Topo

Rita Wu: "Covid nos tira da alienação, do fetiche consumista, todos ganham"

Divulgação
Imagem: Divulgação

Matheus Pichonelli

Colaboração para Tilt, em São Paulo

05/05/2020 04h00

A pandemia do coronavírus vai ressignificar os processos de produção e consumo e nos tirar da alienação em relação à origem daquilo que compramos —hoje sabemos pouco ou nada sobre quantas pessoas morreram ou quanto se danificou o meio ambiente para termos algo em mãos. A opinião é da arquiteta, designer e pesquisadora Rita Wu, um dos principais nomes do movimento maker no Brasil.

Olhar para o processo era algo que os ativistas makers, como ela, sempre fizeram —você pode não ter ouvido falar deles, que usam a filosofia hacker para dominar o conhecimento e inventar coisas de significado, mas com certeza já viu algumas de suas criações (drones, impressoras 3D e muitos dos apps que estão no seu celular). Agora, o grupo viu centenas de pessoas "chegarem junto" na busca por soluções na guerra contra a covid-19.

É um momento histórico para conseguir repensar todas as formas de relações, conjugais, de trabalho, familiares, inclusive com as coisas e o espaço. Passamos do fetiche da mercadoria para o fetiche do processo. Começamos a dar valor à origem das coisas e da matéria-prima que vamos usar. Nesse fetiche do processo, todo mundo acaba aprendendo e ganhando, inclusive o planeta
Rita Wu

Uma das fundadoras do primeiro Fab Lab do Brasil, com sede na FAU-USP (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo) e atual diretora de comunicação e conteúdo do Instituto Fab Lab Brasil, além de jurada do reality show Batalha Makers Brasil, da Discovery, Wu está envolvida em diversos grupos makers engajados em produzir equipamentos de proteção individual (EPIs), ventiladores pulmonares abertos e de baixo custo, mobiliários e outros dispositivos hospitalares.

Em conversa com o Tilt, ela falou sobre como essas iniciativas estão ajudando a dar resposta rápidas neste momento de impasse do sistema.

Rita Wu, designer, pesquisadora e um dos principais nomes do movimento maker no Brasil - Divulgação - Divulgação
Rita Wu acredita que o espírito maker entrou na vida das pessoas e vai ressignificar o consumo contemporâneo
Imagem: Divulgação

Tilt - Além dos chamados escudos faciais, quais outros equipamentos os grupos makers estão ajudando a desenvolver para o enfrentamento da pandemia?

Rita Wu - O "Face Shield" é o mais simples e um dos que mais se popularizaram, mas tem muitas outras coisas sendo feitas. O IED (Istituto Europeo de Design) fará várias modelagens de máscaras, aventais e toucas, usando a criatividade dos estudantes de moda. O projeto Respire, do Inova USP, está testando tecidos para potencial de filtração e respirabilidade dos materiais.

Está sendo desenvolvida uma caixa transparente de acrílico para armazenar o circuito de ventilação montados para cada paciente. Não era sempre que os hospitais tinham tantas pessoas precisando ser intubadas ao mesmo tempo, com ela é possível identificar rapidamente se está faltando alguma coisa, deixar os kits prontos e organizar a logística, principalmente em hospitais de campanha.

Estamos criando carrinhos com bandejas de remédios, seringas e outros materiais que se encaixam e podem ser retiráveis, para higienização. Os hospitais andam cheios, com enfermeiros, médicos, assistentes e fisioterapeutas pulmonares correndo pra lá e pra cá, não dá para levar a bandeja na mão.

Estamos desenvolvendo protetores labiais, pois quando os pacientes saem da intubação mordem e machucam muito os lábios. Podemos evitar isso. Outros pacientes precisam permanecer de bruços, mesmo intubados, então projetamos um travesseiro mais alto, tipo um tijolinho de yoga, que dá altura suficiente para não amassar os tubos.

Outra coisa: antes os profissionais de saúde não precisavam ficar tanto tempo com máscaras. Agora, o elástico machuca a orelha. Estamos desenvolvendo uma peça que prende o elástico atrás da cabeça de um jeito que não machuca. E muitos dentistas e ortodontistas estão entrando em contato se disponibilizando a imprimir essas válvulas com resinas já certificadas pela Anvisa [Agência Nacional de Vigilância Sanitária].

