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Conectados e alienados: "Parasita" brilha com luta de classe high-tech

Cena do filme sul-coreano "Parasita", eleito um dos melhores do ano - Divulgação
Cena do filme sul-coreano "Parasita", eleito um dos melhores do ano Imagem: Divulgação

Matheus Pichonelli

Colaboração para Tilt, em São Paulo

07/11/2019 04h00Atualizada em 13/02/2020 10h24

Nas primeiras cenas de "Parasita", aclamado filme do sul-coreano Bong Joon Ho, dois irmãos caminham pelos corredores de uma casa com os celulares apontados para cima. Eles buscam conexão, e só encontram um wi-fi aberto perto da privada do banheiro-puxadinho de uma aberração arquitetônica que não reconhece a fronteira entre a rua e o espaço privado.

Aquele porão, no subsolo de uma rua sem saída onde uma enxurrada é pena de morte e os bêbados vão urinar ao fim do dia, é onde vive uma família sem estudo e sem ocupação num país que em 50 anos saiu da pobreza extrema e se tornou uma potência tecnológica —mas, a exemplo de tantas nações, não foi capaz de encurtar as distâncias entre vitoriosos e esfolados.

A rede aberta de wi-fi é um portal para aqueles jovens saírem do breu. Uma vez conectados, eles passam a ter acesso a um mundo de possibilidades, inclusive a de serem o que quiserem fora dali. É o que percebe Ki-Woo quando é convidado a dar aulas de inglês para a filha de uma família rica. Ele não tem formação para aquele trabalho, mas resolve isso em poucos segundos de acesso à internet numa lan house onde pode falsificar, com a irmã, todo tipo de diploma e documento.

A chegada na mansão é a alegoria perfeita da ascensão social em uma Coreia tão dividida quanto hiperconectada —para estar ali, ele sobe todo tipo de escada.

Seu novo patrão já não é o barão industrial ou o fazendeiro, mas o workaholic que trabalha como CEO de uma empresa de TI que se conecta com o filho por walk talk

parasita - Reprodução - Reprodução
Filme foi aclamado pela crítica e é apontado como um dos melhores filmes do ano
Imagem: Reprodução

Quando entra nesse mundo abastado, observa de camarote a sua família espelhada, composta por pai, mãe e um casal de filhos, com um futuro sem barreiras pela frente. Observa também a oportunidade de instalar a família toda naquela cena. Como? Trapaceando.

A mãe se transforma assim em governanta da casa após um telefonema para uma empresa forjada (pelos filhos) de empregados terceirizados. O pai se torna o motorista da família sem nunca ter dirigido um Mercedes Benz, mas esbanjando conhecimentos adquiridos num tutorial de YouTube. E a irmã se transforma em professora de arte do caçula após inventar um currículo e dizer que pretendia usar nas aulas conceitos de arteterapia, uma expressão que ela aprendeu no Google.

Veja o trailer de Parasita

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É assim que todos se instalam naquela casa, na base do trambique e fingindo não ter vínculos uns com os outros. Daí a ironia do título, "Parasita".

O que falta em uma casa sobra na outra. Em poucos minutos os novos empregados mapeiam toda a engenharia eletrônica que bota a mansão para funcionar. Os donos da casa são os donos dos equipamentos, mas não têm ideia, por exemplo, de como funcionam os sensores de luz —uma chave para entender toda a trama. É esse conhecimento que permite àquela família "parasitária" reivindicar um espaço e se apropriar da riqueza, que ela ajuda a produzir, consumindo.

A pergunta que acompanha todo o filme é: em uma sociedade fraturada entre bolhas, quem é que vive numa realidade paralela?

Naquele casarão que conecta e aliena, os donos desconhecem os porões onde vivem aqueles que magicamente acendem as luzes e fazem a casa funcionar, numa impressionante atualização tecnológica de "Downton Abbey". As entranhas do sistema de exploração são ignoradas pelo patrão-consumidor-final, e a relação fetichizada com os objetos mantém longe da vista quem os opera.

Em uma cena antológica, uma das personagens ameaça divulgar uma foto comprometedora da família num app de mensagem instantânea. Ela então se autonomeia Kim Jong-il, o ditador da vizinha Coreia do Norte que poderia acabar com a paz apertando um botão vermelho, porque a possibilidade de detonar reputações lhe dá poderes "explosivos". As vítimas do flagrante ficam com as mãos para cima diante do celular apontado contra elas e prestes a efetuar o "disparo" a qualquer momento. Todos temem o compartilhamento da "verdade".

Nessa sociedade high tech, a luz do sol também é um privilégio. O que une os lados no país do celular mais vendido do planeta são os aplicativos de comunicação e troca de conhecimento. É ali que se estabelece uma conexão entre as classes, que mal convivem fora de suas bolhas.

"Na sociedade capitalista de hoje, existem castas que são invisíveis aos olhos. Nós tratamos as hierarquias de classe como uma relíquia do passado, mas a realidade é que ainda existem e não podem ser ultrapassadas", definiu o diretor Bong Joon Ho no lançamento do filme.

Vencedor do Oscar de melhor filme, da Palma de Ouro no Festival de Cannes e do prêmio do público da 43ª Mostra Internacional de Cinema em São Paulo, "Parasita" captou, de maneira tragicômica, não só o abismo social que não parece que será resolvido com o avanço tecnológico, mas o espírito de um tempo que, entre tantas promessas de coexistência e encurtamento de fronteiras, segue fraturado, desigual, violento e mediado por desprezo e impulsos de sobrevivência.

Não é a primeira vez que o diretor sul-coreano chama a atenção para futuro high tech que grava problemas sociais, em vez de trazer soluções. Em "Okja" (2017), ele tratou das ambições corporativas por trás de uma nova espécie transgênica de superporco capaz de mudar a indústria alimentícia. A partir dos fofos animais criados em laboratório, Bong Joon Ho nos leva a repensar nosso cardápio.

Isso volta a acontecer em "Parasitas": ele não expõe a crítica social e questiona os limites da tecnologia.