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Sem avisar, SP iniciou monitoramento de celular antes de acordo formal

Estúdio Rebimboca/UOL
Imagem: Estúdio Rebimboca/UOL

Helton Simões Gomes

De Tilt, em São Paulo

13/05/2020 04h00

Sem tempo, irmão

  • Governo de SP monitorou celulares da população antes de assinar acordo com teles
  • Plataforma funciona desde dia 24 de março, mas só foi anunciada em 9 de abril por Doria
  • Acordo entre a estatal IPT e Claro, Oi, TIM e Vivo só foi assinado dia 14 de abril
  • Sistema é usado para medir isolamento social no estado e definir flexibilização da quarentena
  • Para juristas, houve quebra do princípio da transparência no serviço público

O governo do estado de São Paulo monitorou os celulares da população durante mais de 20 dias antes de formalizar um acordo com as empresas de telecomunicação que fornecem os dados. O acordo traz regras como a proibição do uso das informações para qualquer outro fim que não seja o acompanhamento do isolamento social e a data do fim da parceria. Juristas consultados pela reportagem afirmam que a medida pode motivar ações contra o governo por improbidade administrativa.

Anunciado em 9 de abril pelo governador João Doria (PSDB-SP), o SIMI-SP (Sistema de Monitoramento Inteligente) passou a funcionar a partir de 24 de março, segundo uma fonte no governo paulista. Este é o dia em que a quarentena foi decretada no estado.

A plataforma online mostra, no entanto, dados desde 5 de março. Naquele dia, o índice de isolamento nas cidades do estado era de 30%. Ainda conforme o governo paulista, isso ocorreu porque as teles conseguiram fornecer dados para retroceder a análise no tempo.

Foi apenas no dia 14 de abril que houve a assinatura de um contrato. Do lado do governo paulista, o acordo de cooperação técnica foi celebrado pelo IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Estado de São Paulo), responsável pela tecnologia do SIMI-SP.

Do lado da indústria, o acordo foi assinado pelas quatro grandes empresas: Claro, Oi, TIM e Vivo, além da ABR Telecom, associação que já fornece alguns serviços de telecomunicação, como a portabilidade de números, e é a gestora da plataforma.

Após ser questionado por Tilt, o governo de SP não explicou porque houve demora para formalizar a parceria. "O acordo espontâneo com as operadoras foi anunciado publicamente e a sua formalização foi realizada em seguida pois as premissas de proteção aos dados do cidadão persistem", informa a secretaria de desenvolvimento, em nota.

Já o Sinditelebrasil (sindicato das teles) informa, sem citar datas, que a iniciativa com todas as operadoras evoluiu a partir de um acordo existente com a Vivo. A operadora ainda não respondeu aos questionamentos da reportagem.

Monitoramento é parte da estratégia

O SIMI-SP é crucial para a estratégia paulista de combate ao coronavírus. É com base nos índices de isolamento levantados pela plataforma que o governo estadual decide afrouxar ou endurecer medidas de isolamento.

Assim que foi anunciado, o monitoramento de Doria passou a ser alvo de ações na Justiça que contestam a legalidade da decisão do governador.

Uma delas, protocolada no dia 12 de abril, pedia acesso ao acordo, que até então não havia sido tornado público. A Justiça de SP acatou o pedido, e o documento foi liberado. Foi por meio deste processo que Tilt teve acesso ao acordo. A ação é dos advogados Alex Terras Gonçalves e Renato Sormani, que estranharam não haver detalhamento da parceria no ato do anúncio.

O governo do Estado noticiou a criação de um sistema de monitoramento, mas não editou uma norma, infringindo o princípio da transparência. Se você celebrou uma parceria, ela tem que ser pública. Por que não foi por meio de uma norma para todos os usuários de telefonia celular tenham conhecimento?
Alex Terras Gonçalves, advogado

Outra das ações, também protocolada antes da assinatura do contrato, foi aberta pelo advogado Sidnei Lostado Xavier Junior, que pede a suspensão do monitoramento de SP.

Foi um ato arbitrário do governador. Eu entendo que esta questão do acordo assinado depois [de o sistema começar a funcionar] foi uma tentativa de regularizar ou dar uma justificativa jurídica para um ato arbitrário
Sidnei Lostado Xavier Junior, advogado

O que diz o acordo?

