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Vigilância surreal: DNA entrega seu rosto, e isso abre capítulo assustador

China usou técnica na população de Xinjiang, onde há campos de "reeducação" como o da foto - Greg Baker/AFP
China usou técnica na população de Xinjiang, onde há campos de "reeducação" como o da foto Imagem: Greg Baker/AFP

Rodrigo Trindade

De Tilt, em São Paulo

05/12/2019 04h01

Sem tempo, irmão

  • China trabalha na construção de rostos usando dados genéticos de pessoas
  • Isso está sendo usado contra populações vulneráveis, como a minoria étnica uigur
  • Isso seria feito via coleta forçada de sangue de habitantes da região de Xinjiang
  • Americanos também usam, mas até o momento em resolução de crimes

Esta é daquelas novidades que merecem o bordão "isso é muito Black Mirror". A China trabalha firmemente na construção de rostos usando informações genéticas de pessoas, em um processo chamado de fenotipagem de DNA. O código genético entrega cor da pele, dos olhos e ascendência, e isso está sendo usado contra populações vulneráveis —como pessoas da minoria étnica uigur— e gerar ações discriminatórias e perseguições.

Chineses não são os únicos a estudarem e aplicarem técnicas do tipo; americanos também já o fizeram. A diferença está no método e aplicação da técnica.

Segundo o New York Times, pesquisadores chineses têm feito isso a partir de coleta forçada de sangue de habitantes da região de Xinjiang, extremo oeste do país, enquanto polícias americanas experimentaram o recurso para ajudar em investigações de crimes.

Veja a seguir cinco pontos importantes sobre o avanço da fenotipagem de DNA:

1. Técnica extrai (algumas) informações do DNA

Analisando informações do código genético como cor da pele, dos olhos e ascendência, cientistas podem reconstruir como é (ou era) o rosto do dono daquele DNA. O problema é que estes dados não são capazes de entregar um retrato claro da aparência de alguém.

Isso ocorre porque há detalhes dos nossos rostinhos que não estão no código genérico. O peso, por exemplo, é um deles: a genética pode até indicar uma predisposição à obesidade, mas não é suficiente para identificar o peso de alguém, que é um fator que modifica nossas faces.

2. Falta de consentimento é um perigo

Consentimento é uma palavra-chave quando se fala de dados, especialmente aqueles considerados sensíveis, como o DNA. O caso chinês seria um extremo, no qual direitos humanos não são respeitados. A coleta de sangue compulsória e uso destas amostras para fins que não tiveram, necessariamente, o "ok" de seus donos é alarmante.

Essa exploração do DNA mostra, mais uma vez, a importância de leis de proteção de dados. Empresas e governos precisam garantir a privacidade das informações sensíveis de cidadãos, e a sociedade precisa cobrar para que o nível de proteção seja o mais alto possível, com punições para quem falhar neste processo.

3. Ferramenta alimenta preconceito

No caso de Xinjiang, estamos falando de uma região com presença significativa de habitantes da etnia uigur, uma minoria muçulmana com cultura e aparência distintos da maioria —a etnia han correspondente a mais de 90% da população chinesa. Sob alegação de riscos de terrorismo, a China conduz uma campanha de repressão forte contra os uigures, vigiados por avançados sistemas de câmeras e softwares de reconhecimento facial.

Essa vigilância pode ganhar um novo desdobramento com a fenotipagem de DNA, feita a partir de amostras de sangue obtidas em um programa obrigatório de saúde pública, de acordo com habitantes que fugiram do país.

Com esta técnica, o governo pode associar rostos ao DNA e ampliar programas de segregação, como os campos de "reeducação" para uigures, criados, segundo discurso oficial, para transformar extremistas perigosos em cidadãos comportados.

4. Mas pode servir como apoio em investigações

O New York Times lembra dois casos em que a fenotipagem de DNA foi utilizada pela polícia para ajudar na solução de crimes. Em um deles, no estado americano de Maryland, os restos mortais de uma vítima de assassinato foram identificados a partir de um programa chamado Snapshot, que reconstituiu o rosto de uma mulher a partir do DNA.

No outro, a polícia da Carolina do Norte a utilizou para prender um assassino cuja genética indicava ter pele clara, olhos marrons ou castanhos, cabelo escuro e um pouco de sarda no rosto. Ele confessou o crime, indicando que essa técnica até tem algum grau de precisão, embora insuficiente para uma aplicação em maior escala.

Além da finalidade policial, a fenotipagem de DNA tem utilidades arqueológicas, permitindo que cientistas façam reconstituições faciais de humanos que morreram há milhares de anos e aumentando o conhecimento sobre as origens da nossa espécie.

5. Polícia chinesa financia pesquisadores europeus

Para construir rostos a partir do DNA dos habitantes de Xinjiang, a polícia chinesa buscou cientistas que tinham ligações com institutos de pesquisa europeus. Um deles recebeu bolsa de um grupo de pesquisas alemão, enquanto outro é professor assistente de uma universidade holandesa.

Ambos são autores de um estudo de 2018 sobre as faces uigures e de outro estudo que analisou amostras de DNA de uigures tiradas no ano passado. Neste segundo estudo, um cientista do ministério de segurança pública chinês também aparecia entre os autores.

Este intercâmbio de acadêmicos e cientistas é comum e produtivo, mas abre a possibilidade do conhecimento de técnicas como a fenotipagem de DNA parar nas mãos de governos autoritários.

Mas mesmo nas mãos de governos democráticos, ou empresas operando em países democráticos, o consentimento pode ser desrespeitado e o tratamento dos dados pode ser feito de maneira equivocada —imagine se o escândalo da Cambridge Analytica envolvesse dados genéticos?

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