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'Entre tecnologia e bom professor, escolho o segundo': as reflexões de Salman Khan, pioneiro no ensino à distância

Salman Khan, fundador da Khan Academy - Divulgação
Salman Khan, fundador da Khan Academy Imagem: Divulgação

Juan M. Zafra - The Conversation*

The Conversation*

10/10/2020 06h25

Americano fundador da Khan Academy revolucionou a forma de aprender e ensinar na escola com seu método. Nesta entrevista, ele compartilha seu ponto de vista sobre a educação e o que a pandemia nos revelou sobre ela.

"Você só precisa saber uma coisa: você pode aprender tudo."

Com base nesse lema, o americano Salman Khan, de 43 anos, revolucionou o mundo da educação ao construir um modelo que conta com 70 milhões de usuários registrados em 190 países.

A Khan Academy oferece aulas em mais de 46 idiomas, incluindo português, permitindo que os alunos aprendam em seu próprio ritmo as matérias que desejam o tempo todo.

"A educação hoje não está relacionada aos parâmetros de espaço e tempo", disse Khan em uma entrevista à revista espanhola Telos, ligada à Fundação Telefónica, na Espanha.

Confira abaixo os principais trechos.

O que a pandemia covid-19 nos ensinou?

Muitas coisas. Ela nos ensinou que devemos nos preparar para as eventualidades e para as coisas que os cientistas dizem que acontecerão em dez, 20 e até 100 anos.

Há várias décadas que nos alertam sobre a possibilidade de uma pandemia, mas quando as coisas vão bem é muito fácil ignorar os avisos e acreditar que nada de mal vai acontecer ou que, se acontecer, será superado.

Vários países da Ásia lidaram melhor com a covid-19 porque já haviam passado pela Sars (Síndrome Respiratória Aguda Grave) e Mers (Síndrome Respiratória do Oriente Médio) e, portanto, se preparado para a pandemia seguinte.

Do ponto de vista econômico, a covid-19 mostrou que a tecnologia, com todo o poder que tem para se disseminar com igualdade, com todas as oportunidades de ganhar dinheiro que gera e de nos tornarmos mais produtivos, também traz riscos.

A pandemia revelou que as pessoas que não têm acesso à tecnologia correm o risco de ficar cada vez mais para trás.

Somos capazes e temos sorte de poder trabalhar e manter nossos empregos graças à tecnologia, enquanto outros setores estão passando por um momento muito ruim: turismo, hotelaria, indústria...

No que diz respeito à educação, que tipo de lição aprendemos?

A pandemia de covid-19 nos ensinou que devemos permitir que as pessoas aprendam no seu próprio ritmo.

Aprender mais devagar não significa que você não seja inteligente; existem muitas pessoas que aprendem mais devagar porque querem aprender mais profundamente.

Devemos dar às pessoas a oportunidade de atender às suas necessidades de aprendizagem em seu próprio ritmo, porque somos diferentes.

Além disso, existem várias maneiras de adquirir as habilidades necessárias hoje: há alunos que precisarão frequentar a sala de aula, outros que poderão aprender online e um terceiro grupo cuja aprendizagem misturará esses dois elementos.

Qual é a principal contribuição da Khan Academy para o mundo?

Vou lhe dizer o que quero que seja nossa missão: a Khan Academy é uma organização sem fins lucrativos que oferece educação gratuita para todos, em todos os lugares.

Acreditamos que todo conhecimento deve ser acessível e que deve estar à disposição de todos de acordo de acordo com suas necessidades e disponibilidade; acreditamos na aprendizagem personalizada.

Além disso, deve haver uma forma de validar e conectar todo o conhecimento com as oportunidades que existem no mundo.

O que é relevante em nosso modelo não é a tecnologia. O mais importante é o professor, e se existe uma escolha entre a tecnologia e um bom professor, eu escolho o último.

É por isso que temos toda a tecnologia à disposição do professor; a tecnologia é útil se contribui para o serviço que o professor presta aos alunos.

Quais são os principais desafios da educação no mundo hoje?

Destaco a necessidade de alcançar todos os estudantes, motivá-los, também dar suporte aos professores, que nem sempre possuem a formação e as ferramentas para dar conta das carências individuais de todos os seus alunos.

A exclusão digital é, na minha opinião, o maior problema que enfrentamos.

A pandemia de covid-19 nos ensinou claramente que, para estudar à distância, o acesso à internet é vital. Também requer recursos, como equipamentos e dispositivos, por meio dos quais você poderá aprender.

As famílias precisam estar conectadas à nova economia global; pessoalmente, também precisamos estar conectados para a saúde mental, para estar próximos da família e dos amigos, para viver o momento.

O outro grande desafio da educação é combinar suas capacidades com as habilidades que os alunos realmente precisam aprender hoje.

Qual é o objetivo da educação na sala de aula?

As salas de aula devem servir para otimizar o relacionamento humano. Elas tinham um papel central na educação; eram o lugar onde adquiríamos conhecimento, socializávamos e obtínhamos o nosso desenvolvimento acadêmico.

Hoje, o aprendizado não está vinculado ao tempo e ao espaço.

Temos a oportunidade de analisar o que funciona nesse espaço e o que podemos desenvolver fora dele.

Sendo assim, a chave é otimizar o tempo em sala de aula, promovendo o contato interpessoal e, sobretudo, evitando velhas práticas em que um professor dá sua aula enquanto os alunos têm que ficar totalmente calados.

Em vez disso, ele deve elaborar perguntas, fazer os alunos refletirem e se interessarem pelos assuntos, encorajá-los a trabalhar em grupos e a conversar.

Como deve ser o ensino nas instituições tradicionais?

Trata-se de tornar a experiência educacional muito mais envolvente.

Não faz sentido um professor apenas dar uma aula de uma hora e toda interação com os alunos é fazer perguntas, muitas perguntas. Isso não é atraente para professores ou alunos.

Quais qualidades um professor deve ter hoje?

A primeira, e digo isso a mim mesmo e a todos os que trabalham comigo, é ter paixão pelo conhecimento; e você deve ter paixão pelos alunos.

Acho que a maioria dos professores tem essa paixão porque, se não tiverem, os alunos vão se dar conta disso e também não vão ter paixão pelo conhecimento.

Cada matéria que aprendemos pode ser verdadeiramente fascinante e quando um professor tem paixão, quando vê beleza na matéria, é contagiante.

Tem sido esse o trabalho por décadas, por centenas e centenas de anos, por pessoas muito, muito inteligentes que fariam qualquer coisa para ter o conhecimento que temos hoje à nossa disposição.

Se um professor tem paixão e esquece a rigidez da ementa curricular, ele se conectará com os alunos. Obviamente, você também precisa conhecer profundamente o assunto com o qual vai lidar.

Como devemos avaliar o trabalho dos alunos hoje, com um modelo de aprendizagem sempre disponível?

Essa questão tem a ver com o que falamos sobre o modelo de aprendizagem.

Devemos criar um sistema flexível, em que existam provas em diversos formatos, escritas ou orais, e dar oportunidade àqueles que não foram bem-sucedidos nelas para que não se frustrem e continuem a tentar.

Na Khan Academy, desenvolvemos um sistema no qual os alunos têm todas as oportunidades de que precisam para dominar o assunto, todas as práticas que precisam para dominar o assunto e também têm todas as provas de que precisam até verificar se realmente dominaram o assunto.

O que o senhor diria a uma pessoa que tem 50 anos e quer voltar a estudar?

Bem, depende de suas necessidades, mas eu começaria buscando um curso que oferece mais flexibilidade, com aulas remotas. Isso será muito valioso mesmo depois da pandemia de covid-19.

Além disso, você deve considerar que existe um mundo inteiro para o qual você tem algo a oferecer; algo para oferecer a outras pessoas, algo que você sabe que pode ensinar e, mesmo que não seja um profissional da educação, pode encontrar maneiras de ensinar essas habilidades às pessoas.

Agora, mais do que nunca, com a covid-19, famílias e jovens procuram alguém que lhes ensine novas habilidades e se você puder ensinar com uma câmera de vídeo, terá um mercado global para se desenvolver.

Se ensinar não é para você, eu olharia para aqueles setores que estão crescendo rapidamente: obviamente, o setor de tecnologia é um deles, mas existem muitos outros.

Para entrar nesses setores, você precisa ter conhecimento sobre eles e as habilidades que requerem. Repito para as pessoas onde quer que estejam: pergunte, pergunte muito, converse com todos que você conhece, pergunte às pessoas. Pessoas gostam de dar conselhos, pergunte às pessoas o que elas recomendariam para você, quais são os setores que estão contratando pessoas, quais são os mais resistentes à contratação...

E então, praticamente tudo pode ser aprendido com a combinação de recursos online e oferta local ou centros educacionais locais. Resumindo, acho que você pode ir muito longe.

E o que o senhor recomendaria a um jovem recém-saído da faculdade?

O que digo aos jovens é que eles vão encontrar trabalho, mas não devem escolher um emprego por causa do salário, mas sim buscar algo que lhes permita aprender mais; onde terão mentores; onde poderão desenvolver um conjunto de habilidades.

Cada jovem é diferente, cada um tem seus pontos fortes e também seus pontos fracos, mas o mais importante, o que eu diria a quem tem que decidir o que estudar na universidade é: converse com muita gente, pergunte às pessoas a seu redor sobre quais áreas estão crescendo e como você pode adquirir as habilidades necessárias.

Educação global, aberta e gratuita... Aonde isso nos leva?

Espero que leve a humanidade para um próximo patamar. Um contexto em que cada um seja capaz de desenvolver o seu potencial ajudará muitas pessoas a participarem na economia global, de forma a servir para combater a marginalidade e a exclusão.

Pessoas historicamente marginalizadas descambam para o extremismo.

Acho que com um modelo educacional global teremos mais estabilidade social, teremos mais pessoas participando, teremos uma sociedade mais acessível.

Por exemplo, com uma educação aberta e acessível, a pesquisa contra o câncer pode ser multiplicada e enriquecida, ou dez vezes mais Marie Curie (física polonesa naturalizada francesa que conduziu pesquisas pioneiras no ramo da radioatividade) podem surgir no mundo.

É uma época muito emocionante para se viver, porque nas próximas décadas seremos capazes de dar educação global gratuita a todos.

Como o senhor vê o futuro a curto prazo?

O ano que vem vai ser muito, muito difícil. Tendo a ser otimista, mas a verdade é que covid-19 está expondo as desigualdades que existem em todas as sociedades.

Trabalhar para fazê-las desaparecer será nosso desafio.

A parte positiva é que a pandemia vai acelerar algumas mudanças e nos levar a um patamar melhor.

Professores de todo o mundo se familiarizarão com a tecnologia e será mais fácil para eles implementá-la a partir de agora.

As pessoas estão se fazendo muitas perguntas, perguntas muito boas, sobre o futuro e sobre a tecnologia: de que forma podemos usá-la e quais são as mais adequadas para atingir os objetivos.

Como resultado, podemos estar testemunhando um momento em que novos modelos mais eficazes estejam surgindo.

O futuro imediato será muito difícil, enquanto durar a covid-19 e existirem desigualdades, mas acredito que, depois da pandemia, tudo vai melhorar.

Como é esse futuro que o senhor está ajudando a construir?

Acho que estamos no caminho certo.

Estamos nos superando a cada dia e milhões de pessoas usam a Khan Academy. Mas ainda podemos alcançar muito mais gente - são bilhões vivendo no mundo. Me sinto um felizardo de poder dedicar minha vida a esta missão, poder trabalhar com pessoas incríveis e receber doações de voluntários para sermos capazes de atingir nossos objetivos.

*A versão original desta entrevista foi publicada no número 114 da Revista Telos da Fundação Telefónica 5. O entrevistador Juan M. Zafra é professor associado do Departamento de Jornalismo e Comunicação Audiovisual e diretor da Revista Telos, Universidade Carlos III (Espanha).


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