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Lidia Zuin

REPORTAGEM

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Ressurreição digital se dissemina e até Alexa já recria voz de pessoa morta

No papel de Governador Tarkin, Peter Cushing, morto em 1994, foi recriado digitalmente para o filme "Rogue One: Uma História Star Wars", de 2016  - Reprodução/ Youtube/ Industrial Light & Magic
No papel de Governador Tarkin, Peter Cushing, morto em 1994, foi recriado digitalmente para o filme "Rogue One: Uma História Star Wars", de 2016 Imagem: Reprodução/ Youtube/ Industrial Light & Magic

Colunista do UOL

27/08/2022 04h00

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O livro "Ressurreição Digital: Aspectos Jurídicos e Repercussões", escrito pelo advogado Gustavo Fortunato D'Amico, faz uma reflexão a partir do ponto de vista jurídico sobre as implicações da chamada "ressurreição digital" (RD), um processo de recriação digital aplicado, principalmente, a celebridades já falecidas —como foi o caso dos hologramas de Michael Jackson e Tupac Shakur, por exemplo.

Em sua obra, fruto de pesquisa de mestrado na Universidade Federal do Paraná (UFPR), Gustavo questiona até que ponto esse tipo de produção é ético ou mesmo legal, já que muitos desses artistas sequer chegaram a manifestar a aprovação ou desejo de se submeter a esse tipo de processo.

Por outro lado, já há pessoas —como o escritor Deepak Chopra— que estão investindo, em vida, no desenvolvimento de um avatar de si mesmo ou então atores que têm feito escaneamento de seus corpos para que esses dados possam ser reprocessados em filmes futuros.

Apesar de esse tipo de tecnologia ser pouco acessível nos dias atuais, é bem possível que a ferramenta se barateie com o tempo, assim como aconteceu com a maioria das tecnologias que acessamos cotidianamente hoje —celular, computador, carros etc.

Diante desse cenário, conversei com Gustavo sobre as possíveis implicações que essa tecnologia traria à sociedade, caso se torne amplamente acessível.

Segundo ele, já existem ferramentas disponíveis hoje para quem queira iniciar seu próprio processo de RD.

"A Amazon recentemente apresentou uma nova funcionalidade da Alexa que, com base em áudios curtos, será capaz de replicar a voz de qualquer pessoa. Para exemplificar, eles usam uma criança que pede para a Alexa ler uma história com a voz de sua falecida avó", diz.

Gustavo afirma não saber até que ponto o público estaria disposto a consumir esse tipo de material ou como essas funcionalidades podem impactar o processo de luto. "Mas é inegável que um novo mercado está sendo construído em torno disso", complementa.

Grandes produções como "Rogue One: Uma História Star Wars" já contaram com equipes de artistas gráficos que recriaram a feição do ator Peter Cushing e fizeram a sincronização com o artista-base. Porém a tecnologia da deep fake já é capaz de fazer algo similar por custos muito menores —tanto de preço quanto de tempo de processamento.

"Já existem, inclusive, aplicativos que conseguem fazer essa sobreposição, mesmo que seja de uma forma um tanto grosseira, por enquanto. Basta a criatividade e o acesso a imagens de pessoas falecidas para que o usuário possa criar suas próprias RDs", afirma o escritor.

Ao mesmo tempo, vemos os esforços de Mark Zuckerberg em tornar o metaverso uma realidade, o que, por sua vez, traria uma nova camada na nossa socialização através de imagens (avatares).

Para Gustavo, esse é um terreno fértil para a RD, uma vez que essas criações podem se estender para além do nível do entretenimento. Por outro lado, esse tipo de popularização levanta preocupações sobre direitos de personalidade, manipulação de informações e até mesmo uma forma de cometer crimes aliados à imagem alheia.

E se a tecnologia está ficando cada vez mais acessível, dependendo de cada vez menos recursos, o que aconteceria se alguém decidisse ressuscitar digitalmente ditadores e criminosos de guerra?

Gustavo diz que a recriação de pessoas como Hitler ou Stalin, por exemplo, são tão possíveis como de qualquer outra pessoa, ainda mais se considerarmos a quantidade de material base que existe sobre essas pessoas.

"Agora, se isso é certo, já me parece muito mais uma questão de como será feito. Se for um trabalho educacional bem pensado e desenvolvido, a RD dessas pessoas pode se tornar uma nova forma de não deixar que os crimes cometidos sejam esquecidos. Porém, ao mesmo tempo existe o risco de abrir brechas para seguidores utilizarem as RDs como forma de idealizar e celebrar tais figuras", argumenta o pesquisador.

"No meu papel de advogado, preciso dizer que o 'como' é às vezes mais importante que o 'por quê' de algo assim ser feito."

Para complementar sua pesquisa, Gustavo está realizando um curso na Universidade de Stanford. Ele comenta que, no Brasil, o tema da RD não é tão amplamente discutido, apesar de já existirem exemplos como os hologramas de Cazuza e Renato Russo.

"Nos Estados Unidos, isso já é uma realidade. Aqui estão os principais casos existentes no mercado e onde se estudam formas de aprimorar a tecnologia para tornar o processo ainda mais realista", diz.

Estar perto do polo de produção e desenvolvimento tecnológico auxilia, portanto, a pensar quais estados já estão adequando suas jurisprudências e legislações para lidar com o crescente uso da tecnologia que pode trazer de volta, mesmo que artificialmente, aqueles que já se foram.

Seu objetivo é levar de volta ao Brasil essas reflexões e tornar esta uma pauta também relevante para a jurisprudência brasileira para que o país não seja pego de surpresa quando esse tipo de ferramenta já estiver ainda mais disseminado.