A 'merdificação' da Web: como a internet livre virou império das big techs

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Se você achou o termo do título meio escatológico, já aviso logo: ele não é meu. Embora, confesso, achei esperta a estratégia de criar uma palavra forte para marcar a posição e descrever a situação do mundo digital.
Merdificação - tradução do inglês enshittification - é um neologismo criado pelo escritor de ficção científica e crítico de mídia Cory Doctorow para descrever a degradação que acontece com os serviços digitais. Embora a palavra tenha aparecido pela primeira vez em seu blog em 2022, o assunto voltou a pipocar na mídia internacional nesta semana porque ele acaba de lançar um livro com esse mesmo título (Enshittification: Why Everything Suddenly Got Worse and What to Do About It).
Na visão dele, empresas como Apple, Meta, Google e Amazon se tornaram tão grandes e dominam o mercado de tal maneira que podem degradar seus serviços e prejudicar os usuários sem grandes consequências para os seus negócios.
Doctorow vê esse processo acontecendo em três estágios. Primeiro, as empresas oferecem um bom serviço, geralmente gratuito, para formar hábito nos usuários; em seguida, passam a explorá-los para favorecer seus modelos de negócios, priorizando publicidade, marcas e algoritmos de engajamento; por fim, quando está todo mundo preso, as empresas passam a explorar até mesmo os seus clientes, cobrando mais, restringido alcance e vendendo dados.
Quem viveu a popularização da Web sabe que o espaço digital passou por uma transformação radical. Lembram da era dos blogs e sites que se conectavam por links sem a necessidade de uma plataforma dominante? Éramos mais livres e menos controlados por algoritmos.
Quando Tim Berners-Lee criou a Web em 1989, ele fez uma escolha ousada: deixou a sua invenção livre, sem patentes, para ser um espaço aberto e democrático. Ele queria construir um terreno fértil para inovação e experimentação de novas formas de interação.
E deu certo.
Deu tão certo que as consequências não foram as desejadas. Em pouco tempo, as plataformas começaram a oferecer serviços tão atraentes que passamos a viver grande parte da nossa existência online dentro desses espaços. Foi o Google com o buscador; o Facebook com a rede social; a Amazon com e-commerce; entre tantas outras.
E todas elas aprenderam rápido o princípio mais importante no mundo digital: o efeito rede, o fenômeno em que o valor de um produto ou serviço aumenta quando mais pessoas o utilizam. Com isso, o objetivo passou a ser convidar as pessoas a entrar, mas sem deixá-las sair facilmente.
Aquela Web aberta e descentralizada virou uma coleção de "Jardins Murados", termo usado na área acadêmica para descrever esses ecossistemas digitais fechados, controlados por uma única empresa ou plataforma. A expressão vem da metáfora dos jardins cercados no mundo físico, um espaço bonito, aconchegante, mas com muros que limitam a entrada e a saída.
Os links, que são o coração da Web, tornaram-se os vilões dos "Jardins Murados". Não demorou para as plataformas entenderem que eles eram a rota de fuga de seus impérios, então passaram a dificultar ao máximo a postagem com links.
O Instagram não permite links nos comentários, e quase todas as outras redes diminuem o alcance de post que veiculam links. Quando o tempo de tela vira rei, vale tudo para manter os usuários rolando, clicando e consumindo, inclusive usar cada vez mais algoritmos para capturar a atenção.
Enquanto o mundo inteiro discute que o uso excessivo de redes sociais é uma questão importante, muitas vezes relacionada com a saúde mental, a Meta destacou no seu balanço do 1o trimestre que "Nos últimos seis meses, as melhorias em nossos sistemas de recomendação resultaram em um aumento de 7% no tempo gasto no Facebook, 6% no Instagram e 35% no Threads".
Quando elas controlam o tráfego e comportamentos, mandam em tudo. É um poder de concentração absurdo. Doctorow tem uma lista de exemplos de como as principais plataformas degradam seus serviços visando aumentar o lucro e influência. A Amazon tende a mostrar produtos mais caros nas primeiras páginas. Instagram e Facebook priorizam post pagos (muitos deles fraudulentos), reduzindo o alcance orgânico.
Nesta semana, li uma matéria da BBC mostrando como ofertas de rótulos, tampas e selos falsos de bebidas circulam livremente em grupos do Facebook. E a lista vai embora. Você também deve ter um ou outro exemplo para nos contar.
E quando olhamos para o futuro, dá a sensação de que essa enxurrada de porcarias só tende a crescer. As plataformas estão concentrando ainda mais poder, a ponto de se tornarem mais poderosas que muitos países. E esse modelo de controle agora ganha uma nova dimensão com a IA, que nos coloca em um momento mais sensível e extremo.
Os chatbots estão engolindo a Web e matando o tráfego aos criadores de conteúdos originais. Algoritmos de recomendação estão ficando cada vez mais sofisticados para entender nossas preferências e moldar nossos comportamentos, enquanto a própria IA está sendo usada para inundar a rede com conteúdos sintéticos.
O termo "AI slop" ganhou fama nos últimos meses por descrever esse fenômeno em que a IA polui a Web com conteúdos superficiais, repetitivos e na maioria das vezes sem curadoria. Tem coisa boa feita com IA? Sim, especialmente quando existe uma co-criação de pessoas criativas que se dedicam para produzir algo relevante.
No entanto, a regra do jogo virou um dilúvio de conteúdos preguiçosos, produzidos de qualquer jeito, que ainda assim disputam nossa atenção porque é exatamente isso que os algoritmos insistem em nos entregar. E se quiser uma amostra da Web do futuro, conto que a Meta lançou o Vibes e a OpenAI apresentou o Sora, duas novas plataformas sociais focadas em vídeos curtos gerados exclusivamente por IA.
Existe solução para isso?
Cory Doctorow aponta alguns caminhos, sendo a regulação a mais relevante. Porém, sabemos que é a mais complicada. Pelo desenho político atual do mundo, a administração Trump entende as big techs como tentáculos do governo americano e fará de tudo para protegê-las.
Em artigo recente no The Guardian, Tim Berners-Lee explica que deu a Web de graça ao mundo por acreditar em uma missão de compartilhamento, não de exploração. Ele defende que o caminho para restaurar a Web passa por devolver às pessoas o controle sobre seus próprios dados, em que o usuário decide quem pode acessá-los.
Ele propõe também que devamos pensar em uma instituição global, nos moldes do CERN, para coordenar a pesquisa e a governança da IA em benefício coletivo. Só assim poderemos retomar a visão original de uma Web livre e colaborativa.
O jogo é bruto, envolve contrabalançar os interesses de empresas que têm muita grana e um poder impressionante, mas existem caminhos técnicos e regulatórios. Concordo com a frase com que Tim Berners-Lee encerra o seu texto: não é tarde demais.





























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