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'Tínhamos que fugir' - a Somália tenta escapar do calor extremo

26/10/2021 06h55

Hargeisa, Somália, 26 Out 2021 (AFP) - Primeiro morreram as ovelhas, depois as cabras. Quando seu único camelo morreu, Yurub Abdi Jama sabia que sua vida como pastora tinha acabado e se somou ao êxodo, trocando seu povoado pela cidade.

Seus ancestrais no norte da Somália foram pastores por gerações, nascidos em terra árida e acostumados com as secas. Mas não suportaram a brutal seca final, que queimou a terra e acabou com seus animais.

"No passado, Deus sempre nos deixava alguma coisa, mas agora (...) tivemos que fugir. A gente vai aonde pode quando perde tudo", contou Jama, agachada em frente ao casebre onde mora hoje, a centenas de quilômetros das colinas estéreis nos arredores da cidade de Hargeisa.

Jama é uma migrante climática, como outras dezenas de milhares que se deslocam na Somália. Neste país, os extremos do clima levam ondas de pastores e de agricultores a abandonarem a terra rumo a cidades mal preparadas para recebê-los.

Nos últimos anos, os desastres ambientais, e não os conflitos, foram os causadores dos deslocamentos na Somália, um país devastado pela guerra no Chifre da África, que está entre os mais vulneráveis do mundo às mudanças climáticas.

As secas intensas e frequentes e as inundações provocaram o deslocamento de três milhões de somalis desde 2016, segundo dados da ONU.

O fenômeno esvaziou áreas rurais do interior da Somália e formou grandes acampamentos na periferia das cidades, lotados de migrantes desesperados.

- Grande mudança - A maioria, como Jama, chega sem nada e perambula na miséria.

Ela deixou sua casa na área rural perto de Aynabo rumo a Hargeisa, uma cidade desconhecida a 260 km.

Sem dinheiro, refugiou-se com outros recém-chegados em um acampamento improvisado fora da cidade, onde construiu um casebre com paus e trapos para morar com seu marido e os oito filhos do casal.

A família de pastores carecia de habilidades para ganhar a vida na cidade, onde abundam o desemprego e a pobreza, e as mulheres pedem esmola nas esquinas.

Ao amanhecer, o marido de Jama sai em busca de trabalho. Na maioria das vezes, volta de mãos vazias.

"Não ganho quase nada na cidade", lamenta Uba Adan Juma, que se mudou para o local há três anos, quando suas cabras morreram em uma seca, e agora luta para sustentar a família.

As duas mulheres são de Somalilândia, empobrecida região noroeste onde as mudanças climáticas transformaram a vida dos moradores.

Comunidades de pastores costumavam nomear as grandes secas que ocorriam a cada década.

"Mas agora isso mudou. As secas são tão frequentes que não têm nome", disse à AFP a ministra regional do Meio Ambiente, Shukri Haji Ismail.

Ela contou que o país de sua juventude era exuberante, coberto de savanas e árvores frutíferas, e povoado por aves e outros animais nativos.

Um mapa em seu escritório ilustra a dura realidade atual: trechos em vermelho indicam a terra devorada pelo deserto crescente, um flagelo que se estende da Etiópia ao Golfo de Áden.

"A Somalilândia experimenta, literalmente, as palavras mudanças climáticas", afirmou.

"Não se trata do que pode acontecer. Está aqui, está ali, estamos vivendo isso (...) Nosso povo realmente tem sofrido", disse.

- Sem ter aonde ir - A Somália viveu duas temporadas seguidas com chuvas abaixo da média, e a terceira está a caminho.

As colheitas foram perdidas, e a rede de Alerta Precoce de Fome avisou em agosto que a fome se agravará no fim do ano, com 3,5 milhões de pessoas em necessidade.

Enquanto isso, a chuva que cai pode ser mais uma maldição do que uma bênção.

A Somália sofreu grandes inundações em 2020, com a maior tempestade tropical que atingiu o país desde que se tem registro.

A previsão é de que a chuva se torne mais errática e extrema na Somália nos próximos anos, acelerando o êxodo para as cidades e os conflitos por recursos escassos, alertou Lana Goral, da Organização Internacional para as Migrações (OIM).

"É uma perspectiva sombria", comentou Goral, especialista em mudanças climáticas e migração na Somália.

Sem recursos, os governos do país não têm como fazer frente à crise.

Algumas autoridades têm proposto transferir as comunidades afetadas para o litoral, quando a vida pastoral se torna insustentável.

"Mas leva tempo mudar a mentalidade das pessoas", afirmou Shukri.

Hassan Hussein Ibrahim, da organização Save the Children, admitiu que o tempo não está a seu favor.

A entidade atende 11.000 famílias em Somalilândia com pagamento em dinheiro, mas muitos precisam de capacitação para começar de novo.

"Eles também terão que se adaptar", disse à AFP.

Para Jama, é mais fácil falar do que fazer.

"A seca nos fez sair", lembrou a mulher de 35 anos, com a cabeça apoiada nas mãos. "Nunca teríamos deixado essa vida, uma vida que amamos".

Em uma visita recente ao seu povoado, em busca de parentes, Jama encontrou um vazio fantasmagórico, sem gente, gado, nem sinais de vida.

Os captadores d'água estavam cheios, mas não havia ali nem pessoas nem animais para bebê-la.

"A vida aqui é difícil também", diz, referindo-se à cidade. "Mas aonde mais posso ir?", questiona.

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