PM paulista) avisando sobre a manifestação. A Polícia Militar esteve presente na concentração e ao longo do percurso.

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Imagem: Reprodução
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Imagem: Reprodução

Para o advogado Armando Silva e Souza, presidente da Comissão Especial de Direito do Trânsito da OAB, a multa prevaleceria se a manifestação não tivesse sido autorizada ou se houvesse algum descumprimento no que foi combinado.

"Agora, se houve autorização ou se o pedido não foi considerado, existe uma responsabilidade do próprio órgão ou da entidade de trânsito que faz o acompanhamento da manifestação. Nesse caso, não é razoável se punir um motoqueiro por uma omissão ou um comportamento negligente do órgão de trânsito."

A assessoria de imprensa da Polícia Militar afirmou ao Tilt que recebeu os ofícios e, de fato, acompanhou o ato. Ficou combinado com Marcos Cardoso, vice-presidente do SindimotoSP, que durante o trajeto as motos ocupariam apenas duas faixas de rolamento. As multas relacionadas à obstrução de via, no entanto, foram dadas antes do deslocamento dos motoqueiros, quando eles ainda estavam parados na sede do sindicato.

O SindimotoSP alega ainda que os manifestantes seguiram as determinações policiais do dia. Em vídeos publicados pela entidade nas redes sociais, é possível ver a paralisação na rua do sindicato no mesmo horário das multas. Em todas elas, há muitas motos paradas nas laterais, mas a via não está obstruída.

Neste vídeo, gravado às 11h03, pouco antes da manifestação sair, é possível ver, ao fundo, o tráfego na avenida dos Bandeirantes.

As filmagens, apesar de darem uma ideia da manifestação, não mostram o exato local onde as multas foram aplicadas. Mesmo assim, Mora considera que os vídeos podem ser usados como prova a favor dos entregadores. "Imagens correspondentes ao horário em que a infração foi imposta beneficiam a tese de infração não cometida e também de desvio de finalidade", diz.

O artigo 253-A do Código de Trânsito Brasileiro, usado para a aplicação da multa, foi modificado entre 2015 e 2016, após as paralisações de caminhoneiros em rodovias, para punir quem impede propositalmente a circulação de uma via (de maneira total ou parcial), e não engloba apenas paradas ou estacionamentos.

Clima tenso com policiais

O sindicato e os entregadores ouvidos por Tilt relatam que, diferentemente do que havia ocorrido na manifestação de 1º de julho, o clima era tenso entre os manifestantes e as autoridades no local, que anotavam ostensivamente as placas das motos no protesto. O gesto não foi bem visto pelos manifestantes.

"A Polícia Militar é uma instituição que respeitamos, mas o agrupamento que estava lá no dia agiu politicamente. Tentou brecar, inibir e arrumar confronto", disse Gil.

Reportagem da Folha de S.Paulo também relatou hostilidade entre motoqueiros e policiais naquele dia, com princípios de confusão ao longo da manifestação. Foi na manifestação do dia 14 de julho que policiais foram filmados dominando um entregador que participava da greve marcada pelo SindiMotoSP.

As imagens viralizaram, em parte porque lembravam o ocorrido com George Floyd nos Estados Unidos. Na gravação, três agentes rendem o motoboy e deitam-se sobre seu corpo, já imobilizado, no jardim de um imóvel na avenida Rebouças, região central de São Paulo. Enquanto isso, um outro policial, de arma em punho, tenta afastar a população que gravava a ação. Nas cenas, é possível ouvir o homem dizer: "Não consigo respirar! Não consigo respirar!".

O entregador do vídeo foi abordado pela polícia, porque estava com a placa encoberta —o veículo estava, de fato, com problemas na regulamentação.

A Secretaria de Segurança Pública, por sua vez, afirma que o 1º Batalhão de Polícia de Trânsito realizou o policiamento das manifestações dos dias 1º, 14 e 25 de julho para "garantir o direito constitucional à manifestação de motociclistas ligados ao SindimotoSP e de entregadores por aplicativo, com a finalidade de promover a segurança dos manifestantes e demais usuários da via".

"Os líderes do movimento e todos os participantes foram orientados previamente quanto ao que preconiza o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) e que qualquer atitude contrária à segurança seria coibida", informa a SSP.