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OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O que está em jogo para a quebra de patente da vacina contra a covid-19?

Fernando Zhiminaicela/ Pixabay
Imagem: Fernando Zhiminaicela/ Pixabay

Durante crises sanitárias, há um clamor público para que os políticos façam coisas para curar todos. Nessas horas, a aparência de que algo está sendo feito é tão importante para o político que a eficácia real da medida acaba irrelevante para análise. Entre distribuição e autorização de drogas "milagrosas" mas não comprovadas, leis exigindo infraestrutura inexistente na canetada e aquisições emergenciais, brados por quebra de patentes acabam fazendo parte da performance política.

Apontar para indústria farmacêutica como bode expiatório e "inimigo do povo" é sedutor. Importar esse sentimento para o cenário de propriedade intelectual é um passo fácil e, em certa medida, até justificável, uma vez que indústrias farmacêuticas às vezes abusam do sistema. Mas é preciso evitar consequências desastrosas causadas por resultados impensados.

Patentes existem para corrigir uma falha no mercado de ideias.

Empresas que investem em inovação têm vantagens competitivas quando o investimento resulta em produtos e serviços de maior qualidade. Essas firmas obviamente desejam proteger esse investimento. Em um mundo sem patentes, essa proteção só vai ser possível através do segredo, o que acaba sendo ruim ao dificultar a divulgação das novidades e inviabilizar possibilidade de colaborações entre corporações distintas.

O sistema de patentes transforma ideias em algo negociável, ao dar garantia estatal de exclusividade por um período limitado. O quiproquó é que o inventor precisa ensinar a invenção para a sociedade.

Pintada a paisagem, enfiar as empresas farmacêuticas nesse quadro é complexo.

O investimento no desenvolvimento de drogas costuma receber um aporte significativo do Estado, o que nos leva a questionar se patentes concedidas às farmacêuticas não seriam ilegítimas.

Essa visão, a meu ver, demonstra um pouco de falta de perspectiva.

O investimento estatal é crítico para a descoberta de novos remédios e tratamentos. Mas o processo que leva da pesquisa básica ao tratamento é extremamente custoso. É preciso fazer estudos de segurança, e eficácia, descobrir quais são as formas e doses mais eficazes, entender o perfil dos médicos e pacientes envolvidos na terapia para garantir que o remédio se encaixa.

Esse processo é financiado pelas indústrias farmacêuticas. É inegável que a concessão de patentes privadas que derivam de pesquisa estatal é uma forma de subsídio, mas está muito longe de ser um problema crítico. No fim das contas, a sociedade precisa que farmacêuticas invistam nos estudos clínicos.

A parte mais complexa do quadro é saber se as indústrias estão se adequando às regras do jogo.

Patentes exigem que o inventor ensine a sociedade, mas elas nem sempre cumprem esse papel. Além disso, farmacêuticas se utilizam de subterfúgios legais para estender o direito de exclusividade.

Controlar esses abusos é algo que pode e deve ser feito pelas agências de propriedade intelectual.

O congresso brasileiro, ao invés de gritar "break all the patentes" poderia revisar a legislação de propriedade intelectual no Brasil e autorizar o INPI (Instituto Nacional da Propriedade Industrial) a recusar emissão de patentes potencialmente abusivas. Eliminar patentes inadequadas ou abusivas que violam o quiproquó básico seria um passo extremamente útil e ao alcance do congresso.

O que ocorre vai na contramão disso: o INPI recebe apoio insuficiente, o que gera uma fila enorme na análise de pedidos de patentes, resolvida através de uma deferência cada vez maior a análises de escritórios estrangeiros.

Resolver esse pepino seria muito mais útil que gritos vazios por quebras de patente.

O cenário internacional

A questão de patentes fica mais complexa no quadro internacional. A esmagadora maioria dos remédios são desenvolvidos nos EUA, Europa e Japão. Patentes, por consequência, acabam sendo um mecanismo que providencia fluxos financeiros para empresas em países ricos.

Não à toa que há uma pressão internacional direcionada de países pobres contra países ricos nesse tema. Mas esse tipo de pressão precisa de um certo equilíbrio.

O interesse de países pobres em providenciar medicamentos para uma população de baixa renda esbarra no medo de que empresas farmacêuticas saiam do país.

Esse balanço não é novo. Desde pelo menos 1995, o acordo internacional sobre propriedade intelectual (TRIPS), assinado dentro da Organização Mundial de Comércio, já contemplava esse problema.

A solução elegantíssima, codificada no artigo 31, estabelece que um país pode, mediante declaração de emergência, usar licença compulsória e autorizar o uso não-exclusivo de patentes.

Licença compulsória é bastante semelhante à quebra de patentes, uma vez que ela elimina exclusividade da conta. Mas nesse caso, o detentor da patente é remunerado (ou indenizado).

Esse tipo de sistema acaba sendo útil por criar um espaço de negociação para licenciamento de patentes com um fórum internacional para arbitragem, o que reduz o senso de insegurança jurídica ao mesmo tempo que facilita farmacêuticas a agir usando uma perspectiva de responsabilidade social.

Esse mecanismo é largamente utilizado para a manufatura e exportação de genéricos para países pobres. O Brasil, inclusive, já se utilizou dessa ferramenta no final da década de 90. José Serra, na época ministro da Saúde, usou a ameaça de quebra de patentes para forçar a Roche e a Schering-Plough (hoje, Merck) a reduzir o custo de remédios utilizados no tratamento de Aids.

Papel não é remédio

O direito de produzir e vender remédios concedido pela patente é a parte mais fácil do quebra-cabeça. O problema mais difícil é estabelecer uma cadeia produtiva confiável, segura e de altíssima capacidade.

É preciso maquinário, recursos humanos qualificados, insumos, know-how em controle de qualidade e um sem-número de outras coisas para além da licença para usar a patente.

Um país como a Índia, que tem uma indústria sólida de manufatura de remédios genéricos, com certeza se beneficiaria com a flexibilização de patentes. Afinal de contas, a ameaça de competição lá é real e o desejo por segurança jurídica na manufatura de genéricos é tangível.

No Brasil, por outro lado, a história é outra. A tese neste link mostra que a trajetória no país é positiva, mas ainda é sofrível.

Para uma perspectiva mais real, é só ver o quão difícil tem sido a produção de vacinas pelo Butantan e Farmanguinhos por falta de ingredientes. Nesses dois casos, os laboratórios não têm nenhuma barreira impeditiva imposta por patente, mas ainda assim não estamos produzindo vacina o suficiente.

Há muito que se discutir sobre a ética ou razoabilidade do sistema de patentes. Mas fingir que patente é o único problema é ignorar a ausência de infraestrutura e capacitação para produção e distribuição de vacinas contra Covid-19 no Brasil.

O investimento real necessário é de longo prazo: investir em pesquisa e na educação de cientistas, farmacêuticos e médicos, facilitar acordos internacionais com países produtores para adquirir know-how, identificar gargalos burocráticos dificultando a expansão da indústria farmacêutica no Brasil e usar a infraestrutura existente ao invés de lutar contra ela. E em situações emergenciais, assinar o contrato de aquisição quando ele é oferecido.