Tilt - Como tem sido para você a aproximação com a medicina durante a crise? Onde entra o movimento maker nisso?

RW - O movimento entende o papel que tem de dar conta das urgências de forma ágil, precisa e coletiva... até subversiva. São nesses momentos que vemos e entendemos a importância da sociedade civil, do coletivo e do conectivo. Para mim, foi a continuidade, em uma escala maior, do que vinha fazendo desde 2014, quando passei um ano em um hospital e vivi muitas coisas que me impactaram profundamente. Foi nessa época que comecei a desenvolver alguns dispositivos, como um bracelete que tirava o sangue por capilaridade, sem ter que furar muitas vezes por dias pacientes extremamente fragilizados e cheio de acessos.

Antes, os makers desenvolviam muita coisa que era legal, mas não mudava significativamente a vida das pessoas ou salvava vidas. Agora, tudo que será desenvolvido —em grande parte das vezes, feito em conjunto com pessoas de diversas áreas— nos força a entender com certa profundidade as coisas que não faziam parte do nosso conhecimento inicialmente. Além de aprender muito no processo, o movimento consegue se aprofundar razoavelmente e, em momentos de urgências, dar conta de coisas muito complexas, como desenvolver um ventilador pulmonar e outras coisas que não faziam parte do cenário cotidiano.

Tilt - Existe uma expectativa de que o movimento maker preencha os gargalos da indústria na produção de equipamentos. Isso é viável? É possível criar respiradores aqui ou seria mais fácil comprar tudo de fora?

RW - Ninguém vai fazer milagres. Devemos tomar cuidado e alinhar expectativas. Os makers do mundo inteiro têm se desdobrado para fazer em tempo recorde um ventilador pulmonar, mas sabemos das limitações disso, ainda mais com falta de componente, dificuldade de compra e isolamento.

As pessoas sempre me perguntam: "mas não tem indústria para isso por aqui?". De fato, o Brasil teve seu parque industrial reduzido. Também muito se diz que "estamos num estado de guerra" e, realmente, não tem como chegar milhões de máscaras em contêineres de um dia para o outro.

No caso dos ventiladores, o que tínhamos eram poucas indústrias que o montavam em território nacional, mas as peças eram produzidas em EUA, Alemanha e China, principalmente. Esse equipamento é muito complexo e não pode errar, pois causa a morte dos pacientes. Devem dar conta de uma diversidade de ruídos e perturbações no diafragma, como uma tosse. Por mais que os projetos industriais patenteados tenham sido abertos, o mais complicado é o algoritmo de controle, e isso não é feito do dia para a noite.

Muitas indústrias dispuseram suas plantas industriais nessa produção, mas isso também é algo que vai um tempo, perto da urgência que temos. Já temos no Brasil e no mundo muitos projetos de apertadores de ambu (ventiladores manuais) automatizados, equipamentos que poderiam servir para salvar vidas, mas dificilmente para manter uma pessoa em estado grave viva. Seria algo para quando não houvesse alternativa, melhor que uma pessoas apertando um ambu manualmente. Para ser usado em UTI, a quantidade de requisitos e controle necessários é grande.

Teremos em breve um projeto aberto e que pode ser replicado, mas não sabemos se aberto até no firmware [as informações de inicialização do aparelho]. Mesmo com grandes empresas juntas, a capacidade produtiva de um equipamento complexo tem seus limites, muito provavelmente distantes do necessário.

Tilt - Numa live do Instagram, você disse que o movimento maker ajuda a repensar nossa antiga rotina. De que maneira?

RW - Os makers têm um maior cuidado com o processo, uma maior responsabilidade e respeito pelo conhecimento, pela matéria e também pelas pessoas que vão utilizar o que está sendo desenvolvido. Vai além da simples produção de EPIs e sua funcionalidade técnica. Esse movimento, articulado, tem um potencial enorme de reconfigurar as relações entre pessoas, coisas e o território em que estão — e, por isso, a descentralização e a localidade são tão importantes.

Um dos principais papéis, político, é escancarar o descaso do poder público em dar conta de situações novas e que precisam de resposta rápidas, principalmente quando relacionada às questões de saúde pública

Nesse momento complicado, com tantos medos envolvidos, em que o sistema vigente entra em colapso e falha ao cuidar das vidas, pessoas entram para ajudar umas às outras, da maneira que podem. Isso poderia ter acontecido antes, e até acontecia, mas agora a escala global dos fatos faz com que se efetive de uma forma mais séria.

