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Escola usa linguagem da quebrada para ensinar programação para jovens

Victória usa o computador da mãe para ter melhor aproveitamento das aulas de programação - Murilo Roberto
Victória usa o computador da mãe para ter melhor aproveitamento das aulas de programação Imagem: Murilo Roberto

Tamires Rodrigues

09/09/2020 04h00

A partir da vivência dos jovens das periferias e favelas de São Paulo, escola pensada por moradores da quebrada pretende ensinar programação de maneira humanizada e não tecnicista.

A Mais1code é uma escola de programação que traz novas metodologias para adaptar as vivências de alunos da quebrada ao ensino de linguagens de programação. Ensinar eles a codificar seus sonhos através de algoritmos é um dos principais propósitos da escola.

Uma das alunas da Mais1code é Victória Silva, 20, graduanda do sexto semestre do curso de moda. Ela é moradora de São Mateus, periferia da zona leste de São Paulo. Devido a pandemia de covid-19, ela está com a família em Serrana, interior de São Paulo. Ela conheceu a Mais1code por meio do curso de inglês da Plt4Way, um projeto que oferece bolsa de estudos 100% gratuita para jovens e adultos da periferia a cada três alunos pagantes.

"Eu tenho um projeto de ir para Austrália em 2022, e trabalhar com programação gera oportunidade no mundo todo, né? E é uma área que não precisa ter um inglês avançado. Aí pensei: é minha oportunidade de entrar em um país e já ter um emprego", diz.

Segundo ela, há uma distância entre a linguagem computacional e as vivências de uma jovem da periferia, mas esse cenário mudou com a Mais1code. "A escola colocou: 'a primeira mulher programadora'. Isso foi uma chamada muito forte, incentivando jovens da quebrada, principalmente mulheres, a entrarem nesse ramo. Eu falei: 'wow, realmente isso é para mim!' Foi aí que se concretizou todo o interesse".

A Mais1code tem uma metodologia de ensino chamada 'peer-to-peer', onde o aluno tem acesso a um professor voluntário para realizar uma ou duas aulas por semana e suporte diário da equipe da escola de programação.

Essa metodologia de ensino, com um mentor particular, ajudou na melhor compreensão dos termos e diminuiu as dificuldades de aprendizado. "Às vezes a gente fica duas horas e ainda é pouco, porque é muita coisa. Um mentor para cada pessoa é maravilhoso, porque ele te dá total atenção", diz Victória.

Uma das principais barreiras encontradas por Victória é a compreensão de termos técnicos. "Minha maior dificuldade é absorver todos os códigos, tem alguns que eu já fui absorvendo porque uso muito", diz.

Victória já colocou em prática algumas técnicas que aprendeu. "Você olha para um site e não imagina que tudo aquilo são números e códigos. Através de números eu fiz meu primeiro site, bem simples, mas você olha e é um site", afirma.

Todos os projetos que ela pensou ao longo do curso são voltados para uma das suas paixões: a moda. Assim, ela já pensa em "prototipar" e programar seu próprio e-commerce. No entanto, o acesso a equipamentos como um notebook de qualidade ainda é um impedimento para ela sonhar cada vez mais alto.

Hoje, ela utiliza o notebook da sua mãe, que está morando no interior de São Paulo durante a pandemia. Sem acesso a um computador com boas configurações, Victória teve muitas dificuldades para baixar alguns programas essenciais para o curso. "Não consegui baixar alguns programas e fiquei mais ou menos duas semanas sem ter aulas", diz.

Victória também se preocupa com o momento que irá voltar para a sua quebrada após o fim da pandemia e a dificuldade que terá para ter acesso a um bom computador para os estudos. "Não sei como eu vou fazer", afirma.

Programação com linguagem de quebrada

Um mês foi o tempo para os fundadores da Mais1code, Diogo Bezerra, 27, morador do Jardim Brasil, e Tauan Matos, 26, do Tucuruvi, em São Paulo, tirarem a ideia do papel e dar forma à escola de programação, que atualmente tem 24 mentores e 24 alunos. Em outubro, o projeto abrirá novas turmas.

Os jovens interessados podem fazer o cadastro gratuitamente no site para participar de formações focadas em linguagens de programação, banco de dados e design.

A ideia de construir uma escola de programação voltada para alunos da quebrada surgiu da inquietação de Diogo Bezerra, criador da Plt4Way, onde estuda Victória. Um jovem da sua rede de alunos pediu referências de cursos de programação. Diogo passou a pesquisar e entender que a pedagogia e a cultura de ensino dos cursos de programação não dialogavam com a cultura de um jovem da periferia.

"Eu fui atrás para saber se havia alguma coisa e só encontrei nos grandes centros", conta Bezerra. Nesse momento, ele entendeu que o conhecimento de programação ainda não estava disseminado em sua quebrada e em tantas outras. "Não tem nem comunicação para nós, querendo chegar até nós".

A partir dessa inquietação de não pertencimento de um jovem de quebrada na área de tecnologia, ele e outros amigos resolveram criar a sua própria escola de programação, onde a comunicação é voltada para seus alunos, a partir da suas próprias vivências. "Nós somos o nosso público-alvo. Isso facilita muito na comunicação, no jeito que nós falamos".

Os empreendedores relatam que uma das suas maiores dificuldades é a falta de acesso dos alunos à infraestrutura, como acesso à internet e notebook. "Temos jovens sem condições, alguns têm internet, mas não têm computador", diz Tauan. Para ajudar esses alunos, a Mais1code articula doações de notebook, no entanto, o cenário de pandemia dificultou a ação. "Esse momento é um pouco complicado, porque tira a oportunidade desse jovem que não tem internet nem computador", acrescenta.

A preocupação que os fundadores tiveram para trazer acessibilidade de equipamentos para o aluno assistir a aula é a mesma em relação ao processo de aprendizagem, onde eles entenderam que ter apenas um mentor seria o melhor caminho para ampliar o desenvolvimento e a compreensão dos termos técnicos entre os alunos.

"Facilita muito o desenvolvimento dele e a chance de aprender, o que faz ele se identificar muito mais rápido, do que se tivesse num grupo de pessoas de diferentes níveis. Ele ou ela ficaria frustrado por estar nessa área e não conseguir aprender no mesmo nível que o amiguinho", diz Diogo.

Para a dupla de amigos e empreendedores que criaram a Mais1code, a metodologia de ensino de cursos de programação precisa ter uma linguagem que possibilite que a quebrada se identifique. "Uma programação com linguagem de quebrada é uma linguagem humanizada".