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Felipe Zmoginski

Mistério das sementes revela a sangrenta disputa de lojas virtuais na China

Contêineres com mercadorias chinesas são preparadas para serem enviadas ao mundo - Creative Commons
Contêineres com mercadorias chinesas são preparadas para serem enviadas ao mundo Imagem: Creative Commons

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Esqueça as teorias conspiratórias sobre bioterrorismo. O fenômeno por trás do "mistério das sementes", nome dado às encomendas não solicitadas que chegaram às casas de centenas de brasileiros, em 15 Estados, é mais do mesmo: gente gananciosa buscando atalhos para ganhar (ainda) mais dinheiro.

A China, como se sabe, tem uma folgada liderança sobre qualquer outro país do mundo quando o tema é e-commerce. Em número de pedidos, a China, sozinha, responde por 51% do comércio eletrônico do mundo. Contribuem para isso quatro elementos.

O primeiro deles, claro, é a penetração de banda larga. Virtualmente toda a população economicamente ativa, 950 milhões de pessoas, tem acesso à internet. A inclusão digital radical foi possível porque os pacotes de dados são subsidiados nas províncias mais pobres e os dispositivos, smartphones e laptops, são os mais baratos do mundo.

O segundo motivo é que país se tornou uma economia "cashless", em que a maior parte das operações financeiras ocorre por meio de carteiras virtuais. Um clique, uma compra.

O terceiro é a infraestrutura invejável. Um item embarcado pela manhã no Sul do país estará na porta de um condomínio no Norte da China pela noite.

O quarto (e talvez principal fator, pois motivou todos os demais investimentos feitos no setor) é cultural. Com estilo de vida workaholic e pouco tempo livre, tudo o que se puder resolver online é vantajoso.

Na China, e só lá, 36% das vendas do varejo ocorrem online. Para efeito de comparação, no Brasil, de acordo com dados do E-commerce Brasil, este percentual é de 6%. Postos estes números, não é difícil de entender onde se dá a sangrenta briga por consumidores: na arena virtual.

A supercompetição entre lojas online na China já resultou em uma dezena de escândalos.

Um dos casos mais rumorosos do país foi protagonizado por Jenny Qian. Considerada "gênio do marketing", Qian tinha uma agência capaz de reverter a imagem digital de marcas desgastadas por problemas com consumidores. Comentários negativos, subitamente, se transformavam em elogios quando a agência de Qian entrava em cena. A tática "genial" de Qian era invadir servidores de sites de reviews, apagar mensagens negativas e inserir comentários positivos.

A menina-prodígio amargou quatro anos de cadeia por cibercrime e ao sair da prisão deu uma fantástica volta por cima, fundando a Luckin Cofee, cafeteria que fez abertura de capital em Nova York e chegou a valer US$ 1,5 bilhão, desbancando a poderosa Starbucks na China. Recentemente, porém, descobriu-se que as vendas da Luckin eram, na verdade, infladas por um esquema de distribuição de cupons em sites chineses.

A luta por um lugar ao Sol no cenário digital transformou em um calvário a tentativa de qualquer mortal, como eu e você, criar uma conta no app WeChat. São tantas as restrições e validações para ativar uma conta que obter um login no serviço de mensagens instantâneas parece mais difícil que acessar a maleta em que Trump guarda os códigos secretos para acionar armas nucleares.

Explica-se o cuidado: por ano, contas falsas, como os bots que espalham fake news no Brasil, foram usados para espalhar promoções, inflar serviços digitais com "usuários fantasmas" e fazer jogo sujo no mundo do marketing digital. Os episódios só diminuíram após a Tencent, dona do WeChat, impor um rigoroso controle sobre seus usuários.

Há pouco mais de uma década, as lojinhas online chinesas, que operam nos mais variados marketplaces (plataformas de e-commerce que conectam lojistas com consumidores), como Mercado Livre e Amazon, passaram, além do mercado doméstico a explorar o mundo. Não é difícil imaginar que muitas delas tenham recorrido aos métodos de "fake marketing" que aprenderam no mercado doméstico... e é neste ponto que se insere o "mistério das sementes".

Criar uma loja dentro de um marketplace estabelecido é simples e barato, mas isto equivale a abrir uma cafeteria secreta, quando, na verdade, os donos de cafés querem mesmo é estar em esquinas movimentadas.

A forma, digamos, convencional de atrair clientes, ou seja, tráfego, é rodar anúncios no Google, Facebook ou em portais de conteúdo, como este, que hospeda esta coluna.

A "aquisição de tráfego", porém, é caríssima, o que faz 10 entre 10 e-commerces suarem sangue para obter "tráfego orgânico", o que pode ser obtido com muita criatividade e esforço. Ou pelo caminho da picaretagem.

Por este último caminho, lojas autônomas, às escondidas dos marketplaces, conseguem via compras de bases de dados os nomes e endereços de muitos usuários reais e, então, enviam produtos não solicitados de baixo valor para eles.

O pulo do gato está no fato de a "conta" do "comprador" ser controlada pelo vendedor. Então, após a entrega do produto, o "comprador" que, na verdade é só uma conta fake do vendedor, vai lá e dá uma nota elevada pelo serviço, diz que a compra foi o máximo e que tal loja é incrível.

Ao colher muitos falsos reviews, o lojista sobe nos rankings de avaliação dentro dos marketplaces e melhoram sua posição até na busca orgânica do Google. Do ponto de vista do marketplace, tudo parece OK: um pacote, de fato, saiu da origem, chegou ao destino e o receptor disse que foi tudo ótimo. Só que não.

Os itens enviados, em geral, são sementes de plantas por estas serem leves, de baixo custo e não despertarem atenção nas máquinas de raio-X. Uma jogada simples —e desonesta— que eleva o nome da loja online e lhe garante o tão sonhado "tráfego orgânico".

Com toda a publicidade midiática em torno das "sementes não solicitadas" é natural que o rigor das empresas de logística, serviços postais e dos marketplaces bloqueiem este método daqui para frente.

O engenho humano, no entanto, tratará de inventar outra maneira de burlar as regras do jogo, neste infinito jogo de gato e rato, entre os fraudadores e os serviços antifraudes.

Talvez seja um pouco decepcionante para os paranoicos, lunáticos e terraplanistas, mas as sementes que vocês receberam em casa não são parte de um plano malévolo do Partido Comunista da China. Era só algum mercador, em algum lugar do mundo, querendo fazer marketing de modo desonesto para sua lojinha.

Errata: este conteúdo foi atualizado
Diferentemente do informado, Jenny Qian, fundadora da Luckin Cofee, é uma mulher. O erro foi corrigido