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Da CPMI à escavação de dados: como Facebook desmontou rede bolsonarista

Investigação do Facebook resultou em derrubada de rede bolsonarista - Shutterstock
Investigação do Facebook resultou em derrubada de rede bolsonarista Imagem: Shutterstock

Gabriel Francisco Ribeiro

De Tilt, em São Paulo

14/07/2020 04h00

Sem tempo, irmão

  • Rede de contas ligadas à família Bolsonaro foi apagada pelo Facebook
  • Investigação internacional contou com informações de CPMI no Congresso e imprensa
  • Empresa Atlantic Council fez análise independente e chegou a nomes de funcionários
  • Investigação conta com elementos abertos ao público e outros que só Facebook tem acesso

A investigação do Facebook que derrubou redes bolsonaristas ligadas a pessoas próximas à família Bolsonaro teve uma boa dose de trabalho de detetive e de stalker ("perseguidor"). O processo foi investigado em duas etapas: primeiro pela própria rede social e depois por uma empresa independente.

Detalhes íntimos dos passos da investigação são mantidos em sigilo pelo Facebook, que não quer revelar sua "mina de ouro" para próximas operações do tipo. Mas Tilt apurou algumas particularidades do trabalho feito pela plataforma e por um laboratório digital forense norte-americano.

O trabalho começou há alguns meses e foi feito internacionalmente —a sede do Facebook no Brasil só soube do resultado da ação poucos dias antes da divulgação. Entenda abaixo a cadeia de eventos da investigação:

Informações do Congresso e imprensa

A investigação das redes bolsonaristas começou em março deste ano. Ao divulgar a derrubada, o Facebook disse que usou informações do Congresso Nacional e também reportagens da imprensa, que levaram às páginas em questão.

As "informações do Congresso" citadas estão ligadas às audiências da CPMI das Fake News, que ocorre no parlamento brasileiro. Foi lá que a rede social soube mais as páginas e quem as comandava.

Dados do STF, que tem deflagrado operações contra fake news, teriam sido usados, segundo a reportagem ouviu de uma fonte ligada ao caso. As reportagens da imprensa, como uma do UOL que envolvia um assessor de Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), também serviram como base.

A empresa conta com aprendizado de máquina e inteligência artificial para detectar desvios dentro da comunidade. Em alguns casos, como na derrubada das páginas ligadas a Bolsonaro, o Facebook usa informações externas para ajudar na investigação.

Equipe mundial de investigadores

As informações de testemunhas no Congresso e reportagens da imprensa foram passadas para uma equipe mundial de investigadores do próprio site. Eles são uma espécie de "detetives" que tentam diminuir os "conteúdos inautênticos" da plataforma, além de eliminar contas falsas.

Esse grupo trabalha sob as ordens de Nathaniel Gleicher, chefe de cibersegurança do Facebook desde 2018. Nos últimos tempos, a rede social passou a divulgar mensalmente um balanço de contas e páginas apagadas. O balanço de julho foi o que mais fez barulho devido às ligações políticas no Brasil e Estados Unidos —por isso, foi anunciado em paralelo com a derrubada.

Ao todo, o Facebook tem 35 mil funcionários no mundo que trabalham para garantir a integridade da plataforma. Não há investigadores no Brasil, segundo a empresa.

As informações da investigação

Os funcionários do Facebook se debruçaram sobre as páginas investigadas na CPMI para colher elementos de violações de regras. Eles têm acesso a conteúdos do "backend" da plataforma —ou seja, conteúdos que não estejam aos olhos do grande público e que estão na retaguarda de qualquer serviço.

Algumas das evidências coletadas pela empresa estão a infraestrutura da página ou conta em questão. Para isso, eles se debruçam em detalhes como o endereço do IP que comanda a página, conta de email que a controla e o aparelho em que é acessado, entre outros.

A rede social diz que não olha o conteúdo —ou seja, o discurso ou possíveis notícias falsas postadas nas páginas sob investigação— e foca apenas em um comportamento enganoso que tente manipular seguidores e a própria rede social.

Para isso, observam se existem "fake personas", ou seja, pessoas fictícias criadas por pessoas reais para administrar as páginas e publicar conteúdo. Estes mesmos perfis também costumam curtir e compartilhar posts para ampliar a distribuição deles de forma artificial, enganando a audiência sobre quem os criou.

Ajuda externa cobre buracos

A partir do momento em que a investigação é concluída pelo Facebook e a empresa crê ter elementos suficientes para a derrubada de páginas ou contas, os dados são passados para uma análise independente de empresas externas.

No caso da rede bolsonarista, a responsável foi o laboratório digital forense da Atlantic Council, empresa sem fins lucrativos em Washington (EUA) focada em política externa e que tem diversas ramificações —entre elas, este laboratório que atua contra desinformação. A organização funciona à base de doações, e parte delas vem do Facebook.

Essa análise externa ajuda a cobrir alguns "buracos". O Facebook só pode olhar em elementos que estejam dentro da plataforma, enquanto a Atlantic Council tem mais liberdade para vasculhar ligações externas das páginas na internet. Já os pesquisadores do laboratório não recebem os detalhes do Facebook: apenas o nome das páginas.

"Eu não tenho acesso ao que o Facebook tem de provas, não sei o que eles viram por trás da rede. Eu sei o que as páginas mostram e a partir daí vou tentando ver se consigo corroborar ou não as conclusões do Facebook. Se parece uma rede, conexões das páginas, quem registrou e por aí vai", explica ao Tilt Luiza Bandeira, pesquisadora brasileira da Atlantic Council.

