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Como a briga por privacidade virou uma defesa global dos direitos humanos

Economia baseada na exploração de dados pessoais tem feito mais mal do que bem - Getty Images/iStockphoto
Economia baseada na exploração de dados pessoais tem feito mais mal do que bem Imagem: Getty Images/iStockphoto

João Paulo Vicente

Colaboração para Tilt, em São Paulo

14/08/2019 07h30

Sem tempo, irmão

  • Revolução dos dados nos faria predizer o futuro, mas isso não está contecendo como deveria
  • Concentração de dados em poucas empresas de tecnologia mina democracia
  • Informações consistentes para políticas públicas estão sendo contestadas pelo anti-intelectualismo

Num artigo de 2013, no "The New York Times", o articulista David Brooks usou o termo dataísmo para descrever uma das principais filosofias da atualidade: a crença de que a capacidade inédita da humanidade de gerar e analisar um volume gigantesco de dados nos permite compreender o mundo de forma mais precisa.

Brooks acabava o texto com uma pergunta: "A revolução dos dados está nos dando formas maravilhosas de entender o presente e o passado. Será que ela vai transformar nossa habilidade de predizer e fazer decisões sobre o nosso futuro?"

Seis anos depois, a resposta não parece ser positiva. Por um lado, o governo federal brasileiro reflete uma tendência mundial de negar informações construídas a partir de fatos sólidos por instituições gabaritadas, como quando o presidente Jair Bolsonaro afirma que não há fome no país ou refuta a expansão do desmatamento na Amazônia medido pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

Por outro, gigantes de tecnologia do setor privado abusam de dados pessoais dos seus usuários, como Google, Amazon e Facebook, de formas pouco claras e sem qualquer responsabilidade social.

"A pergunta que tem que ser feita é: de quem é essa habilidade de predizer e tomar decisões do futuro hoje? Que tipo de decisão tem sido tomada e a quem ela tem beneficiado?", diz Ricardo Abramovay, professor sênior do Instituto de Tecnologia e Ambiente da USP (Universidade de São Paulo). Especialista na intersecção entre desenvolvimento sustentável e revolução digital, ele falou sobre o assunto durante uma mesa no 4º International School of Law and Technology, evento que aconteceu recentemente em São Paulo.

Abramovay chamou atenção para como uma economia baseada na exploração de dados pessoais, principalmente por empresas ligadas à internet, tem trazido malefícios à sociedade. Não raro visto apenas como uma ameaça à privacidade, este cenário traz impactos mais profundos:

A defesa da privacidade está se transformando numa espécie de epicentro de luta global por direitos humanos

É um problema coletivo

"Quando se fala em privacidade, se pensa em uma espécie de privilégio burguês do qual queremos desfrutar para que não atrapalhem nossa vida. Não é disso que se trata, embora seja importante", explica"

Invasão de privacidade no que diz respeito a dados pessoais, aquilo em que se baseia o negócio dos gigantes digitais, tem uma dimensão coletiva muito mais importante do que a dimensão individual

Um dos exemplos mais claros disso está num dos campos de inovação tecnológicas que mais chamam atenção: a inteligência artificial (IA). Do reconhecimento facial a carros autônomos, essas ferramentas são alimentadas e calibradas por dados produzidos por pessoas --vale lembrar o polêmico FaceApp, que envelhecia fotoss e cuja política de privacidade abria margens para o compartilhamento dessas imagens com outras empresas.

"Então a principal fronteira tecnológica contemporânea está baseada numa forma de se relacionar com pessoas que violenta sua privacidade. E, mais que isso, ameaça dois valores fundamentais das sociedades contemporâneas: a autonomia de decisão dos cidadãos e a concorrência", ressalta o professor.

Com o avanço da IA, os algoritmos de empresas que têm acesso a um vasto volume de dados são capazes de antecipar o comportamento das pessoas, o que as põe em vantagem frente a outras companhias. Não à toa, Peter Thiel, um dos fundadores do PayPal, já afirmou que a competição é para perdedores, enquanto o progresso está nos monopólios.

Empresas com poder de estados

O problema é que essa concentração de poder na mão de poucas empresas tem as transformado em algo próximo de estados, cujos serviços ameaçam a própria democracia.

"Nunca na história do capitalismo moderno houve tecnologias que se apoiam na capacidade de determinar a subjetividade humana como estão sendo as tecnologias digitais", afirma o especialista. "Os efeitos disso sobre a vida cívica estão sendo terríveis."

Algoritmos usados por redes sociais e plataformas de conteúdo como Facebook e YouTube, por exemplo, priorizam temas polêmicos e com maior capacidade de interação, mesmo que eles não sejam de fontes confiáveis. Como esses mesmos algoritmos são alimentados pelos padrões de navegação dos usuários --cujo comportamento também é analisado pelos produtores desse material para criar textos e vídeos com alta poder de impacto-- o resultado é um ciclo vicioso onde quem perde é a verdade.

Onda de anti-intelectualismo

Nesse ponto, há uma conexão com outro aspecto do dataísmo: de nada adianta ter informações consistentes que auxiliaram no planejamento de políticas públicas se elas são a todo instante contestadas por uma crescente onda de anti-intelectualismo cuja base vem desse ciclo vicioso de propagação de notícias falsas.

No mesmo debate, o modo como o governo tem desqualificado de maneira sistemática estatísticas que contrariam o seu entendimento também foi pauta. Ainda antes de assumir o cargo, Bolsonaro questionou a acurácia dos dados sobre desemprego do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) --ele fez isso mais algumas vezes neste ano.

"É engraçado falar em dataísmo no momento em que vivemos um ataque generalizado a esse posicionamento, que gostaria de ancorar o debate político, econômico, o debate sobre necessidades sociais, a uma produção qualificada de dados", disse Oliveira. "E esse ambiente deixa a população também descrente. Mina a credibilidade tanto da produção de dados quanto das instituições, o que se torna muito perigoso para um país que se pretende democrático."

Autoridade independente

Como resposta a esse cenário, tem crescido um movimento ao redor do mundo que questiona a legitimidade dos gigantes que coletam e processam dados digitais. "Dentro do desenvolvimento sustentável há um termo importante que é a 'licença para operar'. Não é só uma questão legal, mas um reconhecimento por parte do público de que a empresa traz algo de útil para a sociedade", diz Abramovay:

E os gigantes digitais contemporâneos estão sob franca contestação da sociedade. Nós precisamos refletir sobre o papel deles

Além disso, conforme um número crescente de países aprova leis específicas que regulam como empresas e o próprio poder público usam dados pessoais, torna-se mais importante que legislações do tipo prevejam autoridades de controle independentes.

O Brasil criou, no começo de julho, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados. A princípio, ela estará vinculada à Presidência da República, mas ainda há dúvidas sobre a eficácia da autoridade em determinadas situações de atuação.

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