O acordo estabelece que seus termos vigoram somente a partir do dia da assinatura, ou seja, 14 de abril, até o dia 30 de junho. Essa duração pode ser estendida conforme for ampliado o quadro de calamidade pública, estabelecido em âmbito federal.

Ao fim do uso, o governo de SP se compromete a devolver documentos sigilosos que contenham informações confidenciais das teles.

O documento traz também obrigações do IPT...

  • Usar os dados apenas para monitorar o isolamento social
  • Subsidiar outros entes públicos com análises desses dados
  • Garantir que servidores não divulguem dados a pessoas não autorizadas

... das prestadoras:

  • Fornecer os dados usados pela plataforma
  • Aprovar os entes públicos autorizados a acessar o sistema

.... e da ABR:

  • Gerenciar o acesso à plataforma, como o fornecimento de login e senha

O acordo fixa ainda que os envolvidos deverão manter sigilo sobre a quantidade de dados transferida pelas telefônicas, documentos, especificações técnicas ou inovações empresas na plataforma. Os mapas de calor, no entanto, não estão cobertos por essa cláusula e podem ser mostrados.

O que dizem juristas?

Juristas consultados por Tilt avaliam que o ato pode gerar uma investigação por improbidade administrativa.

Para Evandro Fabiani Capano, advogado e professor de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, o acordo não poderia sequer ter sido firmado por carecer de parâmetros legais.

No acordo, o governo de SP argumenta que o monitoramento tem como base o Decreto Legislativo nº 6, (que instituiu o Estado de calamidade pública), a lei federal nº 13.979 (que autoriza medidas para enfrentamento da covid-19, como dispensa de licitação em alguns casos) e o Decreto nº 10.212 (que promulga o Regulamento Sanitário Internacional).

Arrefeceram um pouco as regras de licitação e as de circulação da população, mas não vi autorização legislativa para se fazer o que quiser. Não podia fazer antes dessas leis, nem pode fazer agora. Não estamos em um estado de direito que se levantou toda e qualquer prerrogativa constitucional
Evandro Fabiani Capano, advogado e professor de Direito do Mackenzie

A lacuna entre o início do monitoramento e a formalização do acordo é outro problema, diz Thiago Araújo, professor da Fundação Getúlio Vargas do Rio. "Ao que tudo indica, só formalizou quase um mês depois, o que é contrário à legislação", diz. A Lei de Licitações proíbe contratos verbais com a administração pública.

"Se eu quiser vender meu carro para você, vale o contrato verbal, pois estamos entre particulares. Na administração pública, não existe informalidade. Tudo tem que ter contrato, tem que estar no papel antes de eu poder executar. Se eu estou executando alguma coisa sem contrato, é absolutamente ilegal", diz Capano.

Para ele, até caberia um processo por crime de responsabilidade contra Doria. Já Araújo não julga que o caso seja para tanto. Trata-se de uma "falha procedimental", diz

Há uma falta de cuidado e transparência. Os cidadãos não sabem quais são os termos em que os dados estão sendo cedidos. É o que a gente viu, no âmbito federal, com o IBGE
Thiago Araújo, professor da FGV-Rio

Na última semana, o Supremo Tribunal Federal derrubou a Medida Provisória 954, que obrigava as teles a repassarem dados cadastrais (nome, número de telefone e endereço) de seus clientes ao IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) para a elaboração da Pnad Contínua.

"Essa ausência de transparência onera o princípio da publicidade. Poderia dar ensejo a uma improbidade por violação de princípio aplicado à administração pública", diz Araújo. Ainda assim, ele diz não ver todos os elementos para um processo do tipo por não haver concorrência nem transferência de recursos públicos.

Veja a nota da secretaria de desenvolvimento do governo de São Paulo na íntegra:

As ações [na Justiça] questionam a identificação dos proprietários dos números de celular e a violabilidade da privacidade de seus dados, mas nenhum destes dados são colhidos pelo Sistema de Monitoramento Inteligente (SIMI-SP). As operadoras de telefonia móvel disponibilizam informações aglutinadas e anônimas para que o Estado possa consultar informações agregadas sobre deslocamento nos municípios. Os dados respeitam a legislação vigente e a nova lei geral de proteção de dados, sem desrespeitar a privacidade de cada usuário. Os dados de georreferenciamento servem para aprimorar as medidas de isolamento social para enfrentamento ao coronavírus. Além disso, o acordo espontâneo com as operadoras foi anunciado publicamente e a sua formalização foi realizada em seguida pois as premissas de proteção aos dados do cidadão persistem.