Por exemplo: antes boa parte das pessoas não fazia sua própria comida, não limpava suas casas. Pagavam pela faxina, iam nos restaurantes e por aí vai. Agora tem de lidar com afazeres e cuidados que antes eram simplesmente delegados.

É como se o "espírito" do movimento maker tivesse entrado na vida das pessoas, mostrando como estávamos alienados em todos os processos do fazer que não incluíam diretamente o trabalho remunerado

Percebemos que grande parte das coisas não era importante e passamos, ou voltamos, a dar valor ao que realmente importa. Traz à tona questões que ditam o mundo e simplesmente aceitávamos.

Tilt - Muita gente diz que o mundo que vamos encontrar ao fim da quarentena não será mais o mesmo. O que pensa disso?

RW - Devemos voltar a atenção para o local e entender que esse processo é muito valioso, até para não depender de um único local de produção, como o mundo depende da China.

Quando voltamos à questão do cuidado, que seja com a nossa alimentação, passamos a nos atentar aos produtores locais. Queremos saber de onde vem aquele produto, se é orgânico ou não, quem e como se produziu a semente. Estávamos totalmente alienados do que é importante pra gente, do que simplesmente nos mantêm vivos, o que comemos

A crise já estava instaurada, já respirávamos mal há muito tempo —a crise respiratória, para mim, é simbólica, nos asfixiávamos sem perceber. Agora estamos forçados, em nossas casas, a repensar todas as escolha que fizemos, o que perdemos e o pouco que ganhamos a longo prazo com elas. Espero que muitas coisas não voltem a ser como antes, como nossa relação com aquilo que nos vicia e que torna a indústria farmacêutica e de cigarros o que são.

A própria ciência, que agora passa a ser mais valorizada, por questões óbvias, também deve se revolucionar. Os vieses envolvidos, o seu financiamento também estão absolutamente ligados ao ciclo que parecia não ter saída. Essa é a hora de romper com tudo.

Tilt - Acredita que megaeventos globais, como uma Olimpíada, ainda farão sentido?

RW - Acredito que não teremos circulação como havia antes. As conexões vão existir, mas vamos dar valor para pessoas próximas. Vamos ver pouca gente, então vamos escolher bem, entender quem nos importa, para onde vamos viajar e o porquê. O meio ambiente sofre demais com a queima de combustíveis dos infinitos voos aéreos.

Todo mundo já sabia que estávamos em crise, faz tempo, mas a diferença é que tudo parecia muito distante, no tempo e no espaço. A geleira derreteu longe de nós, o urso polar morria longe de nós. Enquanto a crise não batia diretamente na nossa porta o aquecimento global não era um problema que todo mundo percebia. Agora bateu

E olha que temos muitos problemas globais para o qual fechamos os olhos. Essa visão de progresso, de inovação, de "tudo bem a China produzir tudo", "tudo bem morrer gente trabalhando", "tudo bem o Congo ter sérios problemas e termos nosso iPhone de última geração" tende a mudar.

O problema do ser humano é que, se não tem dor, não tem transformação. Vamos precisar repensar muitos paradigmas instaurados desde a primeira Revolução Industrial para ver que não é conversa de "ecochato" e que tudo que cada um de nós faz e escolhe tem consequências.

Tilt - O que te faz crer que, ao fim de tudo isso, o efeito não seja o oposto, como uma mola que foi retraída e quer se expandir?

RW - As mudanças exigem esforço, um constrangimento coletivo.

É preciso que as pessoas mudem à sua volta para que você não se sinta o estranho. No metrô, quando tudo está muito limpo, isso constrange qualquer pessoa a jogar lixo no chão, já que todos saberão quem foi. Essa sinergia, de muitos mudando e fazendo ao mesmo tempo, tem a potência de criar uma boa onda coletiva e em escala suficiente para o passado ficar no passado

Só vai mudar e fazer sentido se esse "in between", esse interstício da nossa vida —que pode ser um respiro no meio do estresse que se tornou quase tudo — for pensado intensamente e coletivamente, num esforço de mudança real. E isso começa de dentro para fora. Por isso, vencer o medo e o pânico, conseguir lidar consigo mesmo, com o silêncio e a angústia interna... tudo isso é importante para lidar consigo, com os outros e ainda conseguir revolucionar nossos modos de vida.