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WhatsApp se torna um campo de batalha no conflito no Mali

Jihadistas estão recrutando pelo Whatsapp. - Dado Ruvic/Reuters
Jihadistas estão recrutando pelo Whatsapp. Imagem: Dado Ruvic/Reuters

Da AFP, em Bamako

09/11/2019 15h37

Uma verdadeira guerra digital é travada no Mali, juntamente com um conflito jihadista que já tirou milhares de vidas: é a luta para influenciar as mentes jovens e o campo de batalha é o telefone celular.

"Os jihadistas de hoje estão recrutando pelo Whatsapp. Temos que parar o derramamento de sangue", afirma Hama Cisse, um imã moderado do centro do Mali em guerra.

Desesperados, os religiosos explicam que os sermões transmitidos pelo aplicativo de celular pelo jihadista Amadou Koufa fazem com que jovens da comunidade étnica Fulani se juntem a eles.

O imã conhece Koufa há anos. Nos anos oitenta, estudaram o Alcorão juntos e lembra-se de um homem que recitava poemas de amor em troca de algumas moedas.

Muito mais tarde, depois de concluir sua educação religiosa no exterior, Koufa se reinventou como radical, pregando uma versão rígida do Islã.

Com oratórias refinadas e o uso de velhos ressentimentos contra as elites, sua mensagem foi diretamente ao coração de muitos jovens Fulani, também chamados de "peúles", cuja comunidade de pastores há muito tempo luta contra a pobreza e o estigma.

Ele canalizou essa mensagem mantendo-se atualizado com a tecnologia.

Seus sermões, que antes eram transmitidos por rádio e depois distribuídos por cassetes de áudio, agora são transmitidos pelo Whatsapp, convertidos em um tipo de sistema de rádio dessa região que sempre teve uma grande tradição oral.

Em um país onde quase todo mundo tem um telefone celular e onde o acesso à Internet aumenta, a propaganda jihadista se espalha como um incêndio nos cantos mais isolados.

Muitos na comunidade Fulani conhecem um jovem atraído pelas fileiras dos Macina, milícia responsável pelos banhos de sangue no centro de Mali. Além do crescente número de mortos, centenas de milhares de pessoas fugiram de suas casas e centenas de escolas fecharam, enquanto os professores fogem dos jihadistas.

Muitos responsabilizam os Fulani como um todo, pois há atritos de longa data entre esse grupo de pastores e agricultores sedentários. Atualmente, atos de vingança contra essa comunidade se tornaram um elemento trágico quase diário.

A estratégia de divisão e provocação utilizada pelos jihadistas é antiga, mas as táticas são implacavelmente modernas.

A tecnologia digital está sendo utilizada para o recrutamento. Fotos de cadáveres ou aldeias em chamas e vídeos de confrontos com o exército são as armas usadas para convencer e escandalizar.

O contra-ataque dos moderados

Por medo das represálias, Hama Cissé ficou em silêncio por um longo tempo. Ameaçado em várias ocasiões, o imã não põe os pés em Mopti, sua terra natal, desde 2016. Mas aos 55 anos, não quer mais dar aos jihadistas o monopólio da palavra.

O religioso faz regularmente transmissões de rádio da capital, Bamako, na estação de rádio Fulani Tabital Pulaaku, e seus programas são imediatamente transmitidos via Whatsapp.

Em uma intervenção neste ano durante o Ramadã, o mês de jejum e oração dos muçulmanos, Cisse apontou diretamente para Koufa e aqueles que "reprimem suas palavras".

"Ele disse que antes de vir, Macina [região no centro do Mali] não era islâmica, que antes que ele aparecesse tudo era escuridão. Eu disse a ele que ele não trouxe o Islã para Macina; ele trouxe os wahhabis, e isso não é a mesma coisa", afirmou Cisse, referindo-se ao ramo radical do Islã inspirado na Arábia Saudita.

"Alguns dias depois, Koufa deu uma resposta muito difícil. Claramente, ele estava com raiva", acrescentou.

Outros que aderiram à luta afirmam não ter uma posição religiosa, mas simplesmente desejam acabar com um tabu de silêncio que cresceu com o aumento dos jihadistas.

Um deles é Ousman Bocoum, 36, que vende saias de tecido em um mercado em Mopti.

O comerciante, vestido com impressionante extravagância, passa seu tempo livre pesquisando na Internet sermões que distorcem o Islã e os sinaliza para seus contatos, que os publicam em grupos de WhatsApp e Facebook.

"Eu explico o que o Alcorão realmente diz", disse Bocoum. "Cada pessoa está em pelo menos uma dúzia de grupos diferentes no WhatsApp, as pessoas encaminham as mensagens e eu geralmente tenho uma resposta em meia hora".

Muitas dessas reações são insultos ou ameaças, mas geralmente existem trocas úteis.

"Minha fé me levou a agir", afirma Bocoum, que foi recebido por congressistas americanos em visita a Washington em julho.

"Eu não luto contra eles, só quero que voltem a raciocinar", acrescenta.

No ano passado, disse, ele organizou um "debate" com os homens de Koufa e Mopti. "Eles aceitaram, mas então, no último momento, Koufa emitiu uma mensagem proibindo que viessem. Ele estava preocupado com sua segurança".

Essa falha ilustra um dos problemas de encontrar um terreno comum por meio do diálogo, uma abordagem adotada em junho pelo grupo de especialistas do Internacional Crisis Group (ICG), mas rejeitada pelo governo de Bamako.

De volta ao arado?

Bocum também explora um caminho inovador para "desconstruir" a retórica dos jihadistas para torna-la menos atraente para os jovens.

Em março, estabeleceu um grupo em Mopti chamado Associação de Pregadores para a Preservação da Unidade e Paz Social.

O objetivo é recorrer a médicos ou professores tradicionais em aldeias que não são tentados pela ideia de colaborar com Koufa e estão dispostos a oferecer às crianças uma educação corânica moderada.

Em troca, a associação forneceria apoio agrícola aos pobres e às escolas corânicas: cada aldeia do programa reservaria cinco hectares para esse fim.

Dessa forma, as famílias que vivem em áreas rurais que foram de fato abandonadas pelo Estado recuperariam a confiança em seu futuro, e um círculo vicioso se tornaria virtuoso, segundo Bocoum.

E talvez assim os recrutas de 'jihad' voltassem para casa.

"Os pais conversariam com os filhos, os tios conversariam com os sobrinhos, convencendo-os a voltar para suas casas e cultivar seus campos", completou.