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Discurso de ódio, assassinato e pedofilia: o WhatsApp é uma nova deep web?

Atiradores de Suzano usaram o WhatsApp e a deep web para planejar o crime - Reprodução/UOL
Atiradores de Suzano usaram o WhatsApp e a deep web para planejar o crime Imagem: Reprodução/UOL

Bruna Souza Cruz

Do UOL, em São Paulo

27/03/2019 04h00

Resumo da notícia

  • O massacre de Suzano trouxe à tona o uso do WhatsApp para o planejamento de crimes
  • O serviço de mensagens também é usado para alimentar o discurso de ódio
  • Por conta disso, há quem acredite que o WhatsApp se tornou uma espécie de deep web

Duas semanas após o massacre na Escola Estadual Raul Brasil, em Suzano, que deixou um total de 10 mortos, ainda há muitas perguntas sem respostas. As investigações seguem em segredo de Justiça, mas a tragédia trouxe à tona uma complexa realidade: o uso do WhatsApp para alimentar discurso de ódio e práticas de crimes —pedofilia é um deles, como a reportagem pôde comprovar.

Policiais descobriram que os dois atiradores, que morreram na ação, e um terceiro adolescente de 17 anos, suspeito de envolvimento, trocaram várias mensagens pelo aplicativo, detalhando como o ataque poderia ser feito e as armas que gostariam de usar.

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Entenda

O fato de as conversas acontecerem de modo escondido e não ficarem expostas para qualquer pessoa acessar é o que torna o WhatsApp um grande aliado. Mas, por conta dessa eficiente camada de privacidade, há quem acredite que o app já pode ser considerado uma espécie de deep web (uma "internet profunda") de bolso.

O termo deep web ganhou força diante do massacre, mas a rede funciona há muitos anos. Em sua essência, ela faz parte da web que não é mapeável, mas que funciona de forma parecida com a "internet padrão".

Nela é possível encontrar sites, lojas virtuais e fóruns (chamados de chan). Só que tudo fica escondido dos motores de buscas —como Google e Bing— e os usuários podem acessar qualquer coisa sem a necessidade de se identificarem.

Só que é exatamente o viés privado, que protege as informações trocadas, é que faz a ligação entre o WhatsApp e a deep web existir, segundo o professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Arthur Igreja, especialista em tecnologia e segurança digital. Nenhum dos dois foi criado para "o mal". Mas algumas características comuns de funcionamento se tornaram atrativas para quem busca se esconder, como pode ser observado a seguir:

Facilitam a troca de conteúdo: Uma pessoa pode conversar direto com outra ou com grupos de usuários. É possível compartilhar conteúdos inapropriados em diferentes formatos (texto, fotos, vídeos).

Conteúdo pode ser excluído: As informações trocadas via WhatsApp podem facilmente ser apagadas se estiverem dentro do limite proposto pelo aplicativo para isso. O mesmo acontece em alguns fóruns que funcionam dentro da deep web. Em alguns casos, o conteúdo antigo é rapidamente excluído. Uma vez apagado, não será possível encontrar provas de atos ilícitos.

Privacidade: A troca de mensagens dentro do WhatsApp dá uma sensação de segurança e impunidade. Só é possível ter acesso ao conteúdo trocado via aplicativo se quem recebeu compartilhar com terceiros ou se os dispositivos envolvidos forem verificados antes de o conteúdo comprometedor ser excluído.

Sem rastros: É difícil de rastrear tudo que é feito na deep web. Por isso, dá para navegar sem se preocupar com os registros que se vai deixar durante as ações dentro dela. A criptografia do WhatsApp permite que os conteúdos trocados dentro dele não sejam acessados por ninguém de fora.

Difícil de identificar a origem de uma informação: Dependendo do caso é quase impossível encontrar o responsável pelo envio de um conteúdo. Alguns exemplos são as fakes news que circulam livremente pelo WhatsApp.

