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Reportagem

STF cria duplo regime para redes e arrasta IA para Marco Civil da Internet

O STF (Supremo Tribunal Federal) promoveu na noite desta quinta-feira (26) um redesenho da forma como as empresas digitais são responsabilizadas por conteúdo veiculados em suas plataformas no Brasil.

Complexa, a nova regra agora permite que uma empresa possa ser punida e isenta pelo mesmo post, de acordo com juristas consultados pela coluna.

A tese de repercussão geral reconheceu que é parcialmente inconstitucional exigir que as donas de plataformas digitais sejam responsabilizadas só se descumprirem ordens judiciais, como prevê o artigo 19 do Marco Civil da Internet. Para contornar, estabeleceu na prática cinco maneiras distintas de atribuir responsabilização às aplicações na internet:

  • Crimes e atos ilícitos: agora, os provedores podem ser responsabilizados civilmente, mesmo sem ordem judicial, caso alguém sofra algum dano provocado pelo conteúdo de outra pessoa em casos de crimes ou atos ilícitos. O mesmo vale para contas falsas ou que tenham sido denunciadas;
  • Dever de cuidado: os provedores precisam indisponibilizar proativamente conteúdos que tratem de: 1) condutas e atos antidemocráticos; 2) crime de terrorismo; 3) instigação ao suicídio e automutilação; 4) discriminação racial, religiosa, sexual e de gênero; 5) crimes contra a mulher, inclusive os de ódio; 6) crimes sexuais contra vulneráveis; 7) tráfico de pessoas. A nova camada de proteção obrigatória é chamada de "dever de cuidado". Não quer dizer que elas serão punidas se um ou outro post com esse teor escapar ao filtro. Isso vai acontecer apenas se, por "falha sistêmica", as autoridades públicas constatarem que as remoções não estão ocorrendo. O problema: a autoridade em questão não foi definida pelo STF, que deixou isso a cargo do Congresso Nacional;
  • Notificação e retirada: qualquer um que se sentir lesado ou ofendido por algum conteúdo poderá enviar uma notificação extrajudicial pedindo a exclusão à plataforma digital que abrigar o post. Se elas não tirarem do ar, podem ser processadas.
Importante: as condutas descritas até aqui passam a gerar responsabilidade subsidiária, conforme prevê o artigo 21 do MCI. Continuando...
  • Continua como está: para algumas aplicações na internet, a vida continua segue como sempre foi. Ou seja, continuam enquadradas pelo artigo 19 e apenas são responsabilizadas se desrespeitarem decisão judicial. São elas: serviços de email, ferramentas de mensagem instantânea e plataformas de videoconferência privada (voz e vídeo). Continua valendo o artigo 19 para denúncias de posts que contenham crimes contra a hora (calúnia, injúria e difamação). Quer dizer que empresa não é obrigada a excluí-los apenas com notificação judicial e, sim, se houver decisão da Justiça. Assim, o STF evita que figuras públicas, como políticos e empresários, derrubem conteúdos sobre eles apenas por não terem gostado do teor, em vez de haver um motivo legítimo;
  • Algoritmo, conteúdo pago e robôs: agora, as empresas passam a ser responsáveis por todo anúncio veiculado em suas plataformas ou por posts cujo impulsionamento foi pago. O STF também inclui nessa nova regra os conteúdos distribuídos automaticamente por robôs e chatbots, algo que alguns juristas interpretam com uma forma de incluir a inteligência artificial na conta.

Duplo regime

A partir de agora, entender se a dona de plataforma conectada pode ser levada à Justiça depende de múltiplos fatores.