Técnicas e trabalho de "formiguinha"

As informações do Facebook sobre a operação chegaram aos pesquisadores da Atlantic Council pouco menos de dez dias antes da divulgação da derrubada pela rede social. Nesse tempo, o laboratório da organização teve que "cavar" as páginas e perfis citados para ver se havia elementos contra eles. É um trabalho que Bandeira chama de "stalker".

"Trabalho com o que está na rede social e com o que está público para qualquer um acessar, não tenho as informações por trás da conta. Aí fico fazendo stalking, investigando a rede social para descobrir de quem são as coisas", diz Bandeira.

O trabalho da Atlantic Council foi o que revelou nomes concretos ligados a ações das páginas. O Facebook citou apenas membros de gabinetes de políticos da família Bolsonaro e de deputados do PSL, enquanto a Atlantic, em seu relatório, citou nominalmente os funcionários envolvidos —o que gerou maior saia-justa ao clã Bolsonaro, já que havia pessoas próximas a eles no meio.

Os pesquisadores da Atlantic usam diversas técnicas de uma análise de dados chamada OSINT (open source inteligence, ou inteligência de código aberto na tradução literal), que é o conhecimento produzido por meio de dados e informações acessíveis a qualquer pessoa em páginas da internet.

Os exemplos usados na investigação que chegou a nomes bolsonaristas são:

  • Análise de código-fonte: foi por meio de análise do código-fonte que surgiu um dos nomes mais relevantes da operação, o de Tercio Arnaud, um dos principais assessores do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Ao analisar o código-fonte da página derrubada no Instagram "Bolsonaro News", é exposto o endereço de email de Tércio como criador da conta, já que era uma página classificada como business.
  • Domínios de sites: as páginas derrubadas chamadas "The Brazilian Post" tinham logo do site de mesmo nome e diziam representar o site de mesmo nome, conhecido por propagar conteúdos bolsonaristas. Ao entrar nesse site, fora do Facebook, a Atlantic Council descobriu que seu domínio tinha sido registrado por Paulo "Chuchu" Eduardo Lopes, secretário do deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL-SP).
  • Comparação de contas: no caso de Jonathan Bennetti, associado ao deputado estadual Coronel Nishikawa (PSL-SP) foram notadas várias contas diferentes com esse nome e foto. A conta pessoal verdadeira, entretanto, tinha até fotos dele na Assembleia Legislativa de São Paulo.
  • Análise de fotos: ao investigar se contas são verdadeiras ou falsas, também existe uma análise das imagens dessas contas. Uma das técnicas usadas para isso é a busca reversa no Google, em que você sobe uma imagem para descobrir se há outra semelhante na web. Foi por meio disso que foram notadas fotos que eram, na verdade, de usuários de outros países.
  • Conexões: existem ainda elementos considerados mais "fracos" na análise. São conexões por meio de curtidas em posts ou na página, compartilhamentos e afins. É uma corroboração mais fraca, mas pode entrar como indício de que a página é relacionada a alguma pessoa.

Olho em conteúdo

Ao contrário do Facebook, a Atlantic olha de fato o conteúdo presente nas páginas. Enquanto a rede social diz analisar somente o comportamento, os pesquisadores do laboratório analisam as mensagens para gerar mais elementos para a investigação.

"Por que eu olho conteúdo? Porque quero saber se estavam usando uma rede inautêntica, se estavam coordenando ações, usando contas falsas, qual era o objetivo, qual mensagem estavam passando", conta Bandeira.

A investigação da Atlantic se atém apenas às contas que o Facebook indica para eles como alvo de derrubada —e, por isso, nesse caso foi restrito à rede bolsonarista.

A análise independente da Atlantic Council é então enviada para o Facebook, que toma a decisão final de derrubar ou não as páginas e grupos. Em julho, foram derrubadas quatro redes diferentes: além da brasileira, uma que funcionava no Canadá e Equador com a América Latina como alvo, uma norte-americana (ligada a um conselheiro de Donald Trump) e outra na Ucrânia.

O que dizem os políticos

Na ocasião da remoção de páginas, na semana passada, o senador Flávio Bolsonaro disse que "pelo relatório do Facebook, é impossível avaliar que tipo de perfil foi banido e se a plataforma ultrapassou ou não os limites da censura. Julgamentos que não permitem o contraditório e a ampla defesa não condizem com a nossa democracia, são armas que podem destruir reputações e vidas".

O deputado Anderson Moraes apontou que seu perfil verificado não sofreu remoção ou bloqueio, mas uma conta "real" de uma pessoa de seu gabinete foi removida. Ele chamou a remoção de "absurda e autoritária". Ele apontou ainda que a ação é contra a "liberdade de expressão e princípios democráticos".

A deputada estadual Alana Passos informou que não foi notificada pelo Facebook sobre irregularidades ou violação de regras de suas contas, que "são verificadas e uso para divulgar minha atuação como parlamentar e posições políticas"". Sobre perfis de pessoas que trabalharam no meu gabinete, a parlamentar disse: "não posso responder pelo conteúdo publicado. Nenhum funcionário teve a rede bloqueada por qualquer suposta irregularidade".

O PSL respondeu que os políticos citados "na prática já se afastaram do PSL há alguns meses com a intenção de criar um outro partido" [o Aliança pelo Brasil] e que "o próprio PSL tem sido um dos principais alvos de fake news proferidos por este grupo". Além disso, o partido não teria tido contas apagadas.

Procurada, a assessoria do presidente Jair Bolsonaro não respondeu. Também foi tentado contato com o gabinete de Eduardo Bolsonaro, que não atendeu às ligações nem respondeu a emails. Mas em seu Twitter, alegou que o Facebook "vende liberdade dos conservadores por dinheiro", referindo-se ao recente boicote publicitário de grandes empresas na rede social que aderiram ao movimento "Stop Hate For Profit".