Grupos de discussão e pedofilia

O tema merece um tópico à parte. Quem já participou de grupos públicos no WhatsApp — que podem ser acessados livremente através de um link— sabe bem que algumas vezes o lugar parece terra de ninguém. Não existe controle sobre o que é compartilhado e a disseminação de conteúdo é feita de forma aleatória.

Na deep web, o funcionamento dos fóruns é bem parecido. Da mesma forma que juntam pessoas com boas intenções, podem ser usados para o tráfico de drogas, armas e planejamento de outros crimes.

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Entenda

O UOL Tecnologia fez um teste e entrou em alguns grupos públicos de WhatsApp que diziam compartilhar conteúdos da deep web. Todos eles foram encontrados em uma rápida busca feita pelo Google.

Alguns grupos já não estavam mais ativos, outros não possuíam mais que um integrante.

Mas em um deles, com 257 participantes, a reportagem pode comprovar não só a troca de conteúdos sensíveis (vídeos e fotos de pessoas mortas) como de arquivos criminosos (pedofilia).

Chamou a atenção que muitos dos números eram de fora do Brasil (alguns escreveram mensagens em português). Além disso, vários participantes usavam fotos, nome e sobrenome na descrição do perfil.

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Print de uma conversa envolvendo comentários sobre imagens de menores de idade
Imagem: UOL

No momento em que um deles compartilhou vários links de vídeos com menores de idade, alguns optaram por abandonar o grupo e criticaram o ato. Outros (vários) pediram para que mais pedofilia fosse divulgada.

Como resolver?

Infelizmente, ainda não há uma solução simples. Como pudemos ver, a situação é grave e as características das plataformas dificultam investigações e coletas de provas. Por outro lado, elas garantem a privacidade de quem as usa, o que deve ser um direito fundamental.

Para o professor da FGV, a nossa relação com a tecnologia ainda é algo muito recente e estamos lidando com problemas que certamente não foram imaginados lá atrás. Tecnologias criadas para melhorar o dia a dia de seus usuários se tornaram verdadeiras armas e de difícil combate. Por isso, o debate sobre tudo isso é importante.

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"Tem pouca gente chamando a atenção para isso. O uso do WhatsApp dessa forma é perigoso. Como que se faz uma investigação dentro dele? As mensagens não ficam salvas em servidor algum. Não tem como saber o tipo de mensagem que as pessoas estão trocando a não ser que alguém vaze", ressaltou.

Demi Getschko, diretor presidente do NIC.br, associação criada para implementar os projetos do Comitê Gestor da Internet no Brasil, concorda que o problema é complexo, mas reforça que é preciso ter cuidado ao culpar as plataformas. Para ele, nenhuma tecnologia é boa ou ruim. O uso que se faz dela, sim:

Se você usa a faca para fazer mal, a culpa não é da faca

Ele reforça que o WhatsApp se tornou uma ferramenta poderosa, principalmente no Brasil. O fato de permitir a troca de texto, arquivos e facilitar conversas em grupo faz a plataforma ser mais poderosa do que a telefonia hoje em dia.

Getschko defende ainda que a questão da criptografia não deve ser vista como a culpada. De modo geral, essa camada de segurança é um direito que deve estar acima de qualquer coisa. "Os que fazem algo ilícito dentro do WhatsApp são rastreáveis de diversas formas. Acho que é um exagero comparar o aplicativo a deep web [neste sentido]."

Na deep web não é preciso informar dados pessoais reais para entrar em sites, trocar informações em fóruns etc. Com o WhatsApp, manter o anonimato já é algo mais complexo. Lembre-se que para usar o aplicativo é preciso usar um número de telefone válido. Em geral, as operadoras de telefonia solicitam o CPF na hora de ativar o produto. Por isso, não é tão difícil identificar um usuário se o cadastro foi realizado dentro das regras.

"As tecnologias [em geral] protegem a privacidade dos bons, mas podem ser usadas também pelos não bons", concluiu Getschko.

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