A aplicação de um ou outro regime dependerá do tipo de conteúdo, do canal em que ele circula (privado ou público) e do grau de exposição social, exigindo análise contextual e funcional
Antonielle Freitas, DPO (Data Protection Officer) do Viseu Advogados e membro da Comissão Especial de Privacidade e Proteção de Dados da OAB/SP

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A definição de em qual regime a empresa será responsabilizada diretamente vai depender do serviço dela a ter veiculado um post lesivo. "Se a empresa for multisserviços, cada aplicação será avaliada conforme sua natureza", comenta Patricia Peck Pinheiro, conselheira do CNCiber (Comitê Nacional de Cibersegurança), do CNPD (Conselho Nacional de Proteção de Dados e da Privacidade) e fundadora e CEO do Peck Advogados.

Um exemplo: o Google passa a ser responsabilizado diretamente pelo que aparece no YouTube e no motor de busca, mas não pelo que é veiculado no Gmail e no Meets.

Isso é problemático porque fragiliza a previsibilidade jurídica, especialmente para empresas que operam ecossistemas integrados, como é comum no setor
Luis Fernando Prado, sócio do Prado Vidigal Advogados e conselheiro da Abria (Associação Brasileira de Inteligência Artificial)

A complexidade das novas regras não para por aí. Uma mesma plataforma também poderá ser enquadrada de formas diferentes. O que ditará o nível de responsabilidade é o canal escolhido para compartilhar um post, afirmam os juristas. Situações assim podem acontecer, por exemplo, com Facebook, Instagram, X, TikTok e Threads.

Se um usuário compartilha material ofensivo em um grupo privado, o artigo 19 exige ordem judicial para responsabilizar a empresa. Mas, se o mesmo conteúdo é postado em um perfil público ou página de rede social, a empresa pode ser responsabilizada mais rapidamente, dependendo do tipo de conteúdo -- com base no artigo 21 e na nova interpretação do STF. Com isso, a mesma empresa pode ser simultaneamente submetida aos regimes do artigo 19 e do artigo 21, conforme o meio e a natureza da divulgação do conteúdo contestado. O critério-chave é o tipo de serviço e a exposição pública do conteúdo
Patricia Peck Pinheiro

O duplo regime estabelecido pelo STF foi compreendido pela comunidade jurídica como uma forma de respeitar o caráter privado de algumas comunicações. Mas gerou certo estranhamento.

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"Para circuitos privados vale o artigo 19, embora o enquadramento seja estanho, porque o 19 parece ser mais sobre responsabilização por publicação e em mensagem privada não há publicação de nada. Além disso, o artigo fala em 'tornar o conteúdo indisponível', o que parece estranho com a troca de mensagens", afirma Carlos Affonso Souza, diretor do ITS-Rio (Instituto Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro) e um dos "pais" do Marco Civil da Internet.

Nova regra vale para inteligência artificial ou não?

Não está claro se a decisão do STF contempla integralmente as ferramentas de inteligência artificial e em que medida isso acontece. Tanto é que a AGU (Advocacia Geral da União) solicitou que o Supremo esclareça explicitamente se a tese estende os novos deveres previstos no MCI, como moderação proativa e canais de denúncia, para a IA. Para parte dos advogados ouvidos pela coluna, a tese de repercusão geral já faz isso em alguma medida.

Esses serviços [de IA] podem ser enquadrados no regime geral do artigo 21, que permite responsabilização por simples notificação extrajudicial se a plataforma tiver ciência do conteúdo ilícito e não agir diligentemente. Exige remoção imediata em situações graves (como discurso de ódio, deepfakes, fraude digital), inclusive quando impulsionados ou alimentados por IA
Patricia Peck Pinheiro

Para outros, a tese do Supremo erra a mão se a intenção tiver sido equiparar todos os usos de IA em circulação a uma plataforma aberta de rede social, por exemplo.

Seria juridicamente incorreto equiparar LLMs a provedores que hospedam ou veiculam conteúdo de terceiros. Diferente das plataformas sociais, os modelos generativos não atuam como repositórios de publicações alheias. Eles produzem conteúdo novo, de forma autônoma, com base em inferências probabilísticas, e não distribuem, armazenam ou publicam mensagens de terceiros
Luis Fernando Prado

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