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O refugiado que escreveu livro por WhatsApp e ganhou o maior prêmio literário da Austrália

Livro de Boochani, que ganhou prêmio principal e de não-ficção do Victorian Prize for Literature - Divulgação
Livro de Boochani, que ganhou prêmio principal e de não-ficção do Victorian Prize for Literature Imagem: Divulgação

Kevin Ponniah - BBC News

01/02/2019 09h57

Detido após tentar entrar na Austrália de barco, Behrouz Boochani enviou texto por mensagens de WhatsApp a partir de centro de detenção em ilha do Pacífico; ele não pode comparecer a cerimônia

Um jornalista e requerente de asilo detido durante anos pela Austrália em uma ilha do Pacífico recebeu nesta quinta-feira o mais importante prêmio literário do país.

Behrouz Boochani, um curdo iraniano, escreveu No Friend But the Mountains: Writing from Manus Prison (Nenhum Amigo Além Das Montanhas: Escrevendo da Prisão de Manus, em tradução livre).

O livro de Boochani venceu o Victorian Prize for Literature de 2019, no valor de 100.000 dólares australianos (R$ 256 mil, na cotação atual).

Boochani permanece na ilha Manus, em Papua-Nova Guiné, e não tem permissão para entrar na Austrália.

O polêmico centro de detenção de imigrantes no qual ele foi mantido foi fechado no final de 2017. Boochani e centenas de outros internos foram transferidos para "acomodações alternativas".

A Austrália tem uma política rigorosa sobre os requerentes de asilo que chegam de barco, assegurando que eles nunca serão reassentados no país, mesmo que sejam considerados oficialmente refugiados. O governo australiano defende que suas políticas são necessárias para impedir tentativas perigosas de chegar ao país por via marítima.

Juntamente com o prêmio geral, No Friend But the Mountains também ganhou na categoria de não-ficção do mesmo evento, recebendo outros 25.000 dólares australianos (R$ 66 mil).

Falando à BBC da ilha Manus - na noite em que seus colegas de premiação estavam celebrando em Melbourne -, Boochani disse que esses reconhecimentos deram a ele "um sentimento muito paradoxal".

"De certa forma estou muito feliz porque somos capazes de chamar a atenção para esse problema e você sabe que muitas pessoas se conscientizaram dessa situação, o que é ótimo. Mas, por outro lado, sinto que não tenho direito de celebrar, porque tenho muitos amigos aqui que estão sofrendo neste lugar."

"[A] primeira coisa para nós é conseguir a liberdade, sair desta ilha e começar uma vida nova."

WhatsApp

O livro foi escrito em farsi durante os anos em que Boochani foi mantido no centro de detenção, principalmente por meio de mensagens do WhatsApp enviadas a seu tradutor, Omid Tofighian.

"O WhatsApp é como meu escritório", ele disse. "Eu não escrevia no papel porque naquela época os guardas a cada semana ou a cada mês atacavam nosso quarto e remexiam nas nossas coisas. Eu estava com medo de perder meus textos, então era melhor escrevê-los e enviá-los."

Boochani, que foi detido pela primeira vez em 2013 após chegar de barco do sudeste da Ásia, tornou-se a voz mais conhecida do controverso sistema de detenção offshore da Austrália.

Ele escreve regularmente para o jornal britânico The Guardian, tuíta prolificamente sobre a vida em Manus e discute online com defensores das duras políticas migratórias da Austrália. Ele até filmou e codirigiu um documentário - Chauka, Please Tell Us The Time (Chauka, Por Favor Nos Diga a Hora, em tradução literal) de dentro da detenção. Mais uma vez, ele usou seu telefone para trabalhar.

No ano passado, os Estados Unidos concordaram em reassentar alguns dos refugiados do centro de detenção de Manus e da ilha de Nauru, na Oceania. Mais de 100 refugiados já foram transferidos, mas Boochani ainda está esperando por mais informações depois que fez uma entrevista com autoridades americanas há alguns meses.

Ele recebeu o status de refugiado em Papua-Nova Guiné, mas, como muitos de seus colegas, não quer ficar lá.

Boochani disse que decidiu fugir do Irã após ter problemas com as autoridades por causa de seu jornalismo: "Eu não queria ir para a prisão no Irã, então saí e, quando cheguei à Austrália, eles me colocaram na prisão por anos".

Elogios ao livro

Os juízes do prêmio de literatura descreveram o livro como "uma impressionante obra de arte e de teoria crítica que escapa à simples descrição".

"Formações narrativas distintas são usadas, da análise crítica à descrição densa, à poesia e ao surrealismo distópico", disseram. "A escrita é bela e precisa, misturando tradições literárias que emanam de todo o mundo, mas particularmente de dentro das práticas curdas."

As regras de inscrição para o Victorian Prize for Literature estipulam que seus participantes devem ser cidadãos australianos ou residentes permanentes. No entanto, o Wheeler Center, que administra os prêmios de literatura, aceitou a recomendação de seus juízes e abriu uma exceção para o livro de Boochani.

As políticas de refugiados da Austrália foram amplamente exibidas pela imprensa mundial e criticadas pela ONU e pelos grupos globais de direitos humanos, embora alguns políticos europeus as tenham elogiado.

Mas Boochani quer que os leitores de seu livro entendam o que ele diz ter sido uma tentativa "sistemática" de tirar dos refugiados e requerentes de asilo sua "identidade, humanidade e individualidade".

"Nós não somos anjos e não somos maus", ele disse. "Somos humanos, simples humanos, somos pessoas